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REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências

ISSN 2182-147X
NOVA SÉRIE

 

 







Maria Estela Guedes
Foto: Ed. Guimarães

HERBERTO HELDER E CARLOS DE OLIVEIRA
- Dois modelos de cidadania?

Palestra proferida na VIII Bienal Internacional do Livro de Pernambuco, “Literatura e Cidadania”, Recife/Olinda, 1 de Outubro de 2011)

Edição original no Triplo II - O blog do Triplov

«Não descuido a minha obra. Deve-se velar por aquilo que conseguiu ascender, entre riscos e ameaças, às condições da realidade. Mas serão os meus poemas uma realidade concreta no meio das paisagens interiores e exteriores? Não possuo um só dos papéis que enchi; interessa-me a forma acabada das minhas experiências, e suas significações, mantida numa espécie de memória tensa e límpida. Os papéis, esses, estão em França (Paris ou Marselha), na Holanda e até possivelmente na África do Sul. Encontram-se nas mãos de conhecidos, desconhecidos, amigos ou inimigos — e cada qual saberá usar deles de modo particular e, suponho, exemplar. Tirarão daí indeclináveis razões para a moralidade dos seus pensamentos com relação a mim e a eles mesmos. Não, não sei de cor as pequenas composições de palavras. Retenho a fantasia, a objectividade delas — ponto onde me apoio para saber que sou sólido, e tenho (ou sou) uma obra.»

Herberto Helder, «Vida e obra de um poeta»

 

«Pois bem, quero chegar a isto: esses homens fazem as fortunas dos grandes lavradores ribatejanos e vêm acabar a Corrocovo sem um naco de broa, sem enxerga, sem a porcaria dumas drogas. Não falo já doutras aspirações, de alegria, de felicidade, dum destino digno. Falo das coisas primárias, inadiáveis: alimentação, cobertores, remédios. Aponto simplesmente os factos, não indico nenhuma solução, não digo que o comunismo resolva ou deixe de resolver. Aquilo de que falo, toda a gente o tem debaixo do nariz, e toda a gente finge que não vê.»

Carlos de Oliveira, Casa na duna

Cidadãos contra a ditadura

 Herberto Helder (Funchal, 1930) e Carlos de Oliveira (Belém do Pará, 1921-Lisboa, 1981), apesar dos nove anos de diferença de idade, mantiveram relações de estreita camaradagem e amizade, como ainda hoje conta Ângela Oliveira, viúva de Carlos de Oliveira e sua personagem discreta. Das informações de Ângela, deixei registo no meu livro «A obra ao rubro de Herberto Helder». Além de pontos similares nas biografias, a obra dos dois poetas também patenteia aspetos comuns. O leitor interessado depressa verificará que um dos espaços simbólicos e semânticos mais apelativos nos livros de qualquer um deles é o do fogo, com as suas labaredas encarnadas. Manuel Gusmão, que já revelou ser o vermelho uma referência comunista em Carlos de Oliveira, também apontou afinidades entre os dois poetas.

Em 1944, a Censura apreendeu o romance «Alcateia», de Carlos de Oliveira. A Herberto Helder foi apreendida, em 1971, a obra «Apresentação do rosto». Quase trinta anos medeiam entre os dois gestos inibidores. Nenhuma das obras figura atualmente na lista das que os autores reconhecem. Carlos de Oliveira reescreveu obsessivamente todos os seus livros, mas, à data da morte, não tinha recuperado ainda «Alcateia». Herberto Helder aproveitou apenas segmentos de «Apresentação do rosto» em livros subsequentes. A que se deveu a apreensão? Provavelmente, ao facto de os livros veicularem ideias libertárias, perseguidas e condenadas pelo regime vigente.  

