REVISTA
TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências
ISSN 2182-147X
NOVA SÉRIE
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Maria Estela Guedes
Foto: Ed. Guimarães |
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Porto meu, meninos do Leça! |
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In:
http://www.incomunidade.com/v14/ |
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O Porto da minha infância é o de Leixões. Um dia, largada no pó a carcaça,
Mnemósine analisar-me-á os escritos para deles guardar algum pouco ligado
a personalidades portuenses que não ficaram conhecidas pela irreverência
da idade maior, mas cuja rebeldia juvenil pontilha ainda hoje as
biografias que pulsam na Internet: Francisco Newton, Augusto Nobre e o
irmão, autor do «Só», o neo-garretiano Alberto Oliveira, e mais uns
quantos senhores que atravessaram a ponte do século XIX para o século XX,
como António Ramos de Magalhães, capitão das areias em Leça da Palmeira.
Para desespero do sacristão, atavam um nagalho ao sino da capela de Santa
Catarina e corriam, depois das badaladas, a despir-se na praia,
mergulhando nus nas águas a que a construção do porto de Leixões veio
ocultar o escândalo.
Madrugadas brumosas, ácidas, o bramido das gaivotas e
dos estivadores, o choro dos guinchos e dos que se despediam, o uivo do
Alfredo da Silva ou do
Ana Mafalda a anunciarem a
partida. Podia ter esquecido as circunstâncias ambientais e até o nome dos
navios, tal como esquecemos quase tudo o que diariamente nos vai
acontecendo no correr dos anos. Se não me esqueci de Leixões nem dos
embarques para a Guiné, nos anos cinquenta, só pode isto significar que
são marcas na alma como feridas.
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Foto: Clara
Pimenta do Vale |
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Sei que também nunca mais esquecerei a miúda cena
de gaivotas do outro dia, saco ao ombro, a caminho da Estação de S. Bento,
finda a reunião com a equipa da Revista Incomunidade. Cena teoricamente
conhecida, mas nunca até ao passado domingo experimentada: a gaivota que
pica sobre um pombo, na berma do passeio da Av. dos Aliados, e ali o
despedaça, por entre pausas de um hipotético “Vê lá se morres, que não
quero comer-te vivo!”. Fugindo dos transeuntes de presa no bico
ensanguentado, a gaivota ia-se detendo sem parecer cansada, antes como
quem aguarda o momento próprio de, sem faca, garfo e sem dentes, ir
engolindo bocado a bocado a carne arrancada. Não, nunca esquecerei, porque
se projetou naquela cena a selvajaria que às vezes, quando nos sentimos
seguros e baixamos a guarda, nos atinge de súbito pelas costas.
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Foto: Triplov |
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Depois o meu Porto foi o dos artistas e escritores,
um conhecimento de visionária com caneta e papel. Agustina Bessa-Luís, tão
sibila e matriarca como as suas personagens femininas, o desconcertante
Manoel de Oliveira, que vestia num alfaiate da minha família, com loja na
R. de Santa Catarina, Manuel Pinheiro da Rocha, distinto fotógrafo também.
Participou em exposições nos melhores salões estrangeiros, bom o
suficiente para ter sido convidado a retratar Adenauer, como lembra Ed.
Guimarães. Ed. Guimarães, hoje fotógrafo em São Paulo, nessa qualidade
acompanhou Herberto Helder em perigosas reportagens pelo interior de
Angola, em 1971 e 1972. Na sua infância, teve oportunidade de visitar o
estúdio de Pinheiro da Rocha, que o fascinou, ao revelar as fotografias
segundo método próprio, com pincéis. A memória tem destas subtilezas de
sais de prata, dá a ver quando menos se espera religações com meio século
ou mais.
E poetas também como Eugénio de Andrade, a quem
roubei o “Afectuosamente” das dedicatórias de livros. O que dizer nelas?
Beijos para os amigos, e esse tão diplomático advérbio de modo de quem
sempre escreveu como quem afaga. Eugénio de Andrade, um ser das orlas
mediterrâneas, à semelhança de Sophia de Mello Breyner Andresen. Prófugos
ambos das neblinas portuenses, íncolas das imagens de sol. Céu lavado ou
tenso que também recorda o autor de «O Encoberto», esse Bruno, segunda
sibila portuense, que conviveu com gente de uma parte e da outra, e a
outra é a das ciências, aquela a que pertencem Augusto Luso da Silva,
Eduardo Sequeira, Isaac Newton, Francisco Newton e Augusto Nobre, entre
outros naturalistas, amantes das exposições de floricultura, fundadores e
frequentadores do Ateneu Comercial e da Sociedade de Instrução do Porto.
É no entanto com o Francisco que mais elos de
ligação cultivo. Também ele, Francisco Newton, nascido em Matosinhos, e
ali sepultado, experimentou o gosto de embarques e desembarques oceânicos,
em Cabo Verde, na Guiné, em S. Tomé e Príncipe, no Daomé, nas ilhas
espanholas do Golfo - Anobom e Fernando Pó -, no Gabão, em Angola, talvez
em Moçambique, e ainda em Macau e Timor. Além de naturalista, desempenhava
misteriosas funções que lhe garantiam a possibilidade de na mesma data se
encontrar em locais tão distantes e distintos como S. Tomé e Timor.
Coligia exemplares da flora, da fauna e da geologia, entre os quais se
contaram várias espécies novas (identificáveis pelo termo
newtoni, segundo no binómio
lineano, como em Lanius newtoni,
beija-flor de S. Tomé), que remetia para o Museu de História Natural de
Lisboa, mas também para outros, em Portugal e no estrangeiro, e para
famosos colecionadores particulares, caso do barão de Rothschild e do
conde de Peracca.
