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REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências

ISSN 2182-147X
NOVA SÉRIE

 

 







Maria Estela Guedes
Foto: Ed. Guimarães

Duas janelas em José Augusto Mourão

Prefácio à obra Onde rasgar janelas, de José Augusto Mourão. São Paulo, Arte-Livros Editora, 2011. Póstumo. Apresentado na «Evocação de Frei José Augusto Mourão», promovida pela Assírio e Alvim. Lisboa, Convento dos Cardaes, 3 de dezembro de 2011.

A biografia não está na moda, porém as janelas desta poesia só permitirão ao leitor compreender inteiramente o que se agita no interior dela, se ao menos dois factos da vida do autor forem trazidos a lume: o de ser frade e professor de teoria literária. Frei José Augusto é dominicano, e a essa forma de vida ligam-se os poemas na sua maioria e fundamento retórico, quer por desempenharem um papel nas liturgias que ministra, quer por a estrutura do discurso religioso constituir a terra de que em geral se erguem as súplicas, as lamentações, os gritos de alegria e as interpelações do auditório. Os poemas trazem as marcas do sacerdócio e da vida monástica, se bem que a clausura seja apenas simbólica. Em todo o caso, é nessa vida em clausura, ou no convento do corpo, que se rasgam janelas. Elas tanto permitem ao autor olhar para fora, e viver no mundo exterior, como ao leitor espreitar para dentro da sua alma.

No que respeita ao discurso religioso, chama a atenção o frequente recurso ao vocativo e à repetição salmódica. Não é comum este género de poesia em Portugal, pelo menos no estrato da arte erudita. Pelo contrário, a presença do religioso nas nossas vidas, e do catolicismo em particular, é cada vez menos conspícua, pelo que avançam em novidade, e ao mesmo tempo despertam-nos reminiscências de antigos textos litúrgicos, estes belos poemas de «Onde rasgar janelas».

Segundo caminho estilístico seguido pelos versos, estabelecendo oposição intelectual com o primeiro, o de se apropriarem do léxico próprio de certas ciências, em especial da teoria literária, e o de sugerirem compreensões do mundo à luz de posições dos filosofos contemporâneos. Tal já não surpreenderá os leitores, sabendo que o autor, além de teólogo, tem estada ligado à semiótica em razão da sua carreira de professor da Universidade Nova de Lisboa. Atenção, no entanto, porque poetas, simultaneamente professores de literatura, há muitos, mas que transportem para os poemas o calão teórico, já só conheço José Augusto Mourão. Esta intrusão de elementos de léxicos pesados na leveza de uma poesia cruzada pelo sopro e pelo anjo ressoa a fósforo a riscar lixa, e por isso mesmo surte um surpreendente efeito de contraste.

Que janelas são as que o autor rasga? Janelas da alegria, do amor, da poesia, e também janelas da alma, se bem que o termo «alma» manifeste presença fraca no livro. Numa perspetiva moderna da missão da Igreja no mundo, José Augusto Mourão mais facilmente militaria pela libertação do corpo das amarras de uma moral caduca, do que pela manutenção de um discurso de poder sobre corpos e mentes desajustado da nossa realidade, em conflito com necessidades prementes de novos modelos de vida, não só da família como da espécie humana. Como pensador, não trilha os caminhos do passado, rasga janelas para paradigmas futuros.

Natureza, eis o segundo veio de sentido importante nos poemas, ao lado de tudo o que diz respeito ao corpo. Natureza como refrigério, e pouso também para olhar nostálgico, natureza tecida em palavras mais do que em objetos, alusivas a uma poesia bucólica de tonalidades clássicas. O apelo do mar ouve-se em fundo, e nas margens dos regatos debruçam-se os salgueiros em que poetas de antanho suspendiam a lira. A literatura mescla misticismo com o intenso desejo de fruir as dádivas terrenas da vida.

 

Maria Estela Guedes (1947, Britiande / Portugal). Diretora do Triplov

Membro da Associação Portuguesa de Escritores, da Sociedade Portuguesa de Autores, do Centro Interdisciplinar da Universidade de Lisboa e do Instituto São Tomás de Aquino. Directora do TriploV.

LIVROS

“Herberto Helder, Poeta Obscuro”. Moraes Editores, Lisboa, 1979;  “SO2” . Guimarães Editores, Lisboa, 1980; “Eco, Pedras Rolantes”, Ler Editora, Lisboa, 1983; “Crime no Museu de Philosophia Natural”, Guimarães Editores, Lisboa, 1984; “Mário de Sá Carneiro”. Editorial Presença, Lisboa, 1985; “O Lagarto do Âmbar”. Rolim Editora, Lisboa, 1987; “Ernesto de Sousa – Itinerário dos Itinerários”. Galeria Almada Negreiros, Lisboa, 1987 (colaboração e co-organização); “À Sombra de Orpheu”. Guimarães Editores e Associação Portuguesa de Escritores, Lisboa, 1990; “Prof. G. F. Sacarrão”. Lisboa. Museu Nacional de História Natural-Museu Bocage, 1993; “Carbonários : Operação Salamandra: Chioglossa lusitanica Bocage, 1864”. Em colaboração com Nuno Marques Peiriço. Palmela, Contraponto Editora, 1998; “Lápis de Carvão”. Apenas Livros Editora, Lisboa, 2005; “A_maar_gato”. Lisboa, Editorial Minerva, 2005; “À la Carbonara”. Lisboa, Apenas Livros Lda, 2007. Em co-autoria com J.-C. Cabanel & Silvio Luis Benítez Lopez; “A Boba”. Apenas Livros Editora, Lisboa, 2007; “Tríptico a solo”. São Paulo, Editora Escrituras, 2007; “A poesia na Óptica da Óptica”. Lisboa, Apenas Livros Lda, 2008; “Chão de papel”. Apenas Livros Editora, Lisboa. 2009; “Geisers”. Bembibre, Ed. Incomunidade, 2009; “Quem, às portas de Tebas? – Três artistas modernos em Portugal”. Editora Arte-Livros, São Paulo, 2010. “Tango Sebastião”. Apenas Livros Editora, Lisboa. 2010. «A obra ao rubro de Herberto Helder», São Paulo, Editora Escrituras, 1010. "Arboreto", São Paulo, Arte-Livros, 2011.

ALGUNS COLECTIVOS

"Poem'arte - nas margens da poesia". III Bienal de Poesia de Silves, 2008, Câmara Municipal de Silves. Inclui CDRom homónimo, com poemas ditos pelos elementos do grupo Experiment'arte. “O reverso do olhar”, Exposição Internacional de Surrealismo Actual. Coimbra, 2008; “Os dias do amor - Um poema para cada dia do ano”. Parede, Ministério dos Livros Editores, 2009. Entrada sobre a Carbonária no Dicionário Histórico das Ordens e Instituições Afins em Portugal, Lisboa, Gradiva Editora, 2010. "Munditações", de Carlos Silva, 2011. "Se lo dijo a la noche", de Juan Carlos Garcia Hoyuelos, 2011; "O corpo do coração - Horizontes de Amato Lusitano", 2011.

TEATRO

Multimedia “O Lagarto do Âmbar, levado à cena em 1987, no ACARTE, Fundação Calouste Gulbenkian, com direcção de Alberto Lopes e interpretação de João Grosso, Ângela Pinto e Maria José Camecelha, e cenografia de Xana; “A Boba”, levado à cena em 2008 no Teatro Experimental de Cascais, com encenação de Carlos Avilez, cenografia de Fernando Alvarez  e interpretação de Maria Vieira.