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Tony Tcheka, poeta da Guiné-Bissau |
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Publicado originalmente na Revista
Incomunidade, em :
http://www.incomunidade.com/v21/ |
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Tony Tcheka é o poeta que mais dá rosto à
Guiné-Bissau, e porventura aquele em quem mais entranhado vive o
sentimento de missão, aquela vontade de intervir na situação política e
social, com vistas a mudança para democracia plena. Conhecemos bem este
desejo e os conflitos estéticos e políticos daí resultantes, em especial
do neo-realismo e do surrealismo inicial. Muita dissidência surrealista
verificou-se como resposta à colagem de André Breton ao comunismo. Na
Europa, hoje, a despeito das dificuldades que nos afligem, não sentimos já
essa necessidade de pegar na palavra como arma. Ou talvez estejamos
desistentes, verificando quão inútil ela é, quando na estrada se ergue um
muro com o dissuasor cartaz a proclamar que «Não há alternativa». Esta
dissuasão acaba por ser uma grilheta, uma mordaça bem pior do que a
censura. À censura, resiste-se. A declaração de impotência paralisa. Ora
em África tais obstáculos não parece que se levantem, daí que Mia Couto em
Moçambique, José Eduardo Agualusa em Angola e Tony Tcheka na Guiné-Bissau,
entre outros, pugnem com gritos bem altos pelo direito dos seus
compatriotas a um futuro cada vez mais abismado na intangibilidade.
Ninguém, decerto, fica indiferente às causas que
movem à escrita os autores, e no caso particular o poeta guineense. Os
temas latejam e sangram em cada um dos seus versos, quer se refiram ao
presente quer ao passado: escravatura, guerra, fome, racismo, pobreza,
doença, falta de assistência médica e de medicamentos, diáspora, e tantas
outras desgraças que vêm atingindo a sua pátria, como parcela de um
continente que no seu todo também se apresenta em «Noites de insónia na
terra adormecida» e em «Guiné, sabura que dói», dois livros de Tony
Tcheka. Desde sempre, desde antes da partilha das colónias pelas várias
potências europeias, em meados do século XIX, que África tem sido o mais
desgraçado dos continentes. Sem querer minimizar a importância da
exploração sofrida com o colonialismo, é verdade também que os colonos
foram vítimas como os africanos de alguns dos obstáculos levantados à
melhoria das condições de vida para todos: as doenças, e muito
principalmente a malária. Daí que um dos temas de Tony Tcheka seja esse
justamente, como lemos em diversos poemas de
Noites de insónia na terra adormecida. Em «Concerto de “djunta mon”»
(de mãos dadas, de solidariedade), para o qual recebera convite, retido na
cama por doença, o poeta lamenta-se:
A dor encosta-se a mim
abraça-me forte
espalha-se pelo corpo
em glândulas de fome
Enfermo declino o convite
para a grande festa da liberdade
Estou no meu tempo
no meu espaço
na minha tabanca
onde festa
é choro
é doença
é criança morrendo
dia a dia
hora
a hora!
Como sucede em muitos outros textos, Tony Tcheka,
mercê de grande capacidade de síntese, chama para a unidade poética uma
série de problemas, o que dá grande riqueza temática a cada um dos textos.
No caso, o concerto de solidariedade por algum facto patenteador de
liberdade democrática, tendo a doença no outro extremo da festa, congrega
a evocação da dor, da fome, do choro (duplo sentido a considerar, uma vez
que “choro”, em crioulo, é o ritual de enterramento dos mortos), a morte
das crianças, e as crianças são um dos temas maiores desta poesia.
Do colonialismo sobra um símbolo, o massacre do
cais do Pindjiguiti, e nenhuma animosidade nem desconforto em relação a
Portugal, visto geralmente como país amigo, sobretudo depois do 25 de
Abril.
Claro que o poeta tem sempre um tema comum e
universal, o amor. Porém, nos livros de Tony Tcheka, sendo abundantes os
poemas dessa estirpe, nem todos obedecem linearmente à expressão de afeto
pela mulher amada, porque ela se funde com frequência na imagem da terra,
a pátria, terra do sahel. O mesmo acontece, de resto à semelhança de
outros poetas, em Portugal como alhures, quanto à fusão de terra e/ou
amada com a língua. Mas é preciso notar que Tony Tcheka é bilingue.
Poderíamos pensar que esta fusão se verificasse de preferência com o
crioulo, e nada diz que assim não seja, eu é que o domino mal. Detetei no
entanto o facto nos poemas em português.
