MARIA ESTELA GUEDES
Foto: Ed. Guimarães
Música: http://triplov.com/letras/mario_montaut/Estela/index.htm

Mestre Herberto Helder
Edição original em: http://www.incomunidade.com/v24/

lá está o cabrão do velho no deserto, último piso esquerdo,
que nem o Diabo ousa
ouvi-lo
quanto mais os anjos do Senhor, os pintaínhos!

Herberto Helder, A morte sem mestre

O alto e o baixo


A morte sem mestre, último livro de Herberto Helder, tal como os imediatamente anteriores, em especial Servidões, tem deixado perplexos muitos leitores, que reclamam pelos seus “altos e baixos”. Por baixos, veja-se o poema em epígrafe, entendam-se o andamento de prosa, e mesmo de conversa de café, em certos momentos, com o léxico próprio de tais ocasiões, na boca dos nossos homens, todos eles machistas (com a sua única exceção…): “gajo”, “porreiro”, etc., e ainda pior. Por “baixos” entendam-se ainda estes descritivos aplicados ao mais sagrado dos sagrados assuntos, na nossa cultura católica, Deus, Jesus Cristo, corte de anjos e santos.

Concordo com os leitores em que nos últimos livros se manifesta como impressionante fratura o que é do domínio do alto e o que é do domínio do baixo, com a agravante de que, como reza a tábua de esmeralda, o que está em cima é igual ao que está em baixo, inversamente e o mesmo para o que está dentro e o que está fora. A escatologia, nos dois sentidos da questão - conhecimento das fezes e conhecimento do que está para além da morte - esteiam essa fratura que é igualmente a homologação patente no texto alquímico. Assim, se o que é divino tem tratamento merdífero, já o que a nossa cultura tende a considerar baixo, como os órgãos genitais e adjacentes, é posto em cima, num altar, e com chapéu (acento circunflexo), para cumprimento do que manda o grande cerimonial. É mesmo com esse grande cerimonial, e reconhecimento de elevação do baixo ao alto, que acedemos ao intróito de A morte sem mestre:

nunca estive numa só linha a tão vertiginosa altura,
oh Anjo Príapo, oh Nossa Senhora Côna!

Podia o poeta cair da mais alta torre, como cantou Rimbaud, e por delicadeza perder como ele a vida, mas não, consegue aguentar-se à beira do precipício das pequenas palavras.

Algures, Miguel Esteves Cardoso considerou este livro um testamento. Com efeito, o testamento participa dos rituais da morte. Além disso, a principal referência literária desta obra de Herberto Helder, com respetivas citações, conduz os leitores ao Novo Testamento, cenas finais da vida de Cristo, com a inevitável censura ao Pai pelo abandono: “Eli, Eli, lamna sabachthani?” Quem Herberto elegeu para deuses do seu panteão, aqueles que o colocam em vertiginosa altura, já o vimos nos dois versos anteriores, por isso não espanta que, contra o abandono paterno, ele reconheça não ter sido abandonado por alguém, alguém sem nome, ou com ele misturado com as palavras do livro, alguém que no entanto avança em pontas, desenhado em corpo e movimento femininos, uma mulher habilidosa a congeminar milagres:

anda como quem dança, o cabelo apartado ao meio,
vista de todos os ângulos como no cinema,
magnificamente manobrada por esta luz não assim tão
                              lenta que nos há-de a todos devorar,
não, não me abandonaste,
as tuas mãos abundantes congeminam milagres atrás de milagres,
 

Sem prejuízo do testamento, ponho entretanto como mais curioso o estatuto de confissão de A morte sem mestre, e vou anotando que ela perdeu todo o caráter terrífico, a partir do momento em que a Igreja passou a permitir ao católico participar na comunhão sem debitar antes, de joelhos, a um invisível potencial maior prevaricador, um rol de ações na maior parte respeitantes ao corpo, sobre o qual nenhuns direitos ao padre assistem. Em suma, o poeta confessa. O quê? Mais importante – para os leitores – do que aquilo que confessa é o ato escrito da confissão, os poemas.

