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Três autores malditos: Herberto Helder, Luiz Pacheco e Manuel de
Castro
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Palestra na Escola Secundária de Vila Nova de Foz
Côa. «Encontros Literários», 27 de março de 2014
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A designação «maldito», aplicada a artistas, não
corresponde a uma censura nem a uma condenação por parte dos críticos e
historiadores. Pelo contrário, mostra que os reverenciamos, que temos na
conta de luminosa a obra que nos deixaram. O artista maldito é quase uma
personagem de tragédia, pelo muito sofrimento e desconcerto que vida e
obra revelam, e pelo valor que nós atribuímos a esses factos. Foi o
movimento romântico a criar o conceito. O romantismo pôs em cena o poeta
maldito para classificar artistas de muito valor e de vida conturbada. Ao
opor-se ao racionalismo clássico, ao valorizar o génio e a loucura, e com
estes a originalidade, o sentimento, a aventura longe das normas sociais,
ao trazer ao palco as lutas interiores do indivíduo com Deus e com o
Demónio, o romantismo também criou a figura do artista maldito.
Não espanta assim que os românticos tenham classificado
como maldito François Villon, poeta do século XV, cujo poema «Balada dos
enforcados» muito impressionou Herberto Helder – pelo menos duas vezes
usou a abertura, no poema «A máquina de emaranhar paisagens» e no livro
Servidões. Ladrão, boémio,
amante de beber e de andar à pancada, Villon é considerado um precursor do
romantismo. Bocage não anda longe desta imagem, e a ela acresce a vocação
satírica, expressa num poemário de cariz sexual. O que diz respeito ao
sexo é uma das vertentes que acompanham o poeta maldito. A sociedade ainda
hoje reprova o erotismo e a sexualidade, pelo muito que encerram de
subversivo, apesar de remontarem
a uma arte muito antiga, quantas vezes praticada por clérigos e na
escultura das catedrais. Diz-se «arte fescenina», foi praticada por gente
da Igreja nas escolas catedralícias. Estas escolas, assim chamadas por
estarem adstritas às catedrais, vieram a dar origem às universidades. Em
Coimbra ainda se reedita uma obra coletiva, com essas características
libertinas, O palito métrico. Entre os seus autores, contam-se padres. O título
alude à praxe que exigia dos caloiros que medissem a ponte sobre o Mondego
com um palito.
A tradição da literatura fescenina é a que melhor
define um dos três malditos que vos trago, Luiz Pacheco, autor de
O libertino passeia por Braga, a
idolátrica, o seu esplendor. Luiz Pacheco relacionou-se várias vezes
com meninas muito jovens e por isso respondeu perante a Justiça. Uma das
suas obras mais importantes,
Comunidade, retrata a vida marginal que levava, com mulher e filhos, e
sem meios de os sustentar. Viviam todos num quarto alugado. Há um pormenor
de Comunidade para mim inesquecível, de tão comovente: como o quarto
era muito pequeno, as crianças dormiam nos gavetões da cómoda.
Voltando aos românticos, Alfred de Vigny faz dizer a
uma personagem de teatro que a raça dos poetas é maldita pelos poderosos
da terra.
O poeta tem o dom da palavra, mas nem sempre agrada aos
poderosos o que os escritores têm para dizer. Por isso, logo que os
ditadores chegam ao poder, uma das suas primeiras medidas costuma ser a
imposição de censura. Na juventude de Luiz Pacheco, Herberto Helder e
Manuel de Castro, em Portugal os livros e jornais passavam pela censura
prévia, porque era proibido falar de certos assuntos, e não era só de
política que não se podia falar: de sexo, também não. Os três escritores
eram amigos, os três frequentavam o Café Gelo, onde se reuniam os
surrealistas portugueses. Herberto e Manuel de Castro chegaram a partilhar
a mesma casa por duas vezes. Luiz Pacheco morreu há uns quatro ou cinco
anos, mas Manuel de Castro morreu em 1971, muito jovem. Só Herberto Helder
ainda é vivo. Todos tiveram problemas por causa da censura.
