Nova Série
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Maria Estela Guedes
Foto: Ed. Guimarães |
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Herberto Helder: entre Deus e o Diabo
Maria Estela Guedes (APE / ISTA) |
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(Conferência
integrada no ciclo «Conversas Cruzadas». Instituto São Tomás de Aquino,
Centro Cultural Dominicano, Lisboa, 15 de Janeiro de 2011) |
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Na Holanda é assim.
O Demónio está no meio das vacas.
Herberto Helder, «Holanda», Os passos em volta
não nos separe o
Diabo
dessa coluna de salvação
que é a parte divina no outro
José Augusto Mourão, Onde rasgar janelas |
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O elemento religioso na obra herbertiana |
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Desde os seus mais remotos textos,
Herberto Helder toma Deus como assunto ou personagem. Assim acontece nos
poemas “Salmo em que se fala das alegrias secretas do coração”, e “Ode
fúnebre”, publicados em 1952. De modo geral, quer como Outro, quer como
Eu, quer através dos atributos, fábulas, rituais e figuras do contexto
católico ou diferente, Deus vem acompanhando o poeta até aos dias de
hoje.
O aspeto religioso associa-se ao discurso
étnico. Assinalo assim que, desde sempre, Herberto Helder tem
manifestado interesse pela poesia tribal e tradicional. Tal sucede n’ O
Bebedor nocturno, com primeira edição em 1968, constituído por vinte e
dois blocos de poemas pertencentes às culturas mais distintas – haikus,
poemas esquimós, indonésios, dos peles-vermelhas, do Antigo Egipto, etc.
Neste livro, além de um «Saltério», figura um poema de amor belíssimo,
vertido da Bíblia, o «Cântico dos Cânticos». N' «A máquina de emaranhar
paisagens» (1), o poeta cola frases de proveniência semita, como o
Apocalipse e o Génesis, a versos de François Villon, Dante e Camões.
Os textos de origem bíblica foram
estudados por autores vários, entre os quais Vasco António Gonçalves,
José Ferreira de Almeida, Agostinho de Jesus Ferreira, e João Amadeu
Oliveira Carvalho da Silva, mas os de outras proveniências étnicas, que
saiba, ainda não. Eu analisei o fator antropológico na sua obra, mas sem
dar especial relevo à questão religiosa. Sobram portanto dezenas de
textos a merecer atenção às marcas do divino, nos livros As magias, Doze
nós numa corda, Ouolof, Poemas ameríndios, Photomaton & Vox, Ofício
cantante, Os passos em volta e O bebedor nocturno.
A obra herbertiana pode ser toda
legendada com a súplica que dá título a um dos seus contos, e eu tomei
para título do meu primeiro livro sobre ele: «Meu Deus, faz com que eu
seja sempre um poeta obscuro». No poema «Do mundo», deduz-se que o seu
pedido foi satisfeito, uma vez que o poeta escreve: «Deus quis que eu
entenebrecesse». O poeta é um profeta, recebeu o sopro divino, a sua
língua é flamejante e salvadoras as suas palavras. Ele garante aos
leitores: «Eu trabalho segundo as recomendações de Deus» (2). No último
poema de Cobra, eliminado no meu exemplar do livro (3), figuravam, e
ainda figuram, estes versos, relativos a um rosto que canta, por isso
identificável como o do sujeito lírico:
O rosto salta.
Nu, violento, inocente, enorme,
miraculado.
A obscuridade refere-se ao magistério
iniciático e não ao académico:
O meu poder é obscuro. Desalojo dos
labirintos da ciência uma fala essencial, cultivada pela ingenuidade.
Empunho essa arma inocente, com ela atravesso meu ser dúbio, o
vocabulário das contradições. Talvez eu mesmo comece aqui, neste momento
ignorante, onde se faz uma claridade inexplicável (4).
A questão mais funda relativamente a
Édipo, para aludir a outro tema na obra de Herberto Helder, não é
descobrir o segredo da Esfinge, sim descobrir o Homem. Sentimos
demasiado medo de nos conhecermos a nós mesmos, é mais fácil fugir com o
rosto ao espelho e à candeia, pois não acreditamos em nada. Niilista, o
poeta não acredita que possa ser anjo no reflexo que não encara, por
nele temer o Demónio. Por muito que a si mesmo se tente, com palavras a
pingarem mel, ele prefere à luz a obscuridade. Não acredita em si mesmo,
deseja que a poesia o salve, mas o desejo não é crença nem esperança, é
um potencial que mantém ativa a demanda. De outra parte, sim, ele
acredita nos seus dons de poeta obscuro.
