Quando
escrevemos, e inclua-se na situação de escrita a leitura diante de um
auditório, a vida fica bastante distanciada da rotineira, porque o nível
de realidade no interior de uma obra de cultura é diferente do exterior a
ela. Não é a mesma coisa «beber um copo», expressão que acaba de ler, e
beber deveras um copo às refeições, deixando até de lado a circunstância
de que jamais bebemos o copo e por isso não é só no primeiro caso que nos
ficamos pela salivação.
Vem
isto a propósito de uma tertúlia em que participei há tempos, cujo tema,
como agora, era o vinho. Discorri sobre a importância dele na literatura,
invoquei Dionísio, inventor do vinho e do teatro, mais o seu filósofo,
Nietzsche, apontei a reprodução de um Baco de Caravaggio, li uns segmentos
da versão herbertiana do «Cântico dos Cânticos», poema em que um do outro
dizem os amantes que o seu amor é melhor que o vinho, e que muito melhor
que vinho são as carícias de Sulamite a Salomão (Cant 4:10), para no fim
concluir que o auditório ouvira num nível de realidade diverso do meu, já
que o tom geral da resposta foi o de preocupação com o meu contributo para
disseminar o gosto pela bebida e possível corrupção da juventude ao
interpretar o texto bíblico de um ponto de vista erótico.
Caros
leitores, uma coisa é o vinho como elemento de civilização e de cultura e
outra é o abuso das bebidas alcoólicas. Não vamos fechar os olhos à
presença do vinho e sua área semântica na literatura, seja profana seja
sagrada - e é do espaço sagrado que o vinho transita para o espaço profano
e não o inverso -, só porque algumas pessoas bebem as palavras em vez de
comunicarem com elas. Não vamos pedir à Igreja que troque o vinho da
eucaristia por coca-cola, alegando que a comunhão é um convite ao
alcoolismo! E, por favor, não consideremos o «Cântico dos Cânticos» um
hino de amor à Santa Madre Igreja, porque isso é um atentado à
inteligência!
Posto o
desabafo, volto às lides culturais como se nenhum percalço tivesse
acontecido, e desta feita, em vez de eucaristia e «Cântico dos Cânticos»,
trago, sem o ter procurado, portanto por mero acaso – vou referir livros
que estava a ler para outro fim, o acaso quer dizer então que a
percentagem de obras em que aparecem o vinho e termos correlacionados é
muito alta: «O Banquete (In vino veritas)», de SØren
Kierkegaard (Guimarães Editores, 1989, tradução de Álvaro Ribeiro) e
«Ecce-Homo», de Nietzsche (Guimarães Editores, 1984, tradução de José
Marinho).
A
função do vinho no segundo livro, o de Nietzsche, é apenas pontual, mas
lembremos que n’ «A origem da tragédia» o filósofo criou um modelo de
leitura da arte segundo duas perspetivas divinas, sendo uma delas
Dionísio. É ainda sob o signo vinícola que Nietzsche empreende
«Ecce-Homo», o seu diário: “Neste dia perfeito em que tudo amadurece, e
não só as uvas começam a dourar”… Mais adiante, ao comentar «A origem da
tragédia», define o espírito dionisíaco como um sim à vida, à criação, e
um não à decadência.
É esse
impulso criador que de resto atrai para a função desempenhada pelas drogas
na obra de arte. No seu mais recente livro, «Servidões» (Assírio & Alvim,
2013), no qual, diferentemente do que acontece em obras de juventude,
encontramos apenas três ou quatro referências ao tema em debate, uma delas
“ivresse”, remetendo talvez mais para Rimbaud do que para Baudelaire,
Herberto Helder deixa o testemunho de que o prestígio da poesia diz
respeito à sua origem e não ao seu fim.
Com
efeito, o que nos move perante a arte não é um utilitário «para que/m
serve?», ainda que saibamos, e dos mesmos que nos inclinam a atenção para
a génese e não para o epílogo, que no seu termo ela concede um pouco de
eternidade, o que nos move é saber se existem e como trabalham as musas.
Há um mistério na arte, mistério que a torna fascinante e sublime: de que
nasce ela? Qual a sua origem, qual a sua fonte? É um dom, como pretende
Herberto Helder?
