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Mestre Herberto Helder |
Edição original em:
http://www.incomunidade.com/v24/ |
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lá está o cabrão do velho no deserto, último piso
esquerdo, que nem o Diabo ousa ouvi-lo quanto mais os anjos do
Senhor, os pintaínhos!
Herberto Helder, A morte sem mestre
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O alto e o baixo
A morte sem mestre, último livro de
Herberto Helder, tal como os imediatamente anteriores, em especial
Servidões, tem deixado perplexos muitos leitores, que reclamam pelos
seus “altos e baixos”. Por baixos, veja-se o poema em epígrafe,
entendam-se o andamento de prosa, e mesmo de conversa de café, em certos
momentos, com o léxico próprio de tais ocasiões, na boca dos nossos
homens, todos eles machistas (com a sua única exceção…): “gajo”,
“porreiro”, etc., e ainda pior. Por “baixos” entendam-se ainda estes
descritivos aplicados ao mais sagrado dos sagrados assuntos, na nossa
cultura católica, Deus, Jesus Cristo, corte de anjos e santos.
Concordo com os leitores em que nos últimos livros se
manifesta como impressionante fratura o que é do domínio do alto e o que é
do domínio do baixo, com a agravante de que, como reza a
tábua de
esmeralda, o que está em cima é igual ao que está em baixo,
inversamente e o mesmo para o que está dentro e o que está fora. A
escatologia, nos dois sentidos da questão - conhecimento das fezes e
conhecimento do que está para além da morte - esteiam essa fratura que é
igualmente a homologação patente no texto alquímico. Assim, se o que é
divino tem tratamento merdífero, já o que a nossa cultura tende a
considerar baixo, como os órgãos genitais e adjacentes, é posto em cima,
num altar, e com chapéu (acento circunflexo), para cumprimento do que
manda o grande cerimonial. É mesmo com esse grande cerimonial, e
reconhecimento de elevação do baixo ao alto, que acedemos ao intróito de
A morte sem mestre:
nunca estive numa só linha a tão vertiginosa
altura, oh Anjo Príapo, oh Nossa Senhora Côna!
Podia o poeta cair da mais alta torre, como cantou
Rimbaud, e por delicadeza perder como ele a vida, mas não, consegue
aguentar-se à beira do precipício das pequenas palavras.
Algures, Miguel Esteves Cardoso considerou este livro
um testamento. Com efeito, o testamento participa dos rituais da morte.
Além disso, a principal referência literária desta obra de Herberto
Helder, com respetivas citações, conduz os leitores ao Novo Testamento,
cenas finais da vida de Cristo, com a inevitável censura ao Pai pelo
abandono: “Eli, Eli, lamna sabachthani?” Quem Herberto elegeu para deuses
do seu panteão, aqueles que o colocam em vertiginosa altura, já o vimos
nos dois versos anteriores, por isso não espanta que, contra o abandono
paterno, ele reconheça não ter sido abandonado por alguém, alguém sem
nome, ou com ele misturado com as palavras do livro, alguém que no entanto
avança em pontas, desenhado em corpo e movimento femininos, uma mulher
habilidosa a congeminar milagres:
anda como quem dança, o cabelo apartado ao meio,
vista de todos os ângulos como no cinema, magnificamente manobrada por
esta luz não assim tão
lenta que nos há-de a todos devorar, não, não me abandonaste, as
tuas mãos abundantes congeminam milagres atrás de milagres,
Sem prejuízo do testamento, ponho entretanto como mais
curioso o estatuto de confissão de A morte sem mestre, e vou
anotando que ela perdeu todo o caráter terrífico, a partir do momento em
que a Igreja passou a permitir ao católico participar na comunhão sem
debitar antes, de joelhos, a um invisível potencial maior prevaricador, um
rol de ações na maior parte respeitantes ao corpo, sobre o qual nenhuns
direitos ao padre assistem. Em suma, o poeta confessa. O quê? Mais
importante – para os leitores – do que aquilo que confessa é o ato escrito
da confissão, os poemas.
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O bestiário herbertiano |
O que os baixos herbertianos têm vindo a provocar entre
os leitores não é só a reclamação pela perda da sublime beleza da sua
poesia de juventude, a exemplo de O amor em visita. É também o
riso. Falta agora, e não antes, porque antes a poesia de Herberto tendia
mais para uma linguagem arrebatadora, e não comportava estímulos evidentes
ao riso, falta agora, sim, um estudo do seu cómico. Ele irrompe a partir
de várias situações desencontradas, em especial da desproporção entre o
valor real dos atos e aquele que o poeta lhes atribui, entre o que ele
vale para nós e o desvalor que se atribui, postado em seu assento etéreo,
lá no mundo dos deuses, ou cá em baixo, no estábulo. Porque já falei das
flores na sua obra, e ocasionalmente terei mencionado, no mundo
inorgânico, os colares de pérolas e outras pedrarias, apetece hoje chamar
a atenção para o bestiário.