Vamos relembrar: o livro Apresentação do
rosto abre com versos de Lycophron, poeta dito “O Obscuro”. Aqui e ali,
nos poemas, o suspiro «Meu Deus, faz com que eu seja sempre um poeta
obscuro» reitera-se de modos vários. N' O bebedor nocturno, figura um
poema intitulado “A obscuridade”, na qual os seres que permanecem no
escuro invocam outros seres, pedindo-lhes a luz e que lhes seja mostrado
o caminho. Esta questão envolve um dos vários mitos pessoais de HH.
Afinal não existiria questa da Luz, nem peregrinatio, nenhuma filosofia
hermética no Ofício Cantante, se o poeta fosse um iluminado. Não, ele
não é um iluminado, é um aprendiz, e por vezes garante mesmo que não é
um mestre.
O poeta declara, aqui e ali, não
acreditar na existência de Deus, e é assim que remata o conto «Poeta
Obscuro» - «Que nem mesmo Deus, se existisse… Etc.». Porém, o seu
discurso é religioso, mesmo onde o apelo à religião se torna estranho,
como a conversa, n’ Os passos em volta, de dois homens que se confessam
um ao outro num bar. Estranha situação ainda, essa do conto «Brandy»,
porque o discurso sobre Deus comporta uma rejeição da Igreja. Ela começa
na recusa do vinho, por ser bebida eucarística, quando o vinho, como
bebida mítica, dá corpo a um dos espaços de imaginário mais comuns neste
poeta de cepa dionisíaca. Reforçando a pregnância do discurso religioso,
as personagens que bebem brandy falam mesmo de milagre. Ora o milagre é
um dos tipos de metaforização herbertiana, como veremos a seguir.
Se bem que na obra ocorram formas de
divindade muito distintas, o que predomina é a manifestação da cultura
católica. Ela impregna os poemas de forma difusa ou conspícua,
fornecendo o terreno em que floresce o arrebatamento da linguagem
salmódica ou hínica. É deste caldo que irrompem Deus e Demónio, por
muito que se afastem das leituras do catecismo que todos fizemos na
infância.
Entre os elementos do religioso não
católico, figuram os que podemos associar à alquimia e à magia. São
inúmeras as referências mágicas dispersas na obra, ou expressas na
tradução de poemas mágicos, não só étnicos como de autores ligados às
ciências ocultas, caso do Conde de Saint-Germain, cujo soneto sobre o
poder criador da natureza figura no livro As magias. Num dos textos mais
significativos desta dominante, o poeta conta a história da máscara que
trouxera com ele de uma aldeia do sul de Angola, na qual só o feiticeiro
podia tocar. Outra qualquer pessoa que se abeirasse dela ficava sujeita
a revés. HH não deu atenção à advertência e logo a seguir sofreu um
aparatoso desastre de automóvel, seguido de outras desgraças caídas
sobre quem tocara na máscara enfeitiçada (5).
Ao verter para português textos próprios
das culturas de outros povos, HH busca uma ancestralidade literária, uma
parentela que não pertence ao foro do ADN, sim ao da imaginação
criadora, ou do sonho, como lhe chama Alexandrian. O poeta obscuro é uma
imagem do xamã, ela estabelece uma árvore genealógica sacerdotal. E
tanto isto é assim que, em Lapinha do Caseiro, não só declina a autoria
em Francisco Ferreira, um seu bisavô santeiro, como num dos poemas que
ali publica, junto às fotografias dos santos esculpidos pelo
antepassado, garante que se senta
a conversar com Deus: palavra, música,
martelo
uma equação: conversa de ida e volta.
Que natureza assume o sujeito lírico para
conversar com Deus? Será ele um dos serafins? Um apóstolo? Um
feiticeiro? O poeta afirmara, linhas antes de se sentar para a dita
conversa: “eu falo o idioma demoníaco”. |
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Deus é uma possibilidade necessária |
Recuemos a décadas transatas, em que os
intelectuais se lamentavam que Deus tivesse desaparecido dos livros, e
depois se congratulavam com o seu regresso. De facto, a História de Deus
na arte contemporânea parece estar ainda por escrever. A questão não se
limita à de o catolicismo ir perdendo gradualmente as suas ovelhas, em
todos os espaços sociais, incluídos conventos e igrejas, e não apenas no
literário. Porém, do meu ponto de vista, Deus nunca desapareceu da arte,
simplesmente por “Deus” não podemos entender apenas «Igreja Católica». E
também não podemos entender «fiéis católicos». Por muito que os artistas
possam ser ateus ou agnósticos, Deus está sempre presente nas obras.
Afinal, as religiões são os maiores produtores de cultura. Não podemos
fugir ao que nos corre no sangue. Somos seres de cultura e, em primeiro
lugar, no nosso caso ocidental, cultura católica.
