REVISTA
TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências
ISSN 2182-147X
NOVA SÉRIE
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Maria Estela Guedes
Foto: Ed. Guimarães |
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HERBERTO HELDER E CARLOS DE OLIVEIRA
- Dois modelos de cidadania? |
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Palestra proferida
na VIII Bienal Internacional do Livro de Pernambuco, “Literatura e
Cidadania”, Recife/Olinda, 1 de Outubro de 2011) |
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Edição original no Triplo II - O blog do
Triplov |
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«Não descuido a minha obra. Deve-se
velar por aquilo que conseguiu ascender, entre riscos e ameaças, às
condições da realidade. Mas serão os meus poemas uma realidade concreta
no meio das paisagens interiores e exteriores? Não possuo um só dos
papéis que enchi; interessa-me a forma acabada das minhas experiências,
e suas significações, mantida numa espécie de memória tensa e límpida.
Os papéis, esses, estão em França (Paris ou Marselha), na Holanda e até
possivelmente na África do Sul. Encontram-se nas mãos de conhecidos,
desconhecidos, amigos ou inimigos — e cada qual saberá usar deles de
modo particular e, suponho, exemplar. Tirarão daí indeclináveis razões
para a moralidade dos seus pensamentos com relação a mim e a eles
mesmos. Não, não sei de cor as pequenas composições de palavras. Retenho
a fantasia, a objectividade delas — ponto onde me apoio para saber que
sou sólido, e tenho (ou sou) uma obra.»
Herberto Helder, «Vida e obra de um
poeta»
«Pois bem, quero chegar a isto: esses
homens fazem as fortunas dos grandes lavradores ribatejanos e vêm acabar
a Corrocovo sem um naco de broa, sem enxerga, sem a porcaria dumas
drogas. Não falo já doutras aspirações, de alegria, de felicidade, dum
destino digno. Falo das coisas primárias, inadiáveis: alimentação,
cobertores, remédios. Aponto simplesmente os factos, não indico nenhuma
solução, não digo que o comunismo resolva ou deixe de resolver. Aquilo
de que falo, toda a gente o tem debaixo do nariz, e toda a gente finge
que não vê.»
Carlos de Oliveira, Casa na duna |
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Cidadãos contra a ditadura |
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Herberto
Helder (Funchal, 1930) e Carlos de Oliveira (Belém do Pará, 1921-Lisboa,
1981), apesar dos nove anos de diferença de idade, mantiveram relações
de estreita camaradagem e amizade, como ainda hoje conta Ângela
Oliveira, viúva de Carlos de Oliveira e sua personagem discreta. Das
informações de Ângela, deixei registo no meu livro «A obra ao rubro de
Herberto Helder». Além de pontos similares nas biografias, a obra dos
dois poetas também patenteia aspetos comuns. O leitor interessado
depressa verificará que um dos espaços simbólicos e semânticos mais
apelativos nos livros de qualquer um deles é o do fogo, com as suas
labaredas encarnadas. Manuel Gusmão, que já revelou ser o vermelho uma
referência comunista em Carlos de Oliveira, também apontou afinidades
entre os dois poetas.
Em 1944, a Censura
apreendeu o romance «Alcateia», de Carlos de Oliveira. A Herberto Helder
foi apreendida, em 1971, a obra «Apresentação do rosto». Quase trinta
anos medeiam entre os dois gestos inibidores. Nenhuma das obras figura
atualmente na lista das que os autores reconhecem. Carlos de Oliveira
reescreveu obsessivamente todos os seus livros, mas, à data da morte,
não tinha recuperado ainda «Alcateia». Herberto Helder aproveitou apenas
segmentos de «Apresentação do rosto» em livros subsequentes. A que se
deveu a apreensão? Provavelmente, ao facto de os livros veicularem
ideias libertárias, perseguidas e condenadas pelo regime vigente.