Figuram, nos livros deste poeta, dezenas de espécies
animais, desde as europeias às africanas, asiáticas e americanas, dadas as
versões de poemas étnicos,
desde as domésticas às selvagens, desde as reais às zodiacais, a merecerem
levantamento e análise. Porque todas contribuem para iluminar os versos e
mostrar de onde vem a luz da inspiração.
Neste livro, dominado por forças baixas, corrosivas,
dececionadas com a impotência do que a nossa cultura coroa de louros (os
mitos não se cumprem), reinam os animais domésticos, inofensivos, ao
contrário dos dois livros anteriores, que nos apresentam predadores na
figura do lobo e da sua respetiva fêmea. Em A morte sem mestre,
não encontramos cobras, tigres, lobos nem águias, ainda menos águias
bicéfalas, por exemplo, a representar forças e poderes supremos, antes os
pintainhos do poema com que abri este artigo. Pese ao angelismo e outras
correntes místicas próprias do nosso tempo, os anjos de Deus nem são
dragões nem descendentes dos dinossauros, aliás nem galos, nem galinhas,
nem pintos são, apenas amorosamente piegas pintainhos.
Lendo com atenção, aqui e ali pastam ou debicam outras
espécies, na maior parte familiares, como o cão (em que o poeta se antevê
na sua perspetiva escatológica) “deitado à fossa”, o quase idêntico
“pilha-galinhas”, os repetidos gatos, gatos que são poemas, por isso
“bufam e arranham” na gataria do livro. Também encontramos mulheres e
raparigas que são cadelas, dei conta de uma cabra, isto é, o poeta aspira
a raparigas “que cheirem a cabra ou a jasmim” e algures paira sobre uma
flor a delicadeza de um lepidóptero. Por extenso, modo geral de designar
todos os inquilinos dos zoos e quintais, “o bruto” também faz a sua
aparição, e também ele na cerimónia confessional, batendo com a mão no
peito.
Vamos lá, temos ao que parece um enorme poeta com medo,
não da morte, sim de que a sua obra mereça pouco, daí a confissão, para
que, expondo-o, se proceda à “purificação do esterco”.
Desnecessário chamar a atenção de quem já leu o livro
para a primazia, neste bestiário, quer quantitativa quer qualitativa, do
burro, e também é fácil adivinhar quem Herberto classifica como tal, ele
que parece interrogar-se sobre as vantagens de ter trocado a família pela
bic preta de esfera fina e pelo papel quadriculado e teima, a despeito das
suspeitas, em querer morrer dentro de um poema. A família é autofágica,
mata, destrói tudo. A poesia concede um pouco de eternidade. O preço é
muito alto, o poeta não é destruído, mas é ele o destruidor.
A comédia assenta na tragédia, é compreensível o
balanço de vida, o perguntar sem resposta convincente, nem do alto nem do
baixo. Por isso só mais dois animais a rematar, ambos tão míticos um como
o outro: o leão vermelho e a mulher.
O leão vermelho, que aguarda o poeta atrás da porta,
tem sido identificado com S. João, o da cabeça mandada cortar por Salomé.
Escreve o poeta:
estava o rei em suas câmaras dolorosas e ordenou as
músicas,
e perguntou alguém: ?Salomé, a cabeça de S. João
Baptista
sangrando numa bandeja de ouro?
(não a cômo! – gritou ele),
O leão vermelho é ouro potável, fogo sagrado, o sémen,
na literatura dos alquimistas. Em A morte sem mestre, essa figura
também se vai metamorfoseando. Transmuta-se em estrela, em mulher, em
deusa, em musa – é a poesia, a companheira.
E resta a mulher como animal sagrado, leão vermelho que
habita o poeta, essa que sempre o espanta e o espera, essa que ameaça
levar-lhe a cabeça, essa que, em dimensão aliás modesta, doméstica,
diferentemente do Pai, nunca o abandonou. Oxalá continue a dar-lhe abrigo
e alimento, bem como o fogo da ressurreição:
- só lhe falta a rapariga esquiva que ele pense que
é um
enigma,
só lhe falta saber tudo,
só lhe falta a mulher para morrer com ele,
a mulher que só há nele,
Livro magnífico, na sua beleza ao alto e no seu
perigoso esterco em baixo, fruto de meditação e consequente
auto-reconhecimento, A morte sem mestre é obra de quem já não
pode escapar ao seu destino de mestre, por muito que vida e morte nos
provem que somos apenas aprendizes.