Posto isto, Deus faz volta e meia a sua
aparição. Volta e meia, o poeta faz um braço-de-ferro com Deus, como
fica patente no primeiro verso de “A faca não corta o fogo”: até que
Deus é destruído pelo extremo exercício da beleza (6), declaração que já
vem de Lugar, com primeira edição em 1962. Digamos que Deus é destruído
pela sua própria criação, o poeta é ofuscado pela beleza da sua poesia.
Herberto Helder não acredita na
existência de Deus, porém o poeta não só deseja Deus, não só faz de Deus
objeto de questa, como de caça. É o que lemos por exemplo em Cobra:
Abisma-se
o mistério
animal até ao centro da caça. Atraio
Deus.
Leão vermelho
a brilhar nas clareiras, à frente das
incessantes
mãos do caçador.
Apesar de descrente, o poeta declara-se
filho de Deus, por estas palavras ou outras, ao longo da obra. Assim
acontece em Flash, ao rematar um dos poemas:
Vêm os animais, alvorecendo, os cornos
a rasgarem a cabeça:
outra espécie de luxo,
de melancolia.
E o corpo é uma harpa de repente.
Animal de Deus, eu.
Uma ferida.
O Deus da Igreja católica está presente,
com o discurso que culpabiliza e que perdoa, com os rituais da comunhão
e do baptismo, e com a palavra da salvação. A palavra salvadora
manifesta-se como um Messias. Dizer que existe um messianismo da palavra
em HH, uma busca do Nome que salva, necessariamente traz à mente o acto
de contrição: “Senhor, eu não sou digno de que entreis em minha morada,
mas dizei uma palavra e serei salvo”. É como se fosse uma mensagem
secreta inscrita na parte mais funda de um palimpsesto, ou latejando
obscuramente sob o rosto de uma Mona Lisa – é a nossa cultura mais
primária que se exprime e a ela não lhe podemos fugir. Acontece apenas
que a palavra salvadora, no Ofício Cantante, não é Jesus Cristo.
É algo chocante ler em
Eduardo Lourenço que uma das grandes transformações do ocidente se deve
ao facto de o próprio clero ter deixado de acreditar na ressurreição.
Não acreditando na vida além da morte, em que poderemos nós acreditar? E
como falar do nada em que o ser mergulha, ao fechar os olhos para
sempre? A morte deixa de fazer sentido mesmo como funeral. Sem ao menos
o fingimento da crença na vida eterna, não conseguimos morrer. É o que
acontece nesse poema de “A faca não corta o fogo” em que HH pede que,
quando morrer, antes de alguém se preocupar com funerárias, se
certifique de que está realmente morto, matando-o.
A questão é muito
radical, porque não acreditar nisso põe sob xeque-mate a crença, como
faculdade mental. Ou a asserção é uma possibilidade e não um facto, ou
então já nos adaptámos à falta de crença por termos descoberto novos
alicerces de sobrevivência espiritual. Creio bem que sim, e a
persistência de Deus em textos descrentes é uma boa prova disso. Esta é
igualmente uma proposta de indagação de Swinburne, ao declarar
que a formulação ateísta de que Deus não existe tem hoje uma substituta,
a de que Deus é uma possibilidade necessária. Quanto a mim, creio que os
incréus, como se dizia antigamente, substituíram a crença pelo desejo.
Alguns dizem-se descrentes praticantes. São os que sentem desejo de
Deus, por isso cumprem os rituais, na esperança de que Deus se lhes
manifeste um dia.
Deus é necessário no
Ofício Cantante: com quem poderia o poeta medir forças, estando Deus
ausente dele? Deus faz a sua aparição nos poemas por ser desejado,
porque o poeta o invoca. Desejo e necessidade, eis o que mantém Deus
vivo na arte e na mente. Não foi Deus que morreu, foi a crença.
Permanece viva também a capacidade de esperança, ou já teríamos perdido
a sanidade mental, por falta de horizontes utópicos, contrapesos para a
miséria cultural e espiritual da nossa vida burguesa.
Aqui e ali o poeta faz
girar em torno dele uma catedral de palavras, assumindo-se com Deus
nela. Mas mais frequentemente apresenta-se com as marcas do Demónio, ou
como o Demónio. É o Demónio que escreve, não tanto contra Deus, mas em
batalha com Deus, como se só Deus estivesse à altura do seu desafio.
Sentindo-se porventura vítima de uma tremenda injustiça, que o
encharcasse em culpa sem crime nenhum haver cometido, o poeta
reconhece-se demoníaco mas sempre inocente. Um fragmento de «Última
ciência» situa-nos no problema:
E explode a espuma
no filme
sideral. O talento
tumultuoso de uma camélia
debaixo das varas.