Carlos de Oliveira morreu há trinta anos, sete passados sobre o 25 de Abril de 1974, data que marca para os portugueses o fim da ditadura do ministro Oliveira Salazar, e subsequente instauração da democracia. Por isso, e embora Herberto Helder esteja vivo, a amplitude cronológica do que vou lembrar remonta aos anos quarenta ou mesmo trinta do século passado. Hoje, esse tempo já só é emocionalmente perceptível pelos mais velhos. As gerações jovens, e com o acréscimo de serem estrangeiras, só poderão ter dos factos uma visão mediatizada pelos livros de História. O que para estes dois homens foi chicotada nas costas, limite na liberdade de seguir um rumo traçado por eles mesmos, para muitos de nós, hoje, é literatura.

A oposição às ditaduras foi feita por associações democráticas como as obediências maçónicas, e pelos partidos de esquerda, movidos ideologicamente pela doutrina marxista. Provavelmente, nunca uma filosofia teve tanto impacto na vida prática; para o caso que mais nos interessa, no aparecimento de novas ou renovadas manifestações estéticas. A bem dizer, as vanguardas do século XX, desde a literatura ao cinema, fluem de um pensamento marxista que dá atenção às camadas mais pobres da sociedade, e para a sociedade reclama condições de liberdade, justiça e igualdade que no horizonte encontrem um mundo mais feliz. Não estando nas mãos da arte a solução dos problemas, como Carlos de Oliveira manifesta em epígrafe a este texto, os artistas sentem-se no dever de denunciar sistemas políticos prepotentes, combatendo-os com a arma disponível - a palavra, o gesto, a imagem ou a música. José Mário-Branco, músico e cantor, celebrizou uma canção do período pós-25 de Abril, que inclui os versos: «A cantiga é uma arma/ contra a burguesia». A burguesia é o inimigo a combater pelos militantes de esquerda. 

Nesta linha de ideias, falar de cidadania em relação a Carlos de Oliveira implica falar do neo-realismo, estreitamente conetado com o comunismo. De resto, o movimento só não se identificava como «realismo socialista» por a Censura não aceitar o segundo termo. Antes do 25 de Abril, o Partido Comunista Português, bem como Álvaro Cunhal, seu fundador, e pessoa ativa também na cultura, mantinham-se na clandestinidade.

Gesto significativo do relacionamento de Carlos de Oliveira com a esquerda foi a edição do seu primeiro livro de poemas, Turismo, na coleção Novo Cancioneiro. Publicada em Coimbra entre 1941 e 1944, a coleção é considerada, com outros marcos, como a saída de «Gaibéus», de Alves Redol, um dos pontos iniciais do movimento neo-realista português. Num punhado de apenas dez livros, surgiram escritores que depois seguiram rumos diversos. Alguns ainda estão presentes no nosso quotidiano de leitores, outros passaram à obscuridade. Além de Carlos de Oliveira, fazem parte do Novo Cancioneiro: Fernando Namora (Terra, 1941), Mário Dionísio (Poemas, 1941), João José Cochofel (Sol de agosto, 1941) Joaquim Namorado (Aviso à Navegação, 1941) Álvaro Feijó (Os Poemas, 1941) Manuel da Fonseca (Planície, 1941), Sidónio Muralha (Passagem de Nível, 1942), Francisco José Tenreiro (Ilha de Nome Santo, 1942) e Políbio Gomes dos Santos (A Voz que Escuta, 1944, póstumo).

À data da publicação de Turismo, em 1942, Carlos de Oliveira estudava na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, onde conhecera alguns autores do Novo Cancioneiro, que se tornaram seus amigos, caso de Fernando Namora, Joaquim Namorado e João José Cochofel. O seu primeiro romance foi Casa na Duna, publicado em 1944, e nesse mesmo ano saiu Alcateia, que já vimos ter sido apreendido pela Censura.  

As personagens habituais do romance de Carlos de Oliveira são o proletariado e a burguesia rurais da gândara, uma região costeira que se estende de Coimbra a Aveiro. Os conflitos entre personagens puseram decerto em cena diálogos transmissores de ideias comunistas, o que era o bastante para a Censura impedir a distribuição da obra. E com isto verificamos que a cidadania, do ponto de vista da relação estabelecida entre os artistas e a polis, entra em confrontação direta com os poderes políticos estabelecidos. O artista situa-se na oposição, ou é mesmo um agente corruptor de sistemas políticos indesejados. Claro que também existem os situacionistas, mas esta Bienal é dedicada à cidadania e não à ditadura.

