Ser surrealista, romântico ou realista, não se comprova
com cartões de identidade, por isso os núcleos de temas e práticas que
suportam essas etiquetas dispõem em geral de afixos como «pré», «pós»,
«hiper», «ultra», «avant la lettre» e, no caso vertente, até nos aparece a
paradoxal designação de «surrealistas dissidentes». Quer isto dizer, de um
lado, que as marcas hoje associáveis ao surrealismo podem ser muito
profundas num autor, independentemente da época em que viveu, e por isso
do seu relacionamento oficial com o movimento. Do outro lado, significa
que as propostas do surrealismo não são originais na sua totalidade,
algumas correspondem a tendências gerais da arte e da vocação dos
artistas, a que o surrealismo atribuiu categoria específica. Em
consequência, Natália Correia, por exemplo, pondo de parte balizas
históricas, inclui Camões ao lado de Herberto Helder, na antologia «O
Surrealismo na Poesia Portuguesa». Na sua perspetiva, menos polémica do
que se pretende, o surrealismo manifesta-se assim em obras de quem não é
surrealista. Os próprios surrealistas, de resto, ao chamarem Rabelais ou
Hieronymus Bosch para a sua árvore genealógica, mais não fazem do que
assumir este ponto de vista. Mário Cesariny, quando afirma que a história
do surrealismo se fará entre dois impossíveis, o do seu começo e o do seu
fim («A Intervenção Surrealista»), embora concentrado nas cronologias,
também dá força à ideia de que o surrealismo é mais amplo do que o
movimento desencadeado por André Breton.
O caso de Herberto Helder é no entanto diverso do
de Camões, para continuarmos na senda de Natália Correia, pois teve alguma
escassa participação em iniciativas dos surrealistas portugueses. Em 1959,
no número 2 da revista Pirâmide, tida como afeta ao movimento, ao lado de Luiz Pacheco,
Ernesto Sampaio, Máximo Lisboa, José Carlos González, Manuel de Castro,
António José Forte e mais, colabora com um texto, hoje o sexto de
O poema, na poesia reunida em «Ofício Cantante» (2009). Assina com
João Rodrigues e José Sebag “O cadáver esquisito e os estudantes”, na
«Antologia Surrealista do Cadáver Esquisito», organizada por Mário
Cesariny, em 1961. Tanto quanto sei, foram apenas estes dois os gestos de
comunhão formal com o movimento, donde é compreensível que obras recentes
como «Surrealismo em Portugal 1934-1952», de María Jesús Ávila e Perfecto
E. Cuadrado e «A Aventura Surrealista», de Adelaide Ginga Tchen, ambas de
2001, não o incluam. Herberto Helder não é um poeta surrealista. Quando
muito, foi-o naqueles dois momentos precisos em que colaborou na
Pirâmide e na antologia de Mário
Cesariny.
Decerto em consequência deles, no
Jornal de Letras e Artes (2 de
maio de 1962) publica um artigo duro e radical de rejeição de colagens ao
movimento surrealista, e simultaneamente de aceitação de princípios gerais
que o surrealismo também partilha, assinado com Máximo Lisboa - “Ou o
Amor, ou a Vida, ou a Loucura, ou a Morte”. É um «Comunicado – aos
oficiais da crítica / aos ortodoxos / aos mercenários / ao
democracionismo-fascista / ao ‘café’ / à duplicidade / aos surrealistas»,
de que transcrevo:
[Os
abaixo assinados]
Recusam a denominação de
«surrealistas» que alguma crítica, por desatenção e desocupação, lhes
atribuiu ou atribuirá. Aceitam do surrealismo a proposta de uma liberdade
tão grande que nela caiba mesmo uma atitude «anti-surrealista». Aceitam do
surrealismo todos os primados que se encontram com a dignidade humana e a
Alegria de Viver, garantia (consideram) de uma posição ética fundamental
diante da mesma vida. Aceitam do surrealismo – para amor e admiração
secreta e pública – os actos, obras e morte de alguns exemplificadores que
foram surrealistas, quando isso os identificou com a sua pessoal vocação
de homens livres. Recusam, finalmente, o surrealismo onde ele não pode ser
isso. Recusam-no como escola, como prisão, como antologia, como Chiado.