Apresentação do rosto, um dos
primeiros livros de Herberto Helder, foi mesmo apreendido pela Polícia.
Na segunda metade do século XIX, o qualificativo «maldito»
ganhou raízes mais fundas quando Verlaine o usou na sua obra
Les poètes maudits, para classificar poetas como Mallarmé, Rimbaud e
outros. A partir daí o descritivo passa aos movimentos da modernidade, e
em Portugal encontramo-lo associado sobretudo aos surrealistas. Luiz
Pacheco, por exemplo, aplica-o a si
mesmo, em Textos malditos.
Então o que caracteriza a expressão «maldito»? A
maldição diz-se daqueles a quem grandes desgraças acontecem, como se os
deuses os tivessem abandonado ou estivessem castigando. Em parte assim é,
ninguém busca deliberadamente para si a infelicidade. Porém, encontramos
muitas vezes uma opção de vida tão fora do comum que leva a que se
considere maldito o autor. Essa opção é em geral a mesma por parte de
todos os artistas, diz respeito à rejeição do modo de vida habitual dos
cidadãos. O artista foge à vulgaridade, sobretudo quando a vulgaridade
decorre de sistemas de ideias opressivos, limitadores da liberdade. Então
entram num ciclo de ruptura com as instituições, a começar pela família,
que os refreia. Nenhuma família normal quer para os filhos o destino de
poeta, sabendo que isso pode trazer fama, mas com mais certeza trará
pobreza e infelicidade. A sociedade levanta obstáculos ao artista, por
isso os artistas rejeitam a sociedade, a família, a moral e o sistema
político. Rejeitam tudo, incluída a arte que esse sistema apadrinha ou
promove, pois, para ser aceite pelos poderosos, tem de calar a boca.
A arte conforme os modelos em vigor é em geral a
oriunda das instituições - academias e universidades. Daí que a grande
confrontação se estabeleça normalmente entre académicos e não-académicos.
Os malditos estão do lado dos contestatários. Um dos mais famosos libelos
contra os académicos, em Portugal, foi o
Manifesto anti-Dantas. O autor,
Almada Negreiros, declamou o poema subindo para cima de uma mesa do café
«A Brasileira», no Chiado – foi um escândalo. Júlio Dantas, um escritor
tão bem comportado que era presidente da Academia das Ciências de Lisboa,
tornou-se o símbolo do academismo, apesar de ter obras deliciosas, que eu
não consideraria académicas, caso de
O amor em Portugal no século XVIII. Toda a gente conhece a declaração
de guerra «Morra o Dantas, morra, pim!», que representa aquilo que todos
os artistas da modernidade condenam: o academismo, com a sua sujeição às
regras.
Nesta situação difícil, porque o autor contestatário é
um marginal que a sociedade e o Poder não prezam ou perseguem, o maldito
leva uma vida materialmente precária. Os trabalhos efémeros e mal
remunerados não lhe permitem uma vida invejável. Luiz Pacheco recorria à
mendicidade. É sabido que ele pedia «vinte paus» a este e àquele. Alçada
Baptista, Mário Soares e outros amigos ajudavam-no, apesar de
frequentemente serem vítimas da maledicência de Luiz Pacheco – a maior
parte dos seus livros reúne crónicas de maldizer. Eu mandei-lhe os vinte
paus uma vez pelo correio, embrulhados em papel higiénico, porque ele mos
tinha pedido num bilhete que acompanhava um livro que me tinha mandado
também pelo correio. O livro vinha embrulhado em papel higiénico e pensei
que era de propósito para me ofender. Só há poucos anos conversámos sobre
o assunto e ele me disse que fazia isso com toda a gente - não tinha
dinheiro para envelopes almofadados.
A vida à margem fica sujeita a sanções, a sociedade
reprova o que considera imoral. Rimbaud, um poeta admirável, dos primeiros
a quem foi aplicado o epíteto de «maldito», ia sendo assassinado a tiro
por Verlaine, seu companheiro. Morreu muito jovem, vítima de cancro,
depois de ter trocado a curta vida de poeta pela de traficante de café e
armas.