Embora o Novo Cancioneiro seja apenas um agrupamento de escritores com alguns interesses comuns, a porta aberta por esses e outros escritores empenhados na questão social deu saída a um fluxo de publicações orientadas ideologicamente. Foi-se constituindo uma linhagem marxista em que se encontram artistas de vários quadrantes, quer na arte erudita quer na popular, e que se prolonga até hoje. Ainda hoje é fortíssima, por exemplo, a ação de um Zeca Afonso, músico e poeta falecido há anos, cujas canções a Censura proibia de passarem na Rádio. Poetas de forte implantação popular, como Ary dos Santos, paradoxalmente oriundo de famílias da alta burguesia, deram voz a movimentos de contestação do regime salazarista, até mesmo no palco do Festival Europeu da Canção. Os vestígios da linhagem marxista são visíveis hoje em muitas manifestações da arte, seja literária seja musical. Aliás, uma boa parte de nós terá de reconhecer a sua genealogia de esquerda. A minha intervenção está orientada nesse sentido, muito embora não existam no meu currículo grandes vínculos políticos.  

Continuando o aparte autobiográfico, acrescento que há trinta anos eu já escrevia sobre Carlos de Oliveira, mas nessa altura desculpava-lhe o neo-realismo. Neste momento escrevo sobre os autores comunistas sem qualquer preconceito. À sua arte acrescentaram a dimensão heróica, muitos sofreram o exílio, a prisão ou a tortura. E mais: diria que os tempos difíceis que atravessamos requerem de nós um papel ativo nos assuntos da polis, apesar de os nossos países já terem alcançado a democracia. 

Não esqueçamos o cinema. Em Itália, o neo-realismo teve expoentes em Luchino Visconti, Roberto Rosselini e Vittorio de Sica. Em Portugal também apareceu um novo cinema, estreado em 1962 com Dom Roberto, de Ernesto de Sousa. Ernesto de Sousa foi um artista e intelectual multifacetado, homem das vanguardas, que teorizou o neo-realismo nas páginas dos jornais em que escrevia, e o praticou, nos seus primeiros anos de atividade estética, através da imagem: fotografia e cinema. Além disso, foi um dos pioneiros do cineclubismo, forma de associação em que, a propósito do debate sobre filmes, se podiam divulgar novas ideias e combater o fascismo. O Dom Roberto ganhou os Prémios da Jovem Crítica (“La Jeune Critique”) e de “L’ Association du Cinéma pour la Jeunesse” no Festival de Cannes de 1963. Ernesto de Sousa não os pôde receber pessoalmente porque a polícia política o prendeu na fronteira. Nove anos depois do Dom Roberto, o romance Uma abelha na chuva, de Carlos de Oliveira, foi levado ao grande écran pelo realizador Fernando Lopes (1971).

Não seria a única experiência cinematográfica do poeta em análise. Em 1957, co-organizara, com José Gomes Ferreira, dois volumes de Contos Tradicionais Portugueses, alguns deles adaptados ao cinema por João César Monteiro. João César Monteiro, um cineasta da abominação, como ele próprio diz, significando isto que a sua posição é mais surrealista do que neo-realista, declara que Carlos de Oliveira foi o seu pai espiritual.

Não pode ficar de lado o relacionamento do poeta com Fernando Lopes Graça, importante compositor e homem de esquerda, várias vezes preso devido às suas intervenções de cidadania. Compôs a música para as Canções Heróicas, entre as quais se conta um poema de Carlos de Oliveira. Essa canção tornou-se uma das mais populares do pós-25 de Abril, quer na versão de Lopes Graça, quer na de Manuel Freire:

 

Solo

Não há machado que corte

a raiz ao pensamento

 

Coro

não há morte para o vento

não há morte.