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Sobretudo quando escreve em crioulo fundo, o
kriol, Tony Tcheka é-nos tão estranho e familiar como os trovadores: isso
que escrevem é a nossa língua, que sentimos poderosamente íntima, e ao
mesmo tempo ela é estrangeira, existe num registo extemporâneo ou
alóctone, como embrenhada em segredos para cuja decifração precisamos de
chave ou de infinita paciência:
«radi
di
labrador
iabri
bariga
renkiadu
di blaña»
É um poeta da terra, o Tony: das bolanhas, das
lalas, do chão sangue. Com as alusões recorrentes ao sahel, evoca aquilo a
que na Guiné-Bissau se chama «nha tchon», «o meu chão» ou «o meu país», e
a mulher enquanto Terra-Mater.
Em termos de situação geográfica, o sahel é a
região sudanesa, situada entre o deserto do Sahara e as terras mais
férteis a sul. Forma uma faixa do Atlântico ao Mar Vermelho, numa largura
que varia entre 500 e 700 kms. Outrora, o Sudão albergou grandes impérios,
alguns com pontos intectuais da maior relevância, caso de Tombuctu no
século XIV, célebre pela sua universidade corânica, rica de vinte mil
manuscritos árabes antigos, com o repositório do conhecimento científico e
traduções dos gregos. Tombuctu situava-se na rota do sal, transportado por
caravanas de homens e camelos que atravessavam o deserto. E ainda
atravessam, segundo creio. A religião dominante na Guiné-Bissau é o
islamismo. Em diversos poemas é notória a paixão do poeta guineense não só
pela história do seu país, como da África em geral.
Tony Tcheka ama a geografia, esta não é a sua única
incursão nos mapas e nos territórios. Porém a geografia também é humana, e
essa toca mais fundo o coração africano, pois este corredor
fitogeográfico, o sahel, é um dos mais pobres do mundo. Dadas as secas, e
subsequente desertificação, dadas igualmente as situações de guerra em
vários dos seus pontos, a impedirem a pesca e a agricultura, o sahel é
também um corredor de fome. A fome é um dos temas recorrentes nos dois
livros de Tony Tcheka já mencionados: «Noites de insónia na terra
adormecida”, de 1987 e «Guiné – Sabura que dói», de 2008. A propósito do
primeiro, escreve Filomena Embaló, prefaciadora, chamando justamente a
atenção para o tema que foquei: «Numa belíssima homenagem ao país, “Guiné
sabura que dói” é antes de mais um Hino à terra-mãe, a rosa de canteiros
perdidos, mulher-grande e fêmea sofredora, tal como a define o autor no
seu versejar imaginoso. O poeta chora a terra tísica onde a bolanha se
alimenta de água na mágoa da lágrima e a criança não tem tempo de ser
menino. Esse chão onde se quer plantar o silêncio na boca de fome para que
não se queira querer».
Que a mulher é também terra, mater, matriz, a velha
Terra-Mater, cordão umbilical entre uma antiquíssima cultura clássica e a
moderníssima cultura bissau-guineense, continua a afirmá-lo Filomena
Embaló: «É ainda uma declaração de Amor à mulher guineense, mãe, bideira,
combatente incansável de todas as lutas e, no entanto, tão mulher! De
sorriso brando, corpo de ébano e o andar como o serpentear do Geba, ela é
a força discreta que em tempos de penúria finta a vida madrasta esmagando
com o tuku di pé a fome para que não atormente a
vida apoquentada».
É a mãe quem mais sofre com a fome, para voltarmos
aos problemas do sahel, não porque ela lhe fira mais o corpo do que aos
filhos, mas por ser lancinante a dor de sentir na mente a fome deles.
Terra pode ser a dos outros, a exótica, situada
mais a Norte, com a antiga designação, depreciativa, de terra dos tugas, a
Tugalândia, como se lê em «Guiné – Sabura que dói»:
uma lágrima de negro
juntou-se às águas ternurentas do Tejo
falando mantenhas de saudade da Guiné
reencontrada
essa Guiné que embala o sono
de soldadinhos de chumbo
que nunca mais voltaram
ao regaço da Tugalândia
A guerra colonial, da qual tanto soldadinho não
regressou à sua Tugalândia europeia, não é a única memória de violência
numa terra de gente pacífica na sua vida de pesca e amanho da terra:
conflitos internos e com o Senegal têm sido fonte de desgraça e miséria.