Carlos de Oliveira
morreu há trinta anos, sete passados sobre o 25 de Abril de 1974, data
que marca para os portugueses o fim da ditadura do ministro Oliveira
Salazar, e subsequente instauração da democracia. Por isso, e embora
Herberto Helder esteja vivo, a amplitude cronológica do que vou lembrar
remonta aos anos quarenta ou mesmo trinta do século passado. Hoje, esse
tempo já só é emocionalmente perceptível pelos mais velhos. As gerações
jovens, e com o acréscimo de serem estrangeiras, só poderão ter dos
factos uma visão mediatizada pelos livros de História. O que para estes
dois homens foi chicotada nas costas, limite na liberdade de seguir um
rumo traçado por eles mesmos, para muitos de nós, hoje, é literatura.
A oposição às
ditaduras foi feita por associações democráticas como as obediências
maçónicas, e pelos partidos de esquerda, movidos ideologicamente pela
doutrina marxista. Provavelmente, nunca uma filosofia teve tanto impacto
na vida prática; para o caso que mais nos interessa, no aparecimento de
novas ou renovadas manifestações estéticas. A bem dizer, as vanguardas
do século XX, desde a literatura ao cinema, fluem de um pensamento
marxista que dá atenção às camadas mais pobres da sociedade, e para a
sociedade reclama condições de liberdade, justiça e igualdade que no
horizonte encontrem um mundo mais feliz. Não estando nas mãos da arte a
solução dos problemas, como Carlos de Oliveira manifesta em epígrafe a
este texto, os artistas sentem-se no dever de denunciar sistemas
políticos prepotentes, combatendo-os com a arma disponível - a palavra,
o gesto, a imagem ou a música. José Mário-Branco, músico e cantor,
celebrizou uma canção do período pós-25 de Abril, que inclui os versos:
«A cantiga é uma arma/ contra a burguesia». A burguesia é o inimigo a
combater pelos militantes de esquerda.
Nesta linha de ideias,
falar de cidadania em relação a Carlos de Oliveira implica falar do
neo-realismo, estreitamente conetado com o comunismo. De resto, o
movimento só não se identificava como «realismo socialista» por a
Censura não aceitar o segundo termo. Antes do 25 de Abril, o Partido
Comunista Português, bem como Álvaro Cunhal, seu fundador, e pessoa
ativa também na cultura, mantinham-se na clandestinidade.
Gesto
significativo do relacionamento de Carlos de Oliveira com a esquerda foi
a edição do seu primeiro livro de poemas, Turismo, na coleção
Novo Cancioneiro. Publicada em Coimbra entre 1941 e 1944, a coleção é
considerada, com outros marcos, como a saída de «Gaibéus», de Alves
Redol, um dos pontos iniciais do movimento neo-realista português. Num
punhado de apenas dez livros, surgiram
escritores que depois
seguiram rumos diversos. Alguns ainda estão presentes no nosso
quotidiano de leitores, outros passaram à obscuridade. Além de Carlos de
Oliveira, fazem parte do Novo Cancioneiro: Fernando Namora (Terra,
1941), Mário Dionísio (Poemas, 1941), João José Cochofel (Sol
de agosto, 1941) Joaquim Namorado (Aviso à Navegação, 1941)
Álvaro Feijó (Os Poemas, 1941) Manuel da Fonseca (Planície,
1941), Sidónio Muralha (Passagem de Nível, 1942),
Francisco José Tenreiro (Ilha de Nome Santo, 1942) e Políbio
Gomes dos Santos (A Voz que Escuta, 1944, póstumo).
À data da publicação
de Turismo, em 1942, Carlos de Oliveira estudava na Faculdade de
Letras da Universidade de Coimbra, onde conhecera alguns autores do Novo
Cancioneiro, que se tornaram seus amigos, caso de Fernando Namora,
Joaquim Namorado e João José Cochofel. O seu primeiro romance foi
Casa na Duna, publicado em 1944, e nesse mesmo ano saiu Alcateia,
que já vimos ter sido apreendido pela Censura.