 

Solo

Se ao morrer o coração

morresse a luz que lhe é querida,

 

Coro

sem razão seria a vida,

sem razão. 

 

Solo

Nada apaga a luz que vive

num amor, num pensamento,

 

Coro

porque é livre como o vento,

porque é livre. 

Carlos de Oliveira, «Livre», texto musicado por Lopes Graça

 

A divulgação dos ideais patentes no Novo Cancioneiro deveu-se também a pessoas como Maria Barroso. Esta atriz, mais tarde casada com Mário Soares, fundador do Partido Socialista Português, que viria a ser primeiro ministro e duas vezes Presidente da República, corria as associações populares de todo o país a declamar os novos poetas.

Mais velho do que eu, e mais próximo, não apenas em idade, mas também em relações de amizade e pensamento com essa frente de autores que afrontaram a ameaça da Censura e da PIDE é Baptista Bastos, que anota o esquecimento em que vão caindo esses escritores cujas manifestações de cidadania se exprimiram no combate a um regime injusto e anti-democrático, considerado fascista pelos opositores:

“Muitos dos nomes desapareceram, na voragem do esquecimento. Quem lê Leão Penedo, Rogério de Freitas, Alexandre Cabral, Manuel do Nascimento, Egito Gonçalves, João Apolinário, Luís Veiga Leitão, Garibaldino de Andrade, Antunes da Silva - ou, mesmo, Carlos de Oliveira, Fernando Namora, Alves Redol, Cardoso Pires, José Gomes Ferreira, Augusto Abelaira, Alexandre Pinheiro Torres, tantos, tantos mais? E, no entanto, eram cimeiros na aventura cultural daqueles tempos.”  

Faço notar que Carlos de Oliveira não está assim tão esquecido. A sua obra foi reeditada nos últimos anos pela Assírio & Alvim, e tem merecido estudo por parte da Universidade, quer em Portugal, quer no Brasil.

Os leitores de Carlos de Oliveira sabem que se manteve sempre fiel à gândara e aos seus habitantes. Embora de forma estilizada, a terra, as classes, o anúncio da ruína da burguesia mantêm-se no seu último livro, Finisterra – Paisagem e povoamento. A temática e o enquadramento ideológicos permanecem tão vivamente de esquerda que, apesar de o discurso ser bastante abstrato, Urbano Tavares Rodrigues considera essa obra um «romance marxista».

A marginalidade contra a burguesia

Se Carlos de Oliveira, como principal manifesto de cidadania, mostra o apelo às doutrinas marxistas que vieram a tornar-se prática no 25 de Abril de 1974, Herberto Helder, além de não veicular as doutrinas marxistas, é mais radical. A militância, seja de que tipo for, não faz parte das vivências expressas no Ofício Cantante, o mais recente título da sua «Poesia toda». Diferentemente de Carlos de Oliveira, que tem sempre um anjo a guardá-lo (Gelnaa, Ângela), em Herberto Helder o poeta é um ser solitário.

Em 1979, em Photomaton e Vox, quatro anos volvidos sobre o 25 de Abril, já Herberto Helder recusa a ideia de ter existido em Portugal uma revolução. Portanto, a revolução permanece ainda no horizonte messiânico, admitindo que o poeta professe tal crença.

Falar de cidadania a respeito deste poeta implica entrar no mundo das paixões que agitaram os grupos surrealistas de Lisboa, de que ele foi próximo, e de que se distanciou depressa, talvez por desagrado face à excessiva colagem às doutrinas comunistas. Não obstante, o surrealismo, ao levantar o estandarte da liberdade, ao penetrar no obscuro reino do inconsciente, e ao valorizar a imaginação criadora, deixava e deixa sempre os seus adeptos sem coleiras. Trata-se de um movimento e não de uma escola, por isso a proposta de “poesia e liberdade”, do meu ponto de vista, permanece válida. O surrealismo foi tão virulento como o neo-realismo no ataque à ideologia burgesa. Fê-lo de outros modos: pelo discurso não normativo, pela imaginação transgressora e pela defesa da liberdade individual. O surrealismo tenta conhecer o universal através da experiência individual, por isso a presença do autor na obra é fundamental.