E ao meio,
eu – inocente,
inocente. Largo na testa
para a loucura e o
baptismo.
Arte de redacção:
ver isto,
ver a morte –
dar-lhe um nome de diamante com o nervo
dentro. A veia
selvagem trespassando a acerba
massa dos
vocábulos. E nos lugares visuais do paraíso,
assinar: o
demoníaco – com todas as letras
doces (7).
A confrontação com Deus parece não
resolver conflito nenhum, de resto, noutro texto, a beleza surge como
pomo de discórdia, não entre o poeta e Deus, sim entre o poeta e a
crítica literária académica, para a qual a beleza teria passado de moda.
Assunto importante porque, para o poeta, a beleza é o único sentido da
vida.
Além de Deus, como Nome - que pode ser «a
lição do nome que não tem Deus» (8) -, estão presentes nos poemas sinais
diversos que aludem à sua existência: existência mental, mais forte que
a real. Mas qual é o Messias desta poesia?
Notemos que os sinais externos que
apontam o divino pertencem sobretudo a duas categorias: as auras, os
anjos e o recorrente milagre de andar sobre as águas, pertencem,
digamos, ao ortodoxo Deus do Bem. Muito mais numerosos são porém os
sinais contrários: luz tão forte que se torna luciferina, notas sobre o
canhoto e mão esquerda, gárgulas, e algumas a golfar sangue, referências
a uma besta soberba e a um deus com fenda no casco (9). Pessoas e
crianças demoníacas são personagens de primeiro plano, quer no Ofício
Cantante, quer nos livros em prosa. O poeta alberga-os a todos em si
mesmo, ele é um deus multipolar. O móbil que o poeta atribui a Pero
Coelho, um dos assassinos de Inês de Castro, é o amor. Não que Pêro
Coelho estivesse apaixonado por Inês, mas tinha os olhos postos
certamente no horizonte da imortalidade. Na opinião do poeta, o
assassino era um salvador, o que ele queria era salvar o amor do amor.
Então ocorre a condenação: «Matar por amor do amor é do espírito
demoníaco». O assassino sabe que irá parar ao Inferno, e proclama: «Deus
não é chamado para aqui».[10]
Quem ama o amor não é a pessoa apaixonada por outra, é o teólogo, o
filósofo, o escritor.
No primeiro dos dois poemas da página 435
do Ofício Cantante, a poesia é um dom demoníaco – “Essa dádiva infernal
fechada na metáfora”, escreve o poeta. No segundo, alusivo ao canto que
deixa sangue na boca, recorre-se à palavra “demonia”. De daimon,
certamente, como o termo demónio: «Que seja a demonia: – a arte mais
forte de morrer / pela música, pela / memória».
Não descobri a palavra “demonia”, apesar
de a ter buscado em fontes várias, escritas e orais. A hipótese de se
tratar de mudança de acentuação do nome “Demónia” (o poeta alterou a
acentuação de inúmeros vocábulos nos seus últimos livros) foi logo
rejeitada por Frei José Augusto Mourão, alegando que não existem
demónias. Curiosa perspetiva, a do nosso querido amigo, que deve ser
decerto a que exige o bom conhecimento da teologia. Deixa-me assim
sossegada quanto ao meu Diário de Lilith (11), e também quanto a
obras de outros autores em que as diabas existem mesmo. António Abujamra,
carismático ator e encenador brasileiro, informou em e-mail que Lorens,
dramaturgo norueguês, obteve enorme sucesso com a peça Demônia.
Vimos entretanto que Herberto Helder
define a “demonia” como a arte de morrer pela música, significando isto
que cria a palavra à imagem e semelhança de “poesia”. Em suma, a poesia
é uma arte demoníaca, afirmação reiterada de modos diversos em vários
locais da obra.
No poema dedicado aos mestres, “mestres
do fogo”, como diz Mircea Eliade, encontramos mais um dos regulares
sinais de que são infernais os mesteres de ferreiro e alquimista, quando
os vemos arrebatados pelo demoníaco (12).