É comum invocar o facto de Herberto Helder ter
participado em tertúlias do Café Gelo, para o vincular ao movimento, tal
como o de ter redigido os prefácios a «Uma faca nos dentes» de António
José Forte, e aos «Poemas» de Edmundo de Bettencourt. O primeiro data de
1983 e o segundo de 1999. O surrealismo permanece vivo, sobretudo na
América do Sul, por isso não seriam as tardias datas a levantar problemas
à colagem. Dá-se porém o caso de a crítica e análise do surrealismo, em
Herberto Helder, ultrapassar largamente esses dois exemplos. O comentador
não pode ser considerado surrealista por trabalhar obras surrealistas, tal
como não pode ser considerado árcade por fazer a defesa da
aurea mediocritas. Não deixa no
entanto de ser pertinente, para conhecimento da sua obra, e não para
discutir pertenças ao movimento, a análise das duas introduções, às quais
então acrescento as diversas achegas surrealistas, sobre o surrealismo e
sobre os surrealistas, dispersas nas crónicas publicadas no jornal
Notícia de Luanda, em 1971 e
1972 (ver o meu livro «A obra ao rubro de Herberto Helder», São Paulo,
Escrituras, 2010), em que pratica a colagem com citações do jornal
A Bola, reedita “Hormonas para
Sísifo – VII”, de Manuel de Castro, por ocasião da sua morte, em 1971,
evoca Marcel Duchamp, Salvador Dali e tantos outros. No jornal
Expresso, publicou um poema em prosa sobre uma exposição de Cruzeiro
Seixas. No Notícia de Luanda
podemos ler ainda uma memória das tertúlias no Café Gelo, em que lembra os
jogos surrealistas que ali se praticavam e lamenta o destino de alguns
companheiros: «o Gonçalo Duarte e o António Gancho enlouqueceram, o João
Rodrigues, o Manuel d’Assumpção e o Pressier suicidaram-se, o Luiz Pacheco
e o Manuel de Castro entram e saem dos hospitais para fazer e desfazer
curas de intoxicação alcoólica.».
Alguns destes textos, e outros, figuram em
«Photomaton & Vox», um dos livros de Herberto Helder em que mais se
evidenciam as suas tendências para um surrealismo temperamental,
não-escolar. Se atentarmos nas principais diretrizes do movimento –
collage, enumeração caótica,
liberdade na criação de imagens, humor negro, situações extravagantes e
modo insólito de contar, assunção do sexo e do erotismo, apologia do amor
livre e da própria liberdade – verificamos que elas estão sempre presentes
no «Ofício Cantante», bem como em «Photomaton & Vox» e «Os Passos em
Volta». Sérgio de Lima, no tomo 1 de «A Aventura Surrealista» (Vozes,
1995), recorda que André Breton considerava que o erotismo é o valor comum
a todas as obras surrealistas. Face a tal declaração, e conhecendo tão bem
a sensualidade da poesia herbertiana, resta concluir que o surrealismo
agita profundamente a sua obra, apesar de de o autor não ser surrealista.
Herberto Helder é um poeta atento às ideias que
giram à sua volta, por isso comungou alegremente, enquanto não se sentiu
acorrentado a escolas, no que de novo apareceu e lhe era intrínseco:
surrealismo, Poesia Experimental, e sobretudo
beat generation. Claudio Willer não separa a
beat do surrealismo, ela nasce em resultado das mudanças que o
movimento despoletou. Ora cumpre anotar que, mais forte do que o
surrealismo, em Herberto Helder, é a sua afinidade com a geração
beat. Tão forte e marginal à escolaridade, portanto tão visceral,
que a sua biografia até se confunde, em certos passos de vagabundagem e
trabalhos casuais, com a de Jack Kerouac.