O itinerário da juventude de Herberto Helder, além da similitude com a afrontação dos valores burgueses através do discurso surrealista e do experimentalismo, liga-se também à contestação dos anos sessenta, com a contracultura própria do movimento hyppie, da beat generation, da música pop, etc..

A recusa do modelo de vida burguês manifesta-se, em Herberto Helder, quer na obra quer na vida. É por demais conhecido, mesmo no estrangeiro, que o poeta recusa a maior parte das experiências mundanas da poesia, como homenagens, prémios, entrevistas, participação em congressos e bienais do livro. Provavelmente, porque esses são os sinais mais óbvios de um entendimento da arte como atributo da pessoa prendada, passível de entreter salões de família. Ou como produto comerciável. Deixando para espaços mais discretos a discussão da arte como experiência dos limites, entrega vinte e quatro horas por dia, ou mesmo caso de vida ou de morte, como queria Rimbaud, fiquemos por questões mais terrenas, ao contrapor o artista a uma burguesia intelectualmente destruidora, para a qual o cidadão modelo é aquele que a replica em comportamento e endoutrinação: «Olha para mim, aprende com o que eu faço, sê como eu sou!».

Na generalidade, o papel do artista não tem boa integração social. Nós não somos ricos. Ora o dinheiro é o máximo valor nos nossos dias. Não somos considerados profissionais da escrita, sim professores, médicos e advogados cujo entretenimento é fazer uns versos e contar umas histórias nas horas vagas. Por isso, não precisamos de ser pagos. Esse é o maior valor burguês e capitalista: o sucesso na sua atividade, a riqueza alcançada com o trabalho. Embora a coleção de poemas de Carlos e de Oliveira, Trabalho poético, e de Herberto Helder, Ofício cantante, exiba título idêntico, a verdade é que o valor do trabalho é diferente na obra de ambos. Quanto à biografia, nenhum parece ter exercido tarefas remuneradas que valha a pena mencionar.

Na nossa sociedade ocidental, o sucesso obtém-se na competição, e competição significa corrida de semelhantes. É fácil ver que tal modelo é avesso à estética, em que o artista precisa de ser o mais possível diferente. Ele não pode recorrer a modelos nem a estereótipos, sob pena de se tornar a melhor Dolly do rebanho. Herberto Helder não só recusa os modelos como escreve contra eles. E como alguns pilares da sociedade burguesa são constituídos por nós, isto é, pelas universidades e academias, nos últimos anos tem-se revoltado contra os senhores doutores que escrevem sobre os seus livros. Vamos ver apenas um exemplo, incompleto extrato, coligido no seu mais recente livro em primeira edição:

 

ó stôr não me foda com essa de história literária,
o stôr passou-se da puta da mona,
a terra extravaza do real feito à imagem da merda,
e então vou-me embora,
quer dizer que falo para outras pessoas,
falo em nome de outra ferida, outra
dor, outra interpretação do mundo,
outro amor do mundo,
outro tremor,
[…]

Herberto Helder, A faca não corta o fogo
 

Pelas razões aventadas, encontramo-nos sós neste debate, o poeta não está aqui. O poeta continua a viver, como na juventude, à margem do sistema social, no silêncio do seu eremitério. Como se viu, ele recusa a pertença ao mundo ideológico dos outros, invoca a existência de um diferente paradigma, pelo qual se rege.