Dessas férias de rapazes que tomavam banho
despidos, tocavam os sinos para martirizar o sacristão da capela de Santa
Catarina, enfim, pintavam a manta que os deixou conhecidos como os
“meninos do Leça”, permanecem memórias como o poema que António Nobre
dedicou ao Francisco:
MISS ALE
A Francisco Newton
Loira cerveja! amada minha!
Que mal te fiz, estàs zangada?
Estalas, feroz, endiabrada,
Perdes o tom, perdes a linha!
A
gente, aqui ao pè, visinha,
Recùa,
toda apavorada...
Loira
cerveja! amada minha!
Que
mal te fiz, estàs zangada?
Meu
coração não adivinha
Pelo
que estejas amuada
D'esses
teus modos, "Inglesinha"!
Vamos!
Socega, minha amada,
Loira
cerveja! amada minha!
Algures alguém comenta, discretamente, que
Francisco Newton cedera a um vício muito comum em África. Parece que não,
vejamos: não foi o calor africano o responsável. A avaliar pelo testemunho
de António Nobre, os amores
por Miss Ale já datavam das tropelias dos meninos do Leça.
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Maria Estela Guedes
(1947, Britiande / Portugal). Diretora do Triplov
Membro da Associação Portuguesa de Escritores,
da Sociedade Portuguesa de Autores, do Centro Interdisciplinar da Universidade de Lisboa e do Instituto São Tomás de Aquino. Directora do TriploV.
LIVROS
“Herberto Helder,
Poeta Obscuro”. Moraes Editores, Lisboa, 1979; “SO2” .
Guimarães Editores, Lisboa, 1980; “Eco, Pedras Rolantes”, Ler
Editora, Lisboa, 1983; “Crime no Museu de Philosophia Natural”,
Guimarães Editores, Lisboa, 1984; “Mário de Sá Carneiro”. Editorial
Presença, Lisboa, 1985; “O Lagarto do Âmbar”. Rolim Editora, Lisboa,
1987; “Ernesto de Sousa – Itinerário dos Itinerários”. Galeria
Almada Negreiros, Lisboa, 1987 (colaboração e co-organização); “À
Sombra de Orpheu”. Guimarães Editores e Associação Portuguesa de
Escritores, Lisboa, 1990; “Prof. G. F. Sacarrão”. Lisboa. Museu
Nacional de História Natural-Museu Bocage, 1993; “Carbonários :
Operação Salamandra: Chioglossa lusitanica Bocage, 1864”. Em
colaboração com Nuno Marques Peiriço. Palmela, Contraponto Editora,
1998; “Lápis de Carvão”. Apenas Livros Editora, Lisboa, 2005; “A_maar_gato”.
Lisboa, Editorial Minerva, 2005; “À la Carbonara”. Lisboa, Apenas
Livros Lda, 2007. Em co-autoria com J.-C. Cabanel & Silvio Luis
Benítez Lopez; “A Boba”. Apenas Livros Editora, Lisboa, 2007;
“Tríptico a solo”. São Paulo, Editora Escrituras, 2007; “A poesia na
Óptica da Óptica”. Lisboa, Apenas Livros Lda, 2008; “Chão de papel”.
Apenas Livros Editora, Lisboa. 2009; “Geisers”. Bembibre, Ed.
Incomunidade, 2009; “Quem, às portas de Tebas? – Três artistas
modernos em Portugal”. Editora Arte-Livros, São Paulo, 2010.
“Tango Sebastião”. Apenas Livros Editora, Lisboa. 2010. «A obra ao
rubro de Herberto Helder», São Paulo, Editora Escrituras, 1010;
"Arboreto». São Paulo, Arte-Livros, 2011; "Risco da terra", Lisboa,
Apenas Livros, 2011; Trabalhos da Maçonaria Florestal Carbonária.
Lisboa, Apenas Livros, 2012; Brasil, São Paulo, Arte-Livros, 2012.
"As Rosas do Freixo", Apenas Livros, Lisboa, 2012;
"Brasil", São Paulo, Arte-Livros, 2012; "Um bilhete para o Teatro
do Céu", Lisboa, Apenas Livros, 2013.
ALGUNS COLECTIVOS
"Poem'arte - nas margens da poesia". III Bienal de
Poesia de Silves, 2008, Câmara Municipal de Silves. Inclui CDRom
homónimo, com poemas ditos pelos elementos do grupo Experiment'arte.
“O reverso do olhar”, Exposição Internacional de Surrealismo Actual.
Coimbra, 2008; “Os dias do amor - Um poema para cada dia do ano”.
Parede, Ministério dos Livros Editores, 2009.
Entrada sobre a Carbonária no Dicionário
Histórico das Ordens e Instituições Afins em Portugal, Lisboa,
Gradiva Editora, 2010. "Munditações", de Carlos Silva, 2011. "Se lo
dijo a la noche", de Juan Carlos Garcia Hoyuelos, 2011; "O
corpo do coração - Horizontes de Amato
Lusitano", 2011.
TEATRO
Multimedia “O
Lagarto do Âmbar, levado à cena em 1987, no ACARTE, Fundação
Calouste Gulbenkian, com direcção de Alberto Lopes e interpretação
de João Grosso, Ângela Pinto e Maria José Camecelha, e cenografia de
Xana; “A Boba”, levado à cena em 2008 no Teatro Experimental de
Cascais, com encenação de Carlos Avilez, cenografia de Fernando
Alvarez e interpretação de Maria Vieira. |
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