Não sei se existe um messianismo
infernal, já que era do Messias que vinha falando. Nada porém impede que
um artista o crie, aliás o messianismo é interpretação cristã das
Escrituras, que não corresponde à vivência hebraica de um mesmo
messianismo, de acordo com Frei Francolino Gonçalves. Ou seja, os
teólogos, quando interpretam, criam, e assim as religiões se
diferenciam:
«Enquanto Jesus leu nas Escrituras
antes de mais o anúncio do Reino de Deus de cuja instauração era o
arauto, os cristãos lêem nelas o anúncio do próprio Jesus confirmado
na sua função de Messias/Cristo. Por conseguinte, a leitura cristã
das Escrituras é cristológica. Tem Jesus Cristo como única chave
hermenêutica. Segundo a leitura cristã, as Escrituras, apesar das
aparências contrárias, falam de antemão de Jesus Cristo de uma ponta
à outra. As personagens (por ex., Moisés e David), os acontecimentos
(por ex., a travessia do Mar dos Juncos), as instituições (por ex.,
o templo e o sacerdócio), os ritos (por ex., o cordeiro pascal) e os
valores (por ex., a lei) referidos nas Escrituras são, de facto,
simples figuras, tipos ou esboços de Jesus Cristo. Têm um sentido
mais profundo que diz respeito a Jesus Cristo. Por isso, só a pessoa
e a vida de Jesus Cristo podem revelar esse sentido.» (13).
Ora, julgo que o braço-de-ferro com Deus
provém deste ponto, precisamente: o artista também é Criador, por muito
que as religiões só a Deus atribuam esse poder. De qualquer modo, o
poeta, mais do que equiparar-se a Deus, equipara-se ao Demónio, quando
fala da fornalha em que mergulha a mão para dela retirar as palavras,
quando garante: “eu falo o idioma demoníaco!" (14).
A questa do Nome domina realmente a obra,
de tal forma que gera um messianismo que se assemelha ao tema da Palavra
perdida dos maçons. É tarefa deles empreenderem a sua descoberta, como
parte da obra ao Forno que todos devemos realizar. António de Macedo diz
ter sido já encontrada – seria o nome de Deus em hebraico. Em Herberto
existe essa mesma demanda da palavra perdida, o Nome. Se alguma vez
pertenceu a sociedades iniciáticas, ignoro, mas estes conhecimentos são
acessíveis a quantos se interessem pela literatura esotérica.
Sigamos, perguntando de novo se o
messianismo, no autor, pertence ou não à ordem das coisas divinas, tenha
o sinal do Céu ou do Inferno. Por outras palavras, perguntemos o que
impele o leitor pelas páginas do Ofício cantante, ou o que move o poeta
à escrita do poema. É algo que ilumina, explica tudo, responde a todas
as perguntas, e por isso salva e, portanto, há que designar-se por
messianismo, ainda que negativo, ainda que se acredite que o Messias não
virá:
a madeira trabalhamo-la às escondidas,
e com o barro e o ferro às escondidas
reluzimos no escuro,
o Deus que há-de vir não veio ainda,
a água não sobe ao rosto,
não sobe com luz ao rosto como devia e
não trabalhamos com
água coada e fogo,
quebrou-se a enxuta substância da
terra,
e então o Deus que há-de vir não há-de
vir nunca (15).
Porém, logo na página seguinte a crença é
oposta, e teima-se que virá Deus, ainda que pareçam irónicos os versos,
por pertencerem a um monólogo interior em contexto muito quotidiano de
quem está no chuveiro:
vem aí o sagrado, e tornam-se radiosas
as coisas mínimas
e amadureces,
e no meio de azulejos, torneiras, gás,
temperaturas,
tocas,
por favor da ferida primeira,
no teu centro, tocas
para causar profundidade,
quer dizer: vem o Deus que há-de vir,
sente-se
contra a água e a cabeça,
tão perto, contra
kapput,
a cabeça
purificada
- ¿ e o Deus que há-de vir há-de vir
andando sobre as águas? –
nada no mundo pede de ti o poder da
dança,
nenhum poder debaixo da água lustral
que te abraça,
por teor dos movimentos do duche,
te despe e abraça,
entre membros e ilhargas, o nó que
rematou a obra
desde o remoto, essa
sim jubilação arcaica,
pois por trás da cortina plástica já
se exacerba
a matéria dos dons, tão
leve
linguagem, uma
espécie de técnica do temor e tremor
no quotidiano [...] (16)
Existe um messianismo em Herberto, que
nem é o de esperar salvação de Deus, nem do Inferno. É o messianismo de
quem acredita nos poderes e ferramentas próprios, e os dele são os do
poeta. Um Lúcifer ou Phosphorous português: «o fósforo e a lixa do teu
nome riscam / e calcinam / a língua portuguesa» (17).
Se a resposta fosse esta, tão simples e
inócua, para que se daria o Homem ao trabalho da escrita e da leitura?