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Maria Estela Guedes
(1947, Britiande / Portugal). Diretora do Triplov
Membro da Associação Portuguesa de Escritores,
da Sociedade Portuguesa de Autores, do Centro Interdisciplinar da Universidade de Lisboa e do Instituto São Tomás de Aquino. Directora do TriploV.
LIVROS
“Herberto Helder,
Poeta Obscuro”. Moraes Editores, Lisboa, 1979; “SO2” .
Guimarães Editores, Lisboa, 1980; “Eco, Pedras Rolantes”, Ler
Editora, Lisboa, 1983; “Crime no Museu de Philosophia Natural”,
Guimarães Editores, Lisboa, 1984; “Mário de Sá Carneiro”. Editorial
Presença, Lisboa, 1985; “O Lagarto do Âmbar”. Rolim Editora, Lisboa,
1987; “Ernesto de Sousa – Itinerário dos Itinerários”. Galeria
Almada Negreiros, Lisboa, 1987 (colaboração e co-organização); “À
Sombra de Orpheu”. Guimarães Editores e Associação Portuguesa de
Escritores, Lisboa, 1990; “Prof. G. F. Sacarrão”. Lisboa. Museu
Nacional de História Natural-Museu Bocage, 1993; “Carbonários :
Operação Salamandra: Chioglossa lusitanica Bocage, 1864”. Em
colaboração com Nuno Marques Peiriço. Palmela, Contraponto Editora,
1998; “Lápis de Carvão”. Apenas Livros Editora, Lisboa, 2005; “A_maar_gato”.
Lisboa, Editorial Minerva, 2005; “À la Carbonara”. Lisboa, Apenas
Livros Lda, 2007. Em co-autoria com J.-C. Cabanel & Silvio Luis
Benítez Lopez; “A Boba”. Apenas Livros Editora, Lisboa, 2007;
“Tríptico a solo”. São Paulo, Editora Escrituras, 2007; “A poesia na
Óptica da Óptica”. Lisboa, Apenas Livros Lda, 2008; “Chão de papel”.
Apenas Livros Editora, Lisboa. 2009; “Geisers”. Bembibre, Ed.
Incomunidade, 2009; “Quem, às portas de Tebas? – Três artistas
modernos em Portugal”. Editora Arte-Livros, São Paulo, 2010.
“Tango Sebastião”. Apenas Livros Editora, Lisboa. 2010. «A obra ao
rubro de Herberto Helder», São Paulo, Editora Escrituras, 1010;
"Arboreto». São Paulo, Arte-Livros, 2011; "Risco da terra", Lisboa,
Apenas Livros, 2011; "Brasil", São Paulo, Arte-Livros, 2012; "Um
bilhete para o Teatro do Céu", Lisboa, Apenas Livros, 2013.
ALGUNS COLECTIVOS
"Poem'arte - nas margens da poesia". III Bienal de
Poesia de Silves, 2008, Câmara Municipal de Silves. Inclui CDRom
homónimo, com poemas ditos pelos elementos do grupo Experiment'arte.
“O reverso do olhar”, Exposição Internacional de Surrealismo Actual.
Coimbra, 2008; “Os dias do amor - Um poema para cada dia do ano”.
Parede, Ministério dos Livros Editores, 2009.
Entrada sobre a Carbonária no Dicionário
Histórico das Ordens e Instituições Afins em Portugal, Lisboa,
Gradiva Editora, 2010.
TEATRO
Multimedia “O
Lagarto do Âmbar, levado à cena em 1987, no ACARTE, Fundação
Calouste Gulbenkian, com direcção de Alberto Lopes e interpretação
de João Grosso, Ângela Pinto e Maria José Camecelha, e cenografia de
Xana; “A Boba”, levado à cena em 2008 no Teatro Experimental de
Cascais, com encenação de Carlos Avilez, cenografia de Fernando
Alvarez e interpretação de Maria Vieira.
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