 
Em cima, Herberto Helder fotografado por Alberto Lacerda. Em: http://assirioealvim.blogspot.pt/2013/11/herberto-helder-23111930.html
Em baixo, texto original da Tábua de Esmeralda. Na wikipédia:
http://pt.wikipedia.org/wiki/T%C3%A1bua_de_esmeralda
O bestiário herbertiano

 

O que os baixos herbertianos têm vindo a provocar entre os leitores não é só a reclamação pela perda da sublime beleza da sua poesia de juventude, a exemplo de O amor em visita. É também o riso. Falta agora, e não antes, porque antes a poesia de Herberto tendia mais para uma linguagem arrebatadora, e não comportava estímulos evidentes ao riso, falta agora, sim, um estudo do seu cómico. Ele irrompe a partir de várias situações desencontradas, em especial da desproporção entre o valor real dos atos e aquele que o poeta lhes atribui, entre o que ele vale para nós e o desvalor que se atribui, postado em seu assento etéreo, lá no mundo dos deuses, ou cá em baixo, no estábulo. Porque já falei das flores na sua obra, e ocasionalmente terei mencionado, no mundo inorgânico, os colares de pérolas e outras pedrarias, apetece hoje chamar a atenção para o bestiário.

Figuram, nos livros deste poeta, dezenas de espécies animais, desde as europeias às africanas, asiáticas e americanas, dadas as versões de poemas étnicos,  desde as domésticas às selvagens, desde as reais às zodiacais, a merecerem levantamento e análise. Porque todas contribuem para iluminar os versos e mostrar de onde vem a luz da inspiração.

Neste livro, dominado por forças baixas, corrosivas, dececionadas com a impotência do que a nossa cultura coroa de louros (os mitos não se cumprem), reinam os animais domésticos, inofensivos, ao contrário dos dois livros anteriores, que nos apresentam predadores na figura do lobo e da sua respetiva fêmea. Em A morte sem mestre, não encontramos cobras, tigres, lobos nem águias, ainda menos águias bicéfalas, por exemplo, a representar forças e poderes supremos, antes os pintainhos do poema com que abri este artigo. Pese ao angelismo e outras correntes místicas próprias do nosso tempo, os anjos de Deus nem são dragões nem descendentes dos dinossauros, aliás nem galos, nem galinhas, nem pintos são, apenas amorosamente piegas pintainhos.

Lendo com atenção, aqui e ali pastam ou debicam outras espécies, na maior parte familiares, como o cão (em que o poeta se antevê na sua perspetiva escatológica) “deitado à fossa”, o quase idêntico “pilha-galinhas”, os repetidos gatos, gatos que são poemas, por isso “bufam e arranham” na gataria do livro. Também encontramos mulheres e raparigas que são cadelas, dei conta de uma cabra, isto é, o poeta aspira a raparigas “que cheirem a cabra ou a jasmim” e algures paira sobre uma flor a delicadeza de um lepidóptero. Por extenso, modo geral de designar todos os inquilinos dos zoos e quintais, “o bruto” também faz a sua aparição, e também ele na cerimónia confessional, batendo com a mão no peito. 

Vamos lá, temos ao que parece um enorme poeta com medo, não da morte, sim de que a sua obra mereça pouco, daí a confissão, para que, expondo-o, se proceda à “purificação do esterco”.  

Desnecessário chamar a atenção de quem já leu o livro para a primazia, neste bestiário, quer quantitativa quer qualitativa, do burro, e também é fácil adivinhar quem Herberto classifica como tal, ele que parece interrogar-se sobre as vantagens de ter trocado a família pela bic preta de esfera fina e pelo papel quadriculado e teima, a despeito das suspeitas, em querer morrer dentro de um poema. A família é autofágica, mata, destrói tudo. A poesia concede um pouco de eternidade. O preço é muito alto, o poeta não é destruído, mas é ele o destruidor.

A comédia assenta na tragédia, é compreensível o balanço de vida, o perguntar sem resposta convincente, nem do alto nem do baixo. Por isso só mais dois animais a rematar, ambos tão míticos um como o outro: o leão vermelho e a mulher.

O leão vermelho, que aguarda o poeta atrás da porta, tem sido identificado com S. João, o da cabeça mandada cortar por Salomé. Escreve o poeta: 

estava o rei em suas câmaras dolorosas e ordenou as músicas,

e perguntou alguém: ?Salomé, a cabeça de S. João Baptista

sangrando numa bandeja de ouro?

(não a cômo! – gritou ele),  

O leão vermelho é ouro potável, fogo sagrado, o sémen, na literatura dos alquimistas. Em A morte sem mestre, essa figura também se vai metamorfoseando. Transmuta-se em estrela, em mulher, em deusa, em musa – é a poesia, a companheira.

E resta a mulher como animal sagrado, leão vermelho que habita o poeta, essa que sempre o espanta e o espera, essa que ameaça levar-lhe a cabeça, essa que, em dimensão aliás modesta, doméstica, diferentemente do Pai, nunca o abandonou. Oxalá continue a dar-lhe abrigo e alimento, bem como o fogo da ressurreição: 

- só lhe falta a rapariga esquiva que ele pense que é um

                                                                                       enigma, 

só lhe falta saber tudo,

só lhe falta a mulher para morrer com ele,

a mulher que só há nele, 

Livro magnífico, na sua beleza ao alto e no seu perigoso esterco em baixo, fruto de meditação e consequente auto-reconhecimento, A morte sem mestre é obra de quem já não pode escapar ao seu destino de mestre, por muito que vida e morte nos provem que somos apenas aprendizes.