Herberto Helder é muito sensível à distinção entre
originalidade e academismo, entre revolta e escravidão às regras. Tão
sensível que no seu livro mais recente,
Servidões, o anti-academismo é
um tópico repetido. Este poeta está em ruptura com todas as instituições,
a começar pela língua: ele escreve contra as regras da gramática; está em
ruptura com a sociedade, não se mostrando em público; e os seus próprios
sentimentos são vigiados, quando se previne: «acautela a tua dor, não se
torne académica».
Os malditos têm sempre um drama recuado, vivido na infância, ou que
acompanha os seus movimentos diários. Luiz Pacheco, num artigo sobre
Manuel de Castro, fala de um drama de Herberto Helder, mas não diz qual é.
Herberto perdeu a mãe em criança, não sei em que circunstâncias, e por
isso ignoro se o drama será esse. Sei é dos dramas dos artistas amigos
deles, companheiros das tertúlias no Café Gelo, porque Herberto Helder
no-los revela num artigo publicado em Luanda (Notícia,
18 de setembro de 1971) sobre a morte de Manuel de Castro. Escreve ele: «o
Gonçalo Duarte e o António Gancho enlouqueceram, o João Rodrigues, o
Manuel d’ Assumpção e o Pressler suicidaram-se, o Luiz Pacheco e o Manuel
de Castro entram e saem dos hospitais para fazer e desfazer curas de
desintoxicação alcoólica. Agora foi-me dito que, com o Manuel de Castro,
já se poderia contar com um cadáver definitivo».
A morte precoce, por suicídio ou outra razão violenta,
costuma ensombrar a biografia destes autores, dando peso à maldição.
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Manuel de Castro só agora está a ser
descoberto. É um poeta altíssimo que a bem dizer ninguém conhece
ainda. Em vida, publicou apenas dois livros pequenos, Paralelo
W e A estrela rutilante. Graças a esforços de
amigos e admiradores, saiu no final do ano passado um volume que
junta a esses dois livros uma série de poemas publicados
dispersamente, Bonsoir, Madame. O próximo número da revista
Ideia, organizado por António Cândido Franco, é dedicado a
Manuel de Castro. |
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Manuel de
Castro |
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A propósito da publicação de
Bonsoir, Madame, Joana Emídio
Marques publicou no Diário de
Notícias (DN, 8 de fevereiro
de 2014) um artigo que nos presta bom número de informações sobre este
poeta, que aos trinta anos parecia um velho e escreve dos mais lancinantes
poemas da nossa literatura. Entre essas informações, a de que Manuel de
Castro vira o pai espancar «mortalmente» a mãe. Fiquei tão transtornada
que pedi para corrigir o meu artigo para a
Ideia, no qual tinha escrito que
o pai espancara a mãe «até à morte». Comecei a pensar que espancar
mortalmente era diferente de espancar a até à morte, e que ela podia não
ter morrido. Como António Cândido Franco também estava perplexo e não me
sabia confirmar o facto, deu-me o endereço da jornalista para lhe
perguntar sem rodeios: o pai de Manuel matou a esposa? Sim. Joana Emídio
confirmou a informação, dizendo que lhe tinha sido prestada por Helder
Macedo. Era frequente o pai espancar a mãe. Na sequência de um desses
espancamentos, presenciado pela criança, ela morreu.
Mais não digo, a não
ser este soneto de Manuel de Castro:
Houve um apelo ao deus que me conduz
à solidão sem regresso e sem perdão…
O caminho decidido até à luz
é meu tema, meu desastre e meu condão…
Sagrei os olhos para um novo mundo…
Porém…, porém…, o fio daquela adaga
que grava a claridade do mais profundo
de cada um… desfez a Saga
do coração. Um dia alguém virá contar
a história do semi-vivo homem…
Alguém lerá, cintil, no ar,
a origem do antigo sofrimento.
E encontrará a grande mãe,
a Terra. E seu abraço enorme e lento.