Rogo
aos deuses que os geneticistas se macem antes de traçarem o mapa completo
do genoma humano porque, se vão descobrindo o gene do cancro, o gene
guerreiro, o gene do estrabismo, o gene dos cabelos louros, o gene do
alcoolismo, etc., um dia vão descobrir o gene da redondilha e o gene do
verso livre, e nessa altura a vida terá secado nos campos como depois de
uma grande caloraça de agosto. Nenhum ser pensante conseguiria sobreviver
ao massacre de um paradigma que impusesse a ideia de uma existência
totalmente pré-determinada. Enquanto esse dia não chega, imaginemos que
existem musas, que as musas são dons que nos libertam a língua, o rio das
palavras, a torrente cujo ímpeto coloca no espaço algo que antes lá não
estava e é brilhante como estrelas e radicalmente diferente delas. Pois
entre essas musas podemos incluir a Dona
Vitis vinifera.
O vinho
estimula, descontrai, tira o medo, daí «A verdade no vinho» de SØren
Kierkegaard, ou o banquete que põe à consideração dos que também leram
Platão e a história de um Amor nascido de pai rico e de mãe indigente, num
tempo, ensina Diotima a Sócrates, em que os deuses bebiam néctar por ainda
não existir o vinho. Uma das exigências para o sucesso do simpósio de
Kierkegaard é precisamente a sua abundância, e mais: os convivas só
poderão usar da palavra quando se sentirem sob os seus eflúvios, já que os
temas propostos são quentes: a mulher e o amor. De uma parte agrilhoados
pelos tabus e de outra cingidos a protocolos de segredo, não é fácil falar
desses assuntos em público e ainda menos dizer a verdade. O vinho liberta
as línguas e reza a tradição que, em estado de euforia provocada por ele,
o falante é levado a dizer a verdade, tal como o subtítulo da obra revela,
esse velho ditado de todos conhecido:
In vino veritas.
Resumo,
pois não pretendo comentar o que dizem do amor e da mulher os cinco
convivas, aliás cinco heterónimos de Kierkegaard, e anoto que «O Banquete
(In vino veritas)» é uma «Recordação escrita por William Afham», com
prefácio de Hilário, encadernador:
1.
O
primeiro conviva a falar é um jovem que nunca amou. Diz que o amor é
contraditório e por isso ridículo; ele foge do amor para não se tornar
vítima de troça.
2.
Constantino declara que a mulher é facécia, motivo de risota.
3.
Vítor
Eremita, o terceiro a discursar, afirma que a mulher inspira os homens,
tudo o que eles fazem de bom e grandioso deve-se à influência feminina,
mas não das esposas. Para uma esposa exercer força inspiradora, precisa de
morrer primeiro.
4.
O
costureiro entende que a mulher tem na moda a sua segurança, vive para ela
e não pensa em mais nada. Se acede a passear com o homem no jardim, não é
pelo gosto de andar com ele, é só para mostrar aos outros o último grito
da moda, os brincos no nariz.
5.
Por
último, fala Johannes, o sedutor. Este alega que a mulher é perfeita e
existe para ser seduzida.
Como
adverti, não comentarei o que a filosofia de há cento e tal anos pensa da
mulher e do amor, porque o que aqui me trouxe foi só o prazer de degustar
um Porto com a InComunidade. O vinho foi necessário ao banquete para que
os convivas falassem livremente e dissessem a verdade a respeito da mulher
e do amor. Sim, claro, evidentemente, mas que verdade? Como aquilatar a
verdade numa obra em que os discursos pertencem a heterónimos e o próprio
relato não é perfilhado pelo autor, sim apresentado como se tivesse sido
escrito por um tal William Não-sei-quem?
Kierkegaard também é autor do ensaio «O conceito de ironia constantemente
referido a Sócrates». A ironia consiste, diz ele, em expressarmos o
contrário daquilo que pensamos, donde implica mentira; a verdade consiste
então em dizermos aquilo que pensamos. Nada entretanto garante que os
convivas mintam, partindo nós do princípio de que são heterónimos para
Kierkegaard se proteger. Nem pelo contrário, não, nem ele precisa de se
proteger nem nada garante que digam a verdade… Tal como nada garante que
Kierkegaard transmitisse a verdade, se fosse ele a assinar o livro. Uma
coisa é a concordância do pensamento com as palavras, e a essa verdade
cabe melhor o nome de sinceridade, outra, muito diversa, a concordância
das nossas palavras com os factos. E nada garante que uma testemunha
presencial tenha a posse da verdade só por ter observado certos factos…
A única
verdade do vinho pertence a Johannes, ao garantir que as mulheres são
perfeitas. Muito obrigada, é sempre bom ouvir isso, por muito que o
saibamos desde sempre e por outras fontes. Todas as mulheres eram e
continuam perfeitas, mesmo quando, terminado o banquete, os convivas fazem
o último brinde, quebrando em seguida as taças, atiradas de costas contra
a parede. Como quem diz: «Desça sobre nós o olvido. Que nada do que aqui
foi revelado permaneça na lembrança».