Não, as cinzas de Herberto Helder não serão atiradas à fossa.

 
HERBERTO HELDER
A morte sem mestre
Porto Editora, 2014
Inclui CD com alguns poemas ditos pelo autor)
 

Porto, Hotel Poveira, 30 de junho de 2014
Maria Estela Guedes

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Maria Estela Guedes (1947, Britiande / Portugal). Diretora do Triplov

Membro da Associação Portuguesa de Escritores, da Sociedade Portuguesa de Autores, do Centro Interdisciplinar da Universidade de Lisboa e do Instituto São Tomás de Aquino. Directora do TriploV.

LIVROS

“Herberto Helder, Poeta Obscuro”. Moraes Editores, Lisboa, 1979;  “SO2” . Guimarães Editores, Lisboa, 1980; “Eco, Pedras Rolantes”, Ler Editora, Lisboa, 1983; “Crime no Museu de Philosophia Natural”, Guimarães Editores, Lisboa, 1984; “Mário de Sá Carneiro”. Editorial Presença, Lisboa, 1985; “O Lagarto do Âmbar”. Rolim Editora, Lisboa, 1987; “Ernesto de Sousa – Itinerário dos Itinerários”. Galeria Almada Negreiros, Lisboa, 1987 (colaboração e co-organização); “À Sombra de Orpheu”. Guimarães Editores e Associação Portuguesa de Escritores, Lisboa, 1990; “Prof. G. F. Sacarrão”. Lisboa. Museu Nacional de História Natural-Museu Bocage, 1993; “Carbonários : Operação Salamandra: Chioglossa lusitanica Bocage, 1864”. Em colaboração com Nuno Marques Peiriço. Palmela, Contraponto Editora, 1998; “Lápis de Carvão”. Apenas Livros Editora, Lisboa, 2005; “A_maar_gato”. Lisboa, Editorial Minerva, 2005; “À la Carbonara”. Lisboa, Apenas Livros Lda, 2007. Em co-autoria com J.-C. Cabanel & Silvio Luis Benítez Lopez; “A Boba”. Apenas Livros Editora, Lisboa, 2007; “Tríptico a solo”. São Paulo, Editora Escrituras, 2007; “A poesia na Óptica da Óptica”. Lisboa, Apenas Livros Lda, 2008; “Chão de papel”. Apenas Livros Editora, Lisboa. 2009; “Geisers”. Bembibre, Ed. Incomunidade, 2009; “Quem, às portas de Tebas? – Três artistas modernos em Portugal”. Editora Arte-Livros, São Paulo, 2010. “Tango Sebastião”. Apenas Livros Editora, Lisboa. 2010. «A obra ao rubro de Herberto Helder», São Paulo, Editora Escrituras, 1010; "Arboreto». São Paulo, Arte-Livros, 2011; "Risco da terra", Lisboa, Apenas Livros, 2011; "Brasil", São Paulo, Arte-Livros, 2012; "Um bilhete para o Teatro do Céu", Lisboa, Apenas Livros, 2013.

ALGUNS COLECTIVOS

"Poem'arte - nas margens da poesia". III Bienal de Poesia de Silves, 2008, Câmara Municipal de Silves. Inclui CDRom homónimo, com poemas ditos pelos elementos do grupo Experiment'arte. “O reverso do olhar”, Exposição Internacional de Surrealismo Actual. Coimbra, 2008; “Os dias do amor - Um poema para cada dia do ano”. Parede, Ministério dos Livros Editores, 2009. Entrada sobre a Carbonária no Dicionário Histórico das Ordens e Instituições Afins em Portugal, Lisboa, Gradiva Editora, 2010; «A minha vida vista do papel», in Ana Maria Haddad Baptista & Rosemary Roggero, Tempo-Memória na Educação. São Paulo, 2014.

TEATRO

Multimedia “O Lagarto do Âmbar, levado à cena em 1987, no ACARTE, Fundação Calouste Gulbenkian, com direcção de Alberto Lopes e interpretação de João Grosso, Ângela Pinto e Maria José Camecelha, e cenografia de Xana; “A Boba”, levado à cena em 2008 no Teatro Experimental de Cascais, com encenação de Carlos Avilez, cenografia de Fernando Alvarez  e interpretação de Maria Vieira.