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Vozes intercomunicantes de Mia Couto |
Publicado na
revista Incomunidade (Porto), número 19 (10.02.2014). Em linha em:
http://www.incomunidade.com/v19/art.php?art=15 |
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Mia Couto é dos escritores de língua portuguesa
com maior projeção internacional. Bem conhecido dos portugueses, o que é
raro, pensando na obscuridade em que vivem nacionais de similar
importância. Além dos valores intrínsecos da obra, outro dado deve ser
invocado para justificar a sua popularidade: é um homem despretensioso,
dotado de doçura e bondade, que fala de assuntos graves, eminentes no seu
país como em muitos outros, sem preconceitos estéticos, raciais nem
políticos.
Moçambicano, nascido na Beira em 1955, a sua obra
já considerável tem sido honrada com prémios um pouco em toda a parte,
traduções em mais de duas dezenas de línguas, e com estudos académicos,
alguns não publicados, por isso só disponíveis em algumas bibliotecas. A
projeção no espaço universitário é determinante para a difusão da obra do
escritor, ou não aludisse ao “conhecimento universal” a palavra
“universidade”.
Tal como os confrades africanos, e cada vez mais
europeus, o seu entendimento da literatura opõe-se à prática da arte pela
arte. O grosso da produção literária da Guiné-Bissau assenta na prioridade
do serviço de cidadania, aquilo a que os escritores aludem como “assuntos
importantes”, e ainda há muito pouco, entrevistado na TV2, José Eduardo
Agualusa, que faço representar Angola para meu fundamento, declarava que o
escritor tem a obrigação de denunciar o que vai mal no seu país.
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O artista tem a liberdade de seguir o rumo
para que está vocacionado e que mais o cumula, não pretendo
retomar uma contenda que periodicamente assoma na opinião
artística. Trago-a à cena apenas para dizer que, não obstante a
vocação política e social, e não obstante a sua forte presença nos
livros, outras tendências estéticas se manifestam nas obras. No
caso de Mia Couto, parte importante do reconhecimento público que
lhe tem sido prestado diz respeito ao trabalho de criação e
recriação da língua portuguesa, o que naturalmente pode situar-se,
dado o enfoque no material de construção do texto, nos antípodas
da intervenção política. Problema multifacetado, de que só aponto
agora uma faceta, denunciada aliás pelo próprio Mia Couto, salvo
erro no livro «E se Obama fosse africano?» - de um lado, as elites
letradas são percentagem mínima na população dos países africanos
de língua portuguesa – e em Portugal também; de outro, se os
escritores de língua portuguesa escrevessem em inglês, a sua
posição no mercado mundial deixava de ser marginal.
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Mia Couto por Teresa Abreu Lima |
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Então, entre os aparentes extremos de intervir
pela escrita e de fazer arte pela arte, fica um gradiente muito largo de
vetores de interesse no estudo de Mia Couto, que tenho andado a ler e a
reler nos últimos meses por razões que fundamentam muito do que até aqui
aleguei: a realização de um projecto sobre a obra do autor moçambicano,
com a participação de ensaístas brasileiros. Multifacetada, híbrida, a
produção literária de Mia Couto engloba crónicas, contos, romances, teatro
e dois livrinhos encantadores, não só pelo texto como pelo objeto gráfico
e ilustração de Danuta Wojciechowska, publicados como literatura infantil:
«O menino no sapatinho» e «O gato e o escuro».