Vejamos três formas de recusa no interior da obra de Herberto Helder. Primeira, pela assunção do sujeito, aquela presença do individual susceptível de espelhar o universal, típico do surrealismo. A tal ponto é apaixonada essa presença, que o leitor identifica a pessoa que fala nos textos com o autor. É o que acontece no fragmento que escolhi para epígrafe, em que o enunciador é um poeta que fala da sua obra. O mesmo ouvimos no fragmento anterior, discurso contra os universitários que invocam coisas tão anacrónicas como História literária, a respeito dos seus poemas. Quem fala nestes textos? É evidente que só pode ser Herberto Helder. Nesta óptica, a obra torna-se profundamente autobiográfica. De resto, não declara ele - «tenho (ou sou) uma obra»? É a pessoa do autor que se impõe como texto disponível para a leitura. O autor quer que o leitor se preocupe só com a obra, deixando de lado genealogias, História literária e biografia. Porém a obra, sem aquele indivíduo que nos interpela ao falar da mesma obra e no interior dela, não existe, não se concebe. Se pudéssemos subtrair o autor à sua obra, não sobrava nada. No caso de Carlos de Oliveira, sim, a figura do autor pode desaparecer, ela não tem grande peso nos textos. A autobiografia não deixa marcas na memória do leitor. A figura do autor aparece num livro de ensaios, O aprendiz de feiticeiro, mas as personagens mais marcantes da obra não são as ligadas à literatura, sim ao trabalho do campo ou à pequena indústria, como a da extração da cal.

O auto-retrato, que de resto Carlos de Oliveira também cultivou, mas em pintura, em Herberto Helder vem desde os primeiros poemas. Em Carlos de Oliveira, não só a pessoa do autor não se reflete em espelho relevante na obra, como as próprias personagens desaparecem como figuras autónomas. No último dos seus romances, Finisterra, não têm nome próprio, é difícil distingui-las umas das outras, e a gândara também se desintegra na sua individualidade geográfica. Nesse aspeto, Carlos de Oliveira parece exprimir a tendência declarada por Roland Barthes e Michel Foucault, ao assinalarem a morte do autor, e a teoria marxista, ao deslocar do individual para o social os valores de cidadania a perseguir pelo indivíduo. A maior ofensa que o neo-realismo endereçava ao surrealismo e manifestações estéticas marcadas pela emoção de um “Eu” era a de os autores se ensimesmarem na contemplação do seu próprio umbigo. E a resposta de surrealistas, experimentalistas e afins, era a de o neo-realismo não ser arte, sim propaganda política.

Segundo modo de se situar à margem, com Herberto Helder, é o discurso poético, variado, cobrindo desde a luxúria metafórica de «O amor em visita» até à secura da afronta, como lemos acima. 

Se bem que hoje eu já não ache o poeta tão difícil de entender como há trinta anos, data em que publiquei o meu primeiro ensaio sobre ele, Herberto Helder, poeta obscuro, ele é usualmente considerado um poeta de discurso hermético. Entre outras exegeses do problema, podemos considerar este: Carlos de Oliveira e Herberto Helder, como todos os artistas que se manifestaram em obra pelo menos nos quarenta anos anteriores a 25 de Abril de 1974, tiveram de enfrentar a Censura. Quer o discurso literário quer o discurso da Imprensa estão codificados, de forma a iludir os censores. Que eu saiba, os códigos ainda não foram estudados e era urgente que se dicionarizassem as suas expressões, pois outra História se conta nas entrelinhas da História que toda a palavra comporta.

Porém o discurso é avesso à inteligibilidade normal por outras razões, ou nenhumas. Claudio Willer, em A geração beat, anota que o discurso não linear, não coincidente com as estruturas normativas do pensamento, era uma das armas da contracultura.

Terceiro aspeto da recusa do modelo burguês, em Herberto Helder, e por consequência terceiro exemplo do seu exercício de cidadania, é o apelo ao crime. O crime representa a máxima subversão da ordem da cidade, portanto a mais forte agressão à nossa necessidade de segurança. Herberto Helder entende a poesia como ato transgressor e carniceiro, aponta revólveres nos textos. O poeta recusa a ideia da democratização da poesia. Pelo contrário, ataca os leitores, e rejeita o exercício da cidadania. Ernesto de Sousa proclamava que «A poesia é feita por todos». Contra isso argumenta Herberto Helder que “(a poesia é feita contra todos)”:

 

É aborrecido ter que reclamar-se de todas as afirmações de princípio muito óbvias.