Não, as cinzas de Herberto Helder não serão atiradas à
fossa.
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HERBERTO HELDER A morte sem mestre Porto Editora, 2014 Inclui CD
com alguns poemas ditos pelo autor) |
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Porto, Hotel
Poveira, 30 de junho de 2014 Maria Estela Guedes
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Índice antigo |
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Maria Estela Guedes
(1947, Britiande / Portugal). Diretora do Triplov
Membro da Associação Portuguesa de Escritores,
da Sociedade Portuguesa de Autores, do Centro Interdisciplinar da Universidade de Lisboa e do Instituto São Tomás de Aquino. Directora do TriploV.
LIVROS
“Herberto Helder,
Poeta Obscuro”. Moraes Editores, Lisboa, 1979; “SO2” .
Guimarães Editores, Lisboa, 1980; “Eco, Pedras Rolantes”, Ler
Editora, Lisboa, 1983; “Crime no Museu de Philosophia Natural”,
Guimarães Editores, Lisboa, 1984; “Mário de Sá Carneiro”. Editorial
Presença, Lisboa, 1985; “O Lagarto do Âmbar”. Rolim Editora, Lisboa,
1987; “Ernesto de Sousa – Itinerário dos Itinerários”. Galeria
Almada Negreiros, Lisboa, 1987 (colaboração e co-organização); “À
Sombra de Orpheu”. Guimarães Editores e Associação Portuguesa de
Escritores, Lisboa, 1990; “Prof. G. F. Sacarrão”. Lisboa. Museu
Nacional de História Natural-Museu Bocage, 1993; “Carbonários :
Operação Salamandra: Chioglossa lusitanica Bocage, 1864”. Em
colaboração com Nuno Marques Peiriço. Palmela, Contraponto Editora,
1998; “Lápis de Carvão”. Apenas Livros Editora, Lisboa, 2005; “A_maar_gato”.
Lisboa, Editorial Minerva, 2005; “À la Carbonara”. Lisboa, Apenas
Livros Lda, 2007. Em co-autoria com J.-C. Cabanel & Silvio Luis
Benítez Lopez; “A Boba”. Apenas Livros Editora, Lisboa, 2007;
“Tríptico a solo”. São Paulo, Editora Escrituras, 2007; “A poesia na
Óptica da Óptica”. Lisboa, Apenas Livros Lda, 2008; “Chão de papel”.
Apenas Livros Editora, Lisboa. 2009; “Geisers”. Bembibre, Ed.
Incomunidade, 2009; “Quem, às portas de Tebas? – Três artistas
modernos em Portugal”. Editora Arte-Livros, São Paulo, 2010.
“Tango Sebastião”. Apenas Livros Editora, Lisboa. 2010. «A obra ao
rubro de Herberto Helder», São Paulo, Editora Escrituras, 1010;
"Arboreto». São Paulo, Arte-Livros, 2011; "Risco da terra", Lisboa,
Apenas Livros, 2011; "Brasil", São Paulo, Arte-Livros, 2012; "Um
bilhete para o Teatro do Céu", Lisboa, Apenas Livros, 2013.
ALGUNS COLECTIVOS
"Poem'arte - nas margens da poesia". III Bienal de
Poesia de Silves, 2008, Câmara Municipal de Silves. Inclui CDRom
homónimo, com poemas ditos pelos elementos do grupo Experiment'arte.
“O reverso do olhar”, Exposição Internacional de Surrealismo Actual.
Coimbra, 2008; “Os dias do amor - Um poema para cada dia do ano”.
Parede, Ministério dos Livros Editores, 2009.
Entrada sobre a Carbonária no Dicionário Histórico das Ordens e
Instituições Afins em Portugal, Lisboa, Gradiva Editora, 2010; «A
minha vida vista do papel», in Ana Maria Haddad Baptista & Rosemary
Roggero, Tempo-Memória na Educação. São Paulo, 2014.
TEATRO
Multimedia “O
Lagarto do Âmbar, levado à cena em 1987, no ACARTE, Fundação
Calouste Gulbenkian, com direcção de Alberto Lopes e interpretação
de João Grosso, Ângela Pinto e Maria José Camecelha, e cenografia de
Xana; “A Boba”, levado à cena em 2008 no Teatro Experimental de
Cascais, com encenação de Carlos Avilez, cenografia de Fernando
Alvarez e interpretação de Maria Vieira.
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