Comecemos por estes, que não correspondem ao que
entendemos por literatura infantil, exceto pela ilustração, formato dos
livros, e por um modo manso e suave de contar coisas ferozes e violentas,
como o alcoolismo e a pobreza. Os textos afastam-se da literatura
infanto-juvenil pela temática e complexidade poética do texto, mas não
quero com isto dizer que sejam impróprios para crianças. Tive ocasião de
os dar a ler a uma menina do sexto Ano, que só estranhou aspetos
gramaticais e lexicais. No que diz respeito à interpretação das ideias
gerais, não manifestou dificuldade. Aliás são recomendados para leitura
dos estudantes de vários graus do ensino livros diversos de Mia Couto,
quase todos eles com similar dimensão gramatical e lexical, susceptível
por isso de causar perplexidade. Digo “quase todos” porque nem todos os
livros de Mia Couto apresentam a densidade metafórica e invenção verbal
que o tornou conhecido como um dos escritores que mais têm alargado os
limites da língua portuguesa. Se os contos pseudo-infantis e muitas
crónicas mostram essa densidade, já romances como «O último voo do
flamingo» e paradoxalmente um dos seus raros livros de poesia, se não for
o único, «Raiz de orvalho», são muito mais sóbrios. É curioso, pois o
trabalho de linguagem, criador e recriador da língua, nasce na fonte
poética. No entanto, não é no livro de poesia, sim em «Cronicando», nas
«Histórias abensonhadas», n’ «A confissão da leoa» e noutros livros,
narrativos e ensaísticos, que a linguagem desabrocha nos seus fulgores
metafóricos e de invenção de palavras. O autor moçambicano é acima de tudo
um poeta da prosa.
Mia Couto não escreve para as crianças, como aliás
ele próprio declarou em entrevista à RTP: não pensa em leitores quando
escreve. O que se passa é que vários dos seus livros têm crianças como
protagonistas e narradores, resultado talvez da vontade de intervir, pois,
quando as desgraças cobrem a maior parte da população, o que atingem com
mais dureza é o futuro, a protagonizar pelos jovens e pelas crianças.
À faceta criadora de léxico de Mia Couto deu
Fernanda Cavacas o nome de “brincriação”, no estudo publicado em 1999 pelo
Instituto Camões, «Mia Couto – Brincriação vocabular». A brincriação
patenteia-se até nos títulos, haja em vista «E se Obama fosse africano? E
outras interinvenções», «Pensatempos» e «Histórias abensonhadas». No
interior das obras, alguns exemplos mais: “adiantosamente”, “redesistiu”,
“má-vidista”, “panicar” («O último voo do flamingo”), “desdiálogo” («A
varanda do frangipani»). Muitas variantes inusitadas entram no domínio da
sintaxe, aproximando o discurso mais da norma brasileira que da
portuguesa. É uma literatura que desafia os professores a explicarem, ou a
moverem os alunos a uma aceitação do diferente que mantenha em aberto a
possibilidade de emenda, caso sigam o exemplo do escritor. De resto, a
questão abre-se para muitos outros, como Herberto Helder, cuja expressão
engloba o que é erro em termos escolares.
Alargar os limites da língua, com uma fala tão
elástica no domínio sintático e lexical, resulta num idioleto literário
que não se confunde certamente com o falar de Moçambique, por muito que o
discurso de Mia Couto beba na oralidade, estudada por Celina Maria
Rodrigues Martins na tese de doutoramento «O entrelaçar das vozes mestiças
– Poéticas da alteridade na ficção de Édouard Glissant e Mia Couto»
(Universidade da Madeira, 2003) e por Maria Teresa Damásio Bento dos
Santos na tese de mestrado «O universo oral na obra de Mia Couto»
(Universidade Nova de Lisboa, 1996).
A questão da oralidade chama a atenção para a
escrita, o que põe em cena o analfabetismo de massas enormes de pessoas
que podiam ler mas não sabem e traz igualmente à cena um dos tópicos
recorrentes de Mia Couto: a defesa da tradição. N’«A varanda do
frangipani» essa questão é muito notória, no aviso de que a dependência
das tendências estrangeiras faz murchar o que é próprio de uma cultura, a
sua identidade. Sem nenhum intuito nacionalista, Mia Couto pratica a
“tradição e aventura” - como dizia Ernesto de Sousa, sábio de que o
passado era tão importante como a vanguarda -, pontuando os livros com
provérbios bantus, e também com epígrafes que referem falsa ou
verdadeiramente textos do autor moçambicano. Vasos comunicantes estes que
não só são típicos da cultura oral como da arte polifónica da modernidade.