Continuaremos a correr, encandeados por uma luz que cega, autor e
leitores, atrás do Messias. Mas que Messias chama por nós nos
precipícios da língua? Eu não sei, e o autor, basta ler-lhe os livros,
também não sabe. O mistério existe, e esse espelho do Criador, que atrai
como um íman, merece que prossigamos. Afinal, não sabemos se o Deus que
há de vir já não vem. |
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Imagens miraculadas |
Entre as partículas da explosão poética
helderiana, vemos duas linhas de organização predominantes, sempre
prontas a dar suporte a qualquer novo elemento de construção que surja:
o fogo e o canto. O fogo como instrumento de trabalho, uma vez que o
poeta associa a sua arte à de artífices como ferreiros, alquimistas e
vidraceiros. E o canto como arte maior, veículo de redivida e de
imortalidade.
A poesia apresenta-se como canto,
investindo-se de dimensão litúrgica. É uma arte demoníaca, em paralelo,
apesar de ser língua flamejante, como lemos em “Lugar” (18). Tal como os
Apóstolos receberam o dom das línguas, assim as línguas de fogo iluminam
o poeta. As imagens da Bíblia estão sempre presentes na concepção da
poesia como fenómeno excepcional – divino, demoníaco ou alucinado: Há
uma roda de dedos no ar./ A língua flamejante./ Noite, uma inextinguível
/ inexprimível/ noite (19).
Ora o que fascina o leitor, e
provavelmente também o poeta, é esse filme de palavras flamejantes, pois
ele constrói um mundo perturbador da consciência, ao gerar imagens
surpreendentes, construções impossíveis, seres e coisas que violam os
limites do mundo natural, e, nesta medida, atacam a sua normalidade. A
transgressão, ao romper as membranas que separam o mundo natural de
outro mundo, um mundo desejado pelo poeta, mas que nem ele nem nós
sabemos qual seja, cria vias de acesso ao conhecimento de espaços a que
poderíamos chamar surrealistas, e são-no, mas que ultrapassam a questão
técnica e cultural para colidirem com o sobrenatural. A metáfora
herbertiana corresponde a um milagre, e o domínio mais evidente para
testarmos esta hipótese de trabalho é o da língua flamejante, ou seja, o
do fogo.
Não vamos discutir a palavra “milagre”:
na sua origem etimológica reside a ideia de maravilha, por isso não
ficaremos confinados à significação católica. Os “senhores do fogo”,
esclarece Mircea Eliade, comem fogo, andam sobre brasas, mergulham as
mãos em carvões incandescentes, tal como os santos. São os xamãs, os
ioguis e os feiticeiros de religiões primitivas. Bebem álcool, comem
comidas muito apimentadas ou com muito sal, para aumentarem a
temperatura do corpo, de modo a trabalharem com o fogo, sem se
queimarem. Os primitivos representam o poder mágico-religioso como
“inflamado” e exprimem-no em termos que significam “calor”,
“queimadura”, “muito quente”, etc. – instrui Eliade.
Estes exemplos dizem respeito a fenómenos
relatados e estudados também por Jean-Jacques Antier (20) enquanto
constitutivos de situações de milagre. Como ele refere, fenómenos
idênticos aos experimentados pelos santos ocorrem noutras religiões e
culturas. Focamos neste caso fenómenos relativos ao tato e à derme,
resultando na subida anómala da temperatura, designada, no caso do amor
místico a Deus, por incendium amoris. Esse fogo está presente na maior
parte dos poemas, quase sempre relativo a algo que produz a poesia ou é
esse canto. “Arder”, “ferver” e similares verbos indicadores de subida
de temperatura são frequentíssimos. Em paralelo, substâncias com
capacidade para aumentar a temperatura interna, usadas pelos xamãs, como
o álcool e as drogas, também se lhes associam às vezes. Vejamos meia
dúzia de expressões ardentes:
Eu comia fogo ao pé das cerejas
(Ofício Cantante, p. 213);
[Este homem] / Vive em/arco.
Pensa em/ espírito de fogueira.
Tem toda a mão queimada até ao silêncio
(Ofício Cantante, p. 181)
Queima-te a espaçosa
desarrumação das imagens (Ofício Cantante, p. 335)
[...] Ou lhe ponhas no escuro
um incêndio:
e te ilumines dele, E a tua cara se faça
miraculada
à combustão, E entres rutilante por uma porta
para outra porta, Essa porta que dê
para uma porta de ti própria,
a mão ateando a escrita (Ofício Cantante, p. 374)
“Miraculada”, escreve o autor. Não há
dúvida, é de milagre que se trata. Entre todos, o da hipertermia é o
mais frequente: criaturas incandescentes, ou com ferros em brasa na
cabeça, encontramo-las em profusão, desde os primeiros aos últimos
poemas. Febre, delírio, corpos que fervem, cabeleiras que ardem, mãos
que se metem em fornalhas, são às dezenas.