Não
desceu olvido nenhum, tudo se rememora e comenta. Brindemos por isso a
esta edição portuguesa de 1989 de «O Banquete (In vino veritas)”,
sublinhando que ainda hoje, se formos ver bem, a opinião geral sobre as
mulheres e o amor...
Maria Estela Guedes . Casa dos Banhos, 19 de agosto de 2013
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Maria Estela Guedes
(1947, Britiande / Portugal). Diretora do Triplov
Membro da Associação Portuguesa de Escritores,
da Sociedade Portuguesa de Autores, do Centro Interdisciplinar da Universidade de Lisboa e do Instituto São Tomás de Aquino. Directora do TriploV.
LIVROS
“Herberto Helder,
Poeta Obscuro”. Moraes Editores, Lisboa, 1979; “SO2” .
Guimarães Editores, Lisboa, 1980; “Eco, Pedras Rolantes”, Ler
Editora, Lisboa, 1983; “Crime no Museu de Philosophia Natural”,
Guimarães Editores, Lisboa, 1984; “Mário de Sá Carneiro”. Editorial
Presença, Lisboa, 1985; “O Lagarto do Âmbar”. Rolim Editora, Lisboa,
1987; “Ernesto de Sousa – Itinerário dos Itinerários”. Galeria
Almada Negreiros, Lisboa, 1987 (colaboração e co-organização); “À
Sombra de Orpheu”. Guimarães Editores e Associação Portuguesa de
Escritores, Lisboa, 1990; “Prof. G. F. Sacarrão”. Lisboa. Museu
Nacional de História Natural-Museu Bocage, 1993; “Carbonários :
Operação Salamandra: Chioglossa lusitanica Bocage, 1864”. Em
colaboração com Nuno Marques Peiriço. Palmela, Contraponto Editora,
1998; “Lápis de Carvão”. Apenas Livros Editora, Lisboa, 2005; “A_maar_gato”.
Lisboa, Editorial Minerva, 2005; “À la Carbonara”. Lisboa, Apenas
Livros Lda, 2007. Em co-autoria com J.-C. Cabanel & Silvio Luis
Benítez Lopez; “A Boba”. Apenas Livros Editora, Lisboa, 2007;
“Tríptico a solo”. São Paulo, Editora Escrituras, 2007; “A poesia na
Óptica da Óptica”. Lisboa, Apenas Livros Lda, 2008; “Chão de papel”.
Apenas Livros Editora, Lisboa. 2009; “Geisers”. Bembibre, Ed.
Incomunidade, 2009; “Quem, às portas de Tebas? – Três artistas
modernos em Portugal”. Editora Arte-Livros, São Paulo, 2010.
“Tango Sebastião”. Apenas Livros Editora, Lisboa. 2010. «A obra ao
rubro de Herberto Helder», São Paulo, Editora Escrituras, 1010;
"Arboreto». São Paulo, Arte-Livros, 2011; "Risco da terra", Lisboa,
Apenas Livros, 2011; Trabalhos da Maçonaria Florestal Carbonária.
Lisboa, Apenas Livros, 2012; Brasil, São Paulo, Arte-Livros, 2012.
"As Rosas do Freixo", Apenas Livros, Lisboa, 2012;
"Brasil", São Paulo, Arte-Livros, 2012; "Um bilhete para o Teatro
do Céu", Lisboa, Apenas Livros, 2013.
ALGUNS COLECTIVOS
"Poem'arte - nas margens da poesia". III Bienal de
Poesia de Silves, 2008, Câmara Municipal de Silves. Inclui CDRom
homónimo, com poemas ditos pelos elementos do grupo Experiment'arte.
“O reverso do olhar”, Exposição Internacional de Surrealismo Actual.
Coimbra, 2008; “Os dias do amor - Um poema para cada dia do ano”.
Parede, Ministério dos Livros Editores, 2009.
Entrada sobre a Carbonária no Dicionário
Histórico das Ordens e Instituições Afins em Portugal, Lisboa,
Gradiva Editora, 2010. "Munditações", de Carlos Silva, 2011. "Se lo
dijo a la noche", de Juan Carlos Garcia Hoyuelos, 2011; "O
corpo do coração - Horizontes de Amato
Lusitano", 2011.
TEATRO
Multimedia “O
Lagarto do Âmbar, levado à cena em 1987, no ACARTE, Fundação
Calouste Gulbenkian, com direcção de Alberto Lopes e interpretação
de João Grosso, Ângela Pinto e Maria José Camecelha, e cenografia de
Xana; “A Boba”, levado à cena em 2008 no Teatro Experimental de
Cascais, com encenação de Carlos Avilez, cenografia de Fernando
Alvarez e interpretação de Maria Vieira. |
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