Nós respeitamos os atributos e instrumentos da criminalidade: agressão, provocação, subversão, corrupção. Queremos conhecer, exercendo-nos dentro de poemas, até onde estamos radicalmente contra o mundo. Nesse sítio, os poemas começam a fundar os seus entendimentos com a poesia. É também o momento em que desaparecemos, e seria grato ver como o nosso rosto poderia promover o susto dos corações afectos e afeitos à cordialidade.

Herberto Helder, Photomaton & vox  

 

Para terminar, que nos pede hoje a polis como exercício de cidadania? São livres de se remeter ao silêncio os artistas que reclamam o direito à arte pela arte. Ela de qualquer modo tem sempre meios para falar, mesmo quando o autor entende que não, e em verdade se diga que nada é mais gritante do que certo silêncio. Os que além do direito a não se envolverem nos assuntos da cidade também sentem o apelo do social, têm todas as causas passadas para levar à realização completa, e basta, para as identificar, recorrer ao velho tríptico «Liberdade, Igualdade e Fraternidade». Porém, a situação é hoje muito mais complexa e ampla, ultrapassa o individual e o social para se projetar na Via Láctea. Por isso,  aos antigos combates, acresce a defesa da nossa casa no sistema solar. Hoje, a cidadania exprime-se pela defesa de Gaia, a biosfera.

BIBLIOGRAFIA

Baptista Bastos, «Os grandes esquecidos». Jornal de Negócios, 12 de Agosto de 2011. In:

http://www.jornaldenegocios.pt/home.php?template=SHOWNEWS_V2&id=502285

Carlos de Oliveira, Obras de Carlos de Oliveira. Lisboa, Editorial Caminho, 1992.

Carlos de Oliveira, «Livre», poema musicado por Fernando Lopes Graça. In:

http://cvc.instituto-camoes.pt/poemasemana/05/02.html

Carlos de Oliveira, «Livre», poema interpretado por Manuel Freire. In:

http://letras.terra.com.br/manuel-freire/512427/

Claudio Willer, A geração beat. São Paulo, L&PM Pocket Encyclopaedia, 2009.

«Dom Roberto». Em linha no site da BES – Bolsa Ernesto de Sousa, em: http://www.ernestodesousa.com/?p=77

Herberto Helder, Os passos em volta. Lisboa, Assírio & Alvim, 1979.

Herberto Helder, Photomaton & vox.  Lisboa, Assírio e Alvim, 1979.  

Herberto Helder, A faca não corta o fogo . Lisboa, Assírio e Alvim,  2008.

Herberto Helder, Ofício cantante. Lisboa, Assírio & Alvim, 2009.

João César Monteiro, em entrevista de Rodrigues da Silva. Jornal de Letras, Lisboa, 22 de Setembro de 1992.

José Mário-Branco, «A cantiga é uma arma». In:

http://www.youtube.com/watch?v=9eWDk7_pHI4

Manuel Gusmão, “Carlos de Oliveira e Herberto Helder ao encontro do encontro”. Boca do Inferno – Revista da Câmara Municipal de Cascais, nº 10, 2005.

Maria Estela Guedes, Herberto Helder, poeta obscuro. Lisboa, Moraes Editores, 1979.

Maria Estela Guedes, «Surrealistas que se ignoram». Atalaia-Intermundos - Revista do Centro Interdisciplinar de Ciência, Tecnologia e Sociedade da Universidade de Lisboa. Nº 11-12, 2002. Em linha em: http://www.triplov.com/surreal/estela.html

Maria Estela Guedes, A obra ao rubro de Herberto Helder. São Paulo, Escrituras Editora, 2010.