Manuel de Castro,
Bonsoir, Madame
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Maria Estela Guedes
(1947, Britiande / Portugal). Diretora do Triplov
Membro da Associação Portuguesa de Escritores,
da Sociedade Portuguesa de Autores, do Centro Interdisciplinar da Universidade de Lisboa e do Instituto São Tomás de Aquino. Directora do TriploV.
LIVROS
“Herberto Helder,
Poeta Obscuro”. Moraes Editores, Lisboa, 1979; “SO2” .
Guimarães Editores, Lisboa, 1980; “Eco, Pedras Rolantes”, Ler
Editora, Lisboa, 1983; “Crime no Museu de Philosophia Natural”,
Guimarães Editores, Lisboa, 1984; “Mário de Sá Carneiro”. Editorial
Presença, Lisboa, 1985; “O Lagarto do Âmbar”. Rolim Editora, Lisboa,
1987; “Ernesto de Sousa – Itinerário dos Itinerários”. Galeria
Almada Negreiros, Lisboa, 1987 (colaboração e co-organização); “À
Sombra de Orpheu”. Guimarães Editores e Associação Portuguesa de
Escritores, Lisboa, 1990; “Prof. G. F. Sacarrão”. Lisboa. Museu
Nacional de História Natural-Museu Bocage, 1993; “Carbonários :
Operação Salamandra: Chioglossa lusitanica Bocage, 1864”. Em
colaboração com Nuno Marques Peiriço. Palmela, Contraponto Editora,
1998; “Lápis de Carvão”. Apenas Livros Editora, Lisboa, 2005; “A_maar_gato”.
Lisboa, Editorial Minerva, 2005; “À la Carbonara”. Lisboa, Apenas
Livros Lda, 2007. Em co-autoria com J.-C. Cabanel & Silvio Luis
Benítez Lopez; “A Boba”. Apenas Livros Editora, Lisboa, 2007;
“Tríptico a solo”. São Paulo, Editora Escrituras, 2007; “A poesia na
Óptica da Óptica”. Lisboa, Apenas Livros Lda, 2008; “Chão de papel”.
Apenas Livros Editora, Lisboa. 2009; “Geisers”. Bembibre, Ed.
Incomunidade, 2009; “Quem, às portas de Tebas? – Três artistas
modernos em Portugal”. Editora Arte-Livros, São Paulo, 2010.
“Tango Sebastião”. Apenas Livros Editora, Lisboa. 2010. «A obra ao
rubro de Herberto Helder», São Paulo, Editora Escrituras, 1010;
"Arboreto». São Paulo, Arte-Livros, 2011; "Risco da terra", Lisboa,
Apenas Livros, 2011; "Brasil", São Paulo, Arte-Livros, 2012; "Um
bilhete para o Teatro do Céu", Lisboa, Apenas Livros, 2013.
ALGUNS COLECTIVOS
"Poem'arte - nas margens da poesia". III Bienal de
Poesia de Silves, 2008, Câmara Municipal de Silves. Inclui CDRom
homónimo, com poemas ditos pelos elementos do grupo Experiment'arte.
“O reverso do olhar”, Exposição Internacional de Surrealismo Actual.
Coimbra, 2008; “Os dias do amor - Um poema para cada dia do ano”.
Parede, Ministério dos Livros Editores, 2009.
Entrada sobre a Carbonária no Dicionário Histórico das Ordens e
Instituições Afins em Portugal, Lisboa, Gradiva Editora, 2010; «A
minha vida vista do papel», in Ana Maria Haddad Baptista & Rosemary
Roggero, Tempo-Memória na Educação. São Paulo, 2014.
TEATRO
Multimedia “O
Lagarto do Âmbar, levado à cena em 1987, no ACARTE, Fundação
Calouste Gulbenkian, com direcção de Alberto Lopes e interpretação
de João Grosso, Ângela Pinto e Maria José Camecelha, e cenografia de
Xana; “A Boba”, levado à cena em 2008 no Teatro Experimental de
Cascais, com encenação de Carlos Avilez, cenografia de Fernando
Alvarez e interpretação de Maria Vieira.
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