A imagem herbertiana, dadas as suas
características, equivale ao milagre, só tem paralelo num universo de
fenómenos excepcionais, diverso daquele que a ciência explica, invocando
as leis da natureza. É o caso também dos modos miraculados de tocar,
toques que curam doentes ou que ressuscitam mortos. Neste campo do
maravilhoso, encontramos as surpresas maiores do discurso de Herberto
Helder.
No que respeita ao tato, faço uma seleção
pessoal de imagem que considero central, por tudo a ela poder referir-se
neste domínio do passar a mão por, que é ainda uma imagem de milagre,
visto que o toque de dedos é um sinal de reconhecimento de identidade
entre homens e deuses. Essa imagem é a de Adão ao ser tocado pelo
Criador, pintada por Miguel Ângelo na Capela Sistina:
quem sabe?, na muita lembrança da luz,
se houvesse desde o princípio, dedo no dedo,
a faúlha,
ou se quiserem: no toque dedo no dedo,
o abalo oculto -
garrafa diurna gerada como absoluto, a fogo. (p. 496)
O toque de dedos é demiúrgico –
transmuta, cria, chega a mudar o mundo todo. Só mais um exemplo desta
alquimia: “toco num objecto ele brilha / Tocava, abalava organismos”
(21).
Questão de o alquimista lavrar bem nas
chamas a coisa de argila que leva ao atanor. Essa imagem surge de vez em
quando, por vezes associada às ferramentas de um canteiro que, sem
transporte metafórico, é o escritor que usa esferográficas, e mais
realisticamente a Bic. A Criação de Deus e a Criação do poeta
encontram-se. Com isso, surge a paixão, o desejo de ser iluminado,
escrito, transfigurado, criado pelo poder demiúrgico desse toque. De
novo um Messias no horizonte, para adoçar esta sessão, finda a minha
caminhada por uma poesia coroada de espinhos:
Alguém há-de tocar-me com um dedo,
alguém
há-de pôr-me um selo (22). |
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Notas |
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Leituras |
ALEXANDRIAN, Sarane (1973) - O
Surrealismo. Lisboa, Editorial Verbo.
ALMEIDA, José Ferreira de Almeida (1995)
- “Os cantos do corpo. Uma leitura da “versão” de Herberto Helder do
Cântico dos Cânticos”. Brotéria, 140 (5/6), Lisboa.
ELIADE, Mircea (1987) - Ferreiros e
Alquimistas. Lisboa, Relógio d'Água, 1987.
FERREIRA, Agostinho de Jesus (1996) -
“Rejeição e Religião em Os Passos em Volta de Herberto Helder”. I e II.
Brotéria, 143 (2/3, 4), Lisboa, 1996.
GONÇALVES, Francolino J. (2002) - “O
Antigo Testamento e Jesus Cristo”. Curso de Teologia. Fátima. Instituto
S. Tomás de Aquino. Cadernos do ISTA, 2003. Em linha no TriploV:
http://www.triplov.com/ista/escritura/francolino/antigo_testamento.html
GONÇALVES, Vasco António da Cruz (2005)
- Do Cântico dos Cânticos ao Cântico de Herberto Helder: o Amor como
Movimento Sagrado. Faculdade de Filosofia de Braga. Tese de
mestrado.
GUEDES, Maria Estela - (1979) -
Herberto Helder, Poeta Obscuro. Moraes Editores, Lisboa.
GUEDES, Maria Estela (2010) – A obra
ao rubro de Herberto Helder. São Paulo, Escrituras Editora.
GUITTON, Jean (2000) - Os Misteriosos
Poderes da Fé - Diálogo com Jean-Jacques Antier. Lisboa, Âncora
Editora, 2000.
HELDER, Herberto (1952) - “Salmo em que
se fala das alegrias secretas do coração”. Arquipélago, editorial eco do
Funchal. Funchal.
HELDER, Herberto (1952) - “Ode fúnebre”.
Arquipélago. Funchal.
HELDER, Herberto (1968) -
Apresentação do Rosto. Lisboa, Editora Ulisseia.
HELDER, Herberto (1977) - Cobra.
Lisboa, Edições &etc.
HELDER, Herberto (1979) - Photomaton
& Vox. Lisboa, Assírio e Alvim.
HELDER, Herberto (1997) - Ouolof.
Lisboa, Assírio & Alvim.
HELDER, Herberto (1997) - Poemas
ameríndios. Lisboa, Assírio & Alvim.
HELDER, Herberto (1997) - Doze nós
numa corda. Lisboa, Assírio & Alvim.