Terra-Mãe é igualmente a pátria cultural mestiça de
que todos brotamos, tugas e não-tugas, e é admirável ver Tony Tcheka
reconhecer que também é dele o elétrico que sobe à Graça e desvenda o Tejo
entre os becos de Alfama e Mouraria, e que também lhe pertence a ele a
revolução banhada na música de Zeca Afonso.
O mínimo que podemos dizer, a terminar este
primeiro gesto de aproximação, é que Tony Tcheka não se permite o luxo de
assuntos menores, tão próprios da lírica de todos os tempos e países. Ele
só se ocupa de temas importantes.
Casa dos Banhos, 4 de abril de 2012
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Maria Estela Guedes
(1947, Britiande / Portugal). Diretora do Triplov
Membro da Associação Portuguesa de Escritores,
da Sociedade Portuguesa de Autores, do Centro Interdisciplinar da Universidade de Lisboa e do Instituto São Tomás de Aquino. Directora do TriploV.
LIVROS
“Herberto Helder,
Poeta Obscuro”. Moraes Editores, Lisboa, 1979; “SO2” .
Guimarães Editores, Lisboa, 1980; “Eco, Pedras Rolantes”, Ler
Editora, Lisboa, 1983; “Crime no Museu de Philosophia Natural”,
Guimarães Editores, Lisboa, 1984; “Mário de Sá Carneiro”. Editorial
Presença, Lisboa, 1985; “O Lagarto do Âmbar”. Rolim Editora, Lisboa,
1987; “Ernesto de Sousa – Itinerário dos Itinerários”. Galeria
Almada Negreiros, Lisboa, 1987 (colaboração e co-organização); “À
Sombra de Orpheu”. Guimarães Editores e Associação Portuguesa de
Escritores, Lisboa, 1990; “Prof. G. F. Sacarrão”. Lisboa. Museu
Nacional de História Natural-Museu Bocage, 1993; “Carbonários :
Operação Salamandra: Chioglossa lusitanica Bocage, 1864”. Em
colaboração com Nuno Marques Peiriço. Palmela, Contraponto Editora,
1998; “Lápis de Carvão”. Apenas Livros Editora, Lisboa, 2005; “A_maar_gato”.
Lisboa, Editorial Minerva, 2005; “À la Carbonara”. Lisboa, Apenas
Livros Lda, 2007. Em co-autoria com J.-C. Cabanel & Silvio Luis
Benítez Lopez; “A Boba”. Apenas Livros Editora, Lisboa, 2007;
“Tríptico a solo”. São Paulo, Editora Escrituras, 2007; “A poesia na
Óptica da Óptica”. Lisboa, Apenas Livros Lda, 2008; “Chão de papel”.
Apenas Livros Editora, Lisboa. 2009; “Geisers”. Bembibre, Ed.
Incomunidade, 2009; “Quem, às portas de Tebas? – Três artistas
modernos em Portugal”. Editora Arte-Livros, São Paulo, 2010.
“Tango Sebastião”. Apenas Livros Editora, Lisboa. 2010. «A obra ao
rubro de Herberto Helder», São Paulo, Editora Escrituras, 1010;
"Arboreto». São Paulo, Arte-Livros, 2011; "Risco da terra", Lisboa,
Apenas Livros, 2011; "Brasil", São Paulo, Arte-Livros, 2012; "Um
bilhete para o Teatro do Céu", Lisboa, Apenas Livros, 2013.
ALGUNS COLECTIVOS
"Poem'arte - nas margens da poesia". III Bienal de
Poesia de Silves, 2008, Câmara Municipal de Silves. Inclui CDRom
homónimo, com poemas ditos pelos elementos do grupo Experiment'arte.
“O reverso do olhar”, Exposição Internacional de Surrealismo Actual.
Coimbra, 2008; “Os dias do amor - Um poema para cada dia do ano”.
Parede, Ministério dos Livros Editores, 2009.
Entrada sobre a Carbonária no Dicionário Histórico das Ordens e
Instituições Afins em Portugal, Lisboa, Gradiva Editora, 2010; «A
minha vida vista do papel», in Ana Maria Haddad Baptista & Rosemary
Roggero, Tempo-Memória na Educação. São Paulo, 2014.
TEATRO
Multimedia “O
Lagarto do Âmbar, levado à cena em 1987, no ACARTE, Fundação
Calouste Gulbenkian, com direcção de Alberto Lopes e interpretação
de João Grosso, Ângela Pinto e Maria José Camecelha, e cenografia de
Xana; “A Boba”, levado à cena em 2008 no Teatro Experimental de
Cascais, com encenação de Carlos Avilez, cenografia de Fernando
Alvarez e interpretação de Maria Vieira.
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