Urbano Tavares Rodrigues, «Finisterra ou de como o realismo objectal pode tornar-se interveniente». In Um novo olhar sobre o neo-realismo. Lisboa, Moraes Editores, 1981, p. 66.

Maria Estela Guedes (1947, Britiande / Portugal). Diretora do Triplov

Membro da Associação Portuguesa de Escritores, da Sociedade Portuguesa de Autores, do Centro Interdisciplinar da Universidade de Lisboa e do Instituto São Tomás de Aquino. Directora do TriploV.

LIVROS

“Herberto Helder, Poeta Obscuro”. Moraes Editores, Lisboa, 1979;  “SO2” . Guimarães Editores, Lisboa, 1980; “Eco, Pedras Rolantes”, Ler Editora, Lisboa, 1983; “Crime no Museu de Philosophia Natural”, Guimarães Editores, Lisboa, 1984; “Mário de Sá Carneiro”. Editorial Presença, Lisboa, 1985; “O Lagarto do Âmbar”. Rolim Editora, Lisboa, 1987; “Ernesto de Sousa – Itinerário dos Itinerários”. Galeria Almada Negreiros, Lisboa, 1987 (colaboração e co-organização); “À Sombra de Orpheu”. Guimarães Editores e Associação Portuguesa de Escritores, Lisboa, 1990; “Prof. G. F. Sacarrão”. Lisboa. Museu Nacional de História Natural-Museu Bocage, 1993; “Carbonários : Operação Salamandra: Chioglossa lusitanica Bocage, 1864”. Em colaboração com Nuno Marques Peiriço. Palmela, Contraponto Editora, 1998; “Lápis de Carvão”. Apenas Livros Editora, Lisboa, 2005; “A_maar_gato”. Lisboa, Editorial Minerva, 2005; “À la Carbonara”. Lisboa, Apenas Livros Lda, 2007. Em co-autoria com J.-C. Cabanel & Silvio Luis Benítez Lopez; “A Boba”. Apenas Livros Editora, Lisboa, 2007; “Tríptico a solo”. São Paulo, Editora Escrituras, 2007; “A poesia na Óptica da Óptica”. Lisboa, Apenas Livros Lda, 2008; “Chão de papel”. Apenas Livros Editora, Lisboa. 2009; “Geisers”. Bembibre, Ed. Incomunidade, 2009; “Quem, às portas de Tebas? – Três artistas modernos em Portugal”. Editora Arte-Livros, São Paulo, 2010. “Tango Sebastião”. Apenas Livros Editora, Lisboa. 2010. «A obra ao rubro de Herberto Helder», São Paulo, Editora Escrituras, 1010. "Arboreto", São Paulo, Arte-Livros, 2011.

ALGUNS COLECTIVOS

"Poem'arte - nas margens da poesia". III Bienal de Poesia de Silves, 2008, Câmara Municipal de Silves. Inclui CDRom homónimo, com poemas ditos pelos elementos do grupo Experiment'arte. “O reverso do olhar”, Exposição Internacional de Surrealismo Actual. Coimbra, 2008; “Os dias do amor - Um poema para cada dia do ano”. Parede, Ministério dos Livros Editores, 2009. Entrada sobre a Carbonária no Dicionário Histórico das Ordens e Instituições Afins em Portugal, Lisboa, Gradiva Editora, 2010. "Munditações", de Carlos Silva, 2011. "Se lo dijo a la noche", de Juan Carlos Garcia Hoyuelos, 2011; "O corpo do coração - Horizontes de Amato Lusitano", 2011.

TEATRO

Multimedia “O Lagarto do Âmbar, levado à cena em 1987, no ACARTE, Fundação Calouste Gulbenkian, com direcção de Alberto Lopes e interpretação de João Grosso, Ângela Pinto e Maria José Camecelha, e cenografia de Xana; “A Boba”, levado à cena em 2008 no Teatro Experimental de Cascais, com encenação de Carlos Avilez, cenografia de Fernando Alvarez  e interpretação de Maria Vieira.