HELDER, Herberto (2008) - Lapinha do
Caseiro. Poemas de Herberto Helder. Lisboa, Assírio & Alvim.
Assinado Francisco Ferreira.
HELDER, Herberto (2008) - A Faca não
Corta o Fogo - Súmula & Inédita. Lisboa, Assírio & Alvim.
HELDER, Herberto (2009) - Ofício
Cantante – Poesia Completa. Lisboa, Assírio & Alvim.
HELDER, Herberto (2010) - O bebedor
nocturno. Lisboa, Assírio & Alvim.
HELDER, Herberto (2010) - As Magias.
Lisboa, Assírio & Alvim.
LOURENÇO, Eduardo (2006) - As Saias
de Elvira e Outros Ensaios. Lisboa, Gradiva.
MACEDO, António de (2005) - “A palavra e
a pedra”. In: A Palavra Perdida. Lisboa, Apenas Livros Editora.
SILVA, João Amadeu Oliveira Carvalho da
(1994) - “Os Selos de Herberto Helder e o Apocalipse” I e II. Brotéria,
138 (3,4), Lisboa. |
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Maria Estela Guedes
(1947, Britiande / Portugal). Diretora do Triplov
Membro da Associação Portuguesa de Escritores,
da Sociedade Portuguesa de Autores, do Centro Interdisciplinar da Universidade de Lisboa e do Instituto São Tomás de Aquino. Directora do TriploV.
LIVROS
“Herberto Helder,
Poeta Obscuro”. Moraes Editores, Lisboa, 1979; “SO2” .
Guimarães Editores, Lisboa, 1980; “Eco, Pedras Rolantes”, Ler
Editora, Lisboa, 1983; “Crime no Museu de Philosophia Natural”,
Guimarães Editores, Lisboa, 1984; “Mário de Sá Carneiro”. Editorial
Presença, Lisboa, 1985; “O Lagarto do Âmbar”. Rolim Editora, Lisboa,
1987; “Ernesto de Sousa – Itinerário dos Itinerários”. Galeria
Almada Negreiros, Lisboa, 1987 (colaboração e co-organização); “À
Sombra de Orpheu”. Guimarães Editores e Associação Portuguesa de
Escritores, Lisboa, 1990; “Prof. G. F. Sacarrão”. Lisboa. Museu
Nacional de História Natural-Museu Bocage, 1993; “Carbonários :
Operação Salamandra: Chioglossa lusitanica Bocage, 1864”. Em
colaboração com Nuno Marques Peiriço. Palmela, Contraponto Editora,
1998; “Lápis de Carvão”. Apenas Livros Editora, Lisboa, 2005; “A_maar_gato”.
Lisboa, Editorial Minerva, 2005; “À la Carbonara”. Lisboa, Apenas
Livros Lda, 2007. Em co-autoria com J.-C. Cabanel & Silvio Luis
Benítez Lopez; “A Boba”. Apenas Livros Editora, Lisboa, 2007;
“Tríptico a solo”. São Paulo, Editora Escrituras, 2007; “A poesia na
Óptica da Óptica”. Lisboa, Apenas Livros Lda, 2008; “Chão de papel”.
Apenas Livros Editora, Lisboa. 2009; “Geisers”. Bembibre, Ed.
Incomunidade, 2009; “Quem, às portas de Tebas? – Três artistas
modernos em Portugal”. Editora Arte-Livros, São Paulo, 2010.
“Tango Sebastião”. Apenas Livros Editora, Lisboa. 2010. «A obra ao
rubro de Herberto Helder», São Paulo, Editora Escrituras, 1010.
ALGUNS COLECTIVOS
"Poem'arte - nas margens da poesia". III Bienal de
Poesia de Silves, 2008, Câmara Municipal de Silves. Inclui CDRom
homónimo, com poemas ditos pelos elementos do grupo Experiment'arte.
“O reverso do olhar”, Exposição Internacional de Surrealismo Actual.
Coimbra, 2008; “Os dias do amor - Um poema para cada dia do ano”.
Parede, Ministério dos Livros Editores, 2009.
Entrada sobre a Carbonária no Dicionário
Histórico das Ordens e Instituições Afins em Portugal, Lisboa,
Gradiva Editora, 2010.
TEATRO
Multimedia “O
Lagarto do Âmbar, levado à cena em 1987, no ACARTE, Fundação
Calouste Gulbenkian, com direcção de Alberto Lopes e interpretação
de João Grosso, Ângela Pinto e Maria José Camecelha, e cenografia de
Xana; “A Boba”, levado à cena em 2008 no Teatro Experimental de
Cascais, com encenação de Carlos Avilez, cenografia de Fernando
Alvarez e interpretação de Maria Vieira. |
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