Casa dos Banhos . 6 de fevereiro de 2014
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Maria Estela Guedes
(1947, Britiande / Portugal). Diretora do Triplov
Membro da Associação Portuguesa de Escritores,
da Sociedade Portuguesa de Autores, do Centro Interdisciplinar da Universidade de Lisboa e do Instituto São Tomás de Aquino. Directora do TriploV.
LIVROS
“Herberto Helder,
Poeta Obscuro”. Moraes Editores, Lisboa, 1979; “SO2” .
Guimarães Editores, Lisboa, 1980; “Eco, Pedras Rolantes”, Ler
Editora, Lisboa, 1983; “Crime no Museu de Philosophia Natural”,
Guimarães Editores, Lisboa, 1984; “Mário de Sá Carneiro”. Editorial
Presença, Lisboa, 1985; “O Lagarto do Âmbar”. Rolim Editora, Lisboa,
1987; “Ernesto de Sousa – Itinerário dos Itinerários”. Galeria
Almada Negreiros, Lisboa, 1987 (colaboração e co-organização); “À
Sombra de Orpheu”. Guimarães Editores e Associação Portuguesa de
Escritores, Lisboa, 1990; “Prof. G. F. Sacarrão”. Lisboa. Museu
Nacional de História Natural-Museu Bocage, 1993; “Carbonários :
Operação Salamandra: Chioglossa lusitanica Bocage, 1864”. Em
colaboração com Nuno Marques Peiriço. Palmela, Contraponto Editora,
1998; “Lápis de Carvão”. Apenas Livros Editora, Lisboa, 2005; “A_maar_gato”.
Lisboa, Editorial Minerva, 2005; “À la Carbonara”. Lisboa, Apenas
Livros Lda, 2007. Em co-autoria com J.-C. Cabanel & Silvio Luis
Benítez Lopez; “A Boba”. Apenas Livros Editora, Lisboa, 2007;
“Tríptico a solo”. São Paulo, Editora Escrituras, 2007; “A poesia na
Óptica da Óptica”. Lisboa, Apenas Livros Lda, 2008; “Chão de papel”.
Apenas Livros Editora, Lisboa. 2009; “Geisers”. Bembibre, Ed.
Incomunidade, 2009; “Quem, às portas de Tebas? – Três artistas
modernos em Portugal”. Editora Arte-Livros, São Paulo, 2010.
“Tango Sebastião”. Apenas Livros Editora, Lisboa. 2010. «A obra ao
rubro de Herberto Helder», São Paulo, Editora Escrituras, 1010;
"Arboreto». São Paulo, Arte-Livros, 2011; "Risco da terra", Lisboa,
Apenas Livros, 2011; "Brasil", São Paulo, Arte-Livros, 2012; "Um
bilhete para o Teatro do Céu", Lisboa, Apenas Livros, 2013.
ALGUNS COLECTIVOS
"Poem'arte - nas margens da poesia". III Bienal de
Poesia de Silves, 2008, Câmara Municipal de Silves. Inclui CDRom
homónimo, com poemas ditos pelos elementos do grupo Experiment'arte.
“O reverso do olhar”, Exposição Internacional de Surrealismo Actual.
Coimbra, 2008; “Os dias do amor - Um poema para cada dia do ano”.
Parede, Ministério dos Livros Editores, 2009.
Entrada sobre a Carbonária no Dicionário
Histórico das Ordens e Instituições Afins em Portugal, Lisboa,
Gradiva Editora, 2010.
TEATRO
Multimedia “O
Lagarto do Âmbar, levado à cena em 1987, no ACARTE, Fundação
Calouste Gulbenkian, com direcção de Alberto Lopes e interpretação
de João Grosso, Ângela Pinto e Maria José Camecelha, e cenografia de
Xana; “A Boba”, levado à cena em 2008 no Teatro Experimental de
Cascais, com encenação de Carlos Avilez, cenografia de Fernando
Alvarez e interpretação de Maria Vieira.
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