As personagens
habituais do romance de Carlos de Oliveira são o proletariado e a
burguesia rurais da gândara, uma região costeira que se estende de
Coimbra a Aveiro. Os conflitos entre personagens puseram decerto em cena
diálogos transmissores de ideias comunistas, o que era o bastante para a
Censura impedir a distribuição da obra. E com isto verificamos que a
cidadania, do ponto de vista da relação estabelecida entre os artistas e
a polis, entra em confrontação direta com os poderes políticos
estabelecidos. O artista situa-se na oposição, ou é mesmo um agente
corruptor de sistemas políticos indesejados. Claro que também existem os
situacionistas, mas esta Bienal é dedicada à cidadania e não à ditadura.
Embora o Novo
Cancioneiro seja apenas um agrupamento de escritores com alguns
interesses comuns, a porta aberta por esses e outros escritores
empenhados na questão social deu saída a um fluxo de publicações
orientadas ideologicamente. Foi-se constituindo uma linhagem marxista em
que se encontram artistas de vários quadrantes, quer na arte erudita
quer na popular, e que se prolonga até hoje. Ainda hoje é fortíssima,
por exemplo, a ação de um Zeca Afonso, músico e poeta falecido há anos,
cujas canções a Censura proibia de passarem na Rádio. Poetas de forte
implantação popular, como Ary dos Santos, paradoxalmente oriundo de
famílias da alta burguesia, deram voz a movimentos de contestação do
regime salazarista, até mesmo no palco do Festival Europeu da Canção. Os
vestígios da linhagem marxista são visíveis hoje em muitas manifestações
da arte, seja literária seja musical. Aliás, uma boa parte de nós terá
de reconhecer a sua genealogia de esquerda. A minha intervenção está
orientada nesse sentido, muito embora não existam no meu currículo
grandes vínculos políticos.
Continuando o aparte
autobiográfico, acrescento que há trinta anos eu já escrevia sobre
Carlos de Oliveira, mas nessa altura desculpava-lhe o neo-realismo.
Neste momento escrevo sobre os autores comunistas sem qualquer
preconceito. À sua arte acrescentaram a dimensão heróica, muitos
sofreram o exílio, a prisão ou a tortura. E mais: diria que os tempos
difíceis que atravessamos requerem de nós um papel ativo nos assuntos da
polis, apesar de os nossos países já terem alcançado a
democracia.
Não esqueçamos o
cinema. Em Itália, o neo-realismo teve expoentes em Luchino Visconti,
Roberto Rosselini e Vittorio de Sica. Em Portugal também apareceu um
novo cinema, estreado em 1962 com Dom Roberto, de Ernesto de
Sousa. Ernesto de Sousa foi um artista e intelectual multifacetado,
homem das vanguardas, que teorizou o neo-realismo nas páginas dos
jornais em que escrevia, e o praticou, nos seus primeiros anos de
atividade estética, através da imagem: fotografia e cinema. Além disso,
foi um dos pioneiros do cineclubismo, forma de associação em que, a
propósito do debate sobre filmes, se podiam divulgar novas ideias e
combater o fascismo. O Dom Roberto ganhou os Prémios da Jovem
Crítica (“La Jeune Critique”) e de “L’ Association du Cinéma pour la
Jeunesse” no Festival de Cannes de 1963. Ernesto de Sousa não os pôde
receber pessoalmente porque a polícia política o prendeu na fronteira.
Nove anos depois do Dom Roberto, o romance Uma abelha na chuva,
de Carlos de Oliveira, foi levado ao grande écran pelo realizador
Fernando Lopes (1971).
Não seria a única
experiência cinematográfica do poeta em análise. Em 1957, co-organizara,
com José Gomes Ferreira, dois volumes de Contos Tradicionais
Portugueses, alguns deles adaptados ao cinema por João César
Monteiro. João César Monteiro, um cineasta da abominação, como ele
próprio diz, significando isto que a sua posição é mais surrealista do
que neo-realista, declara que Carlos de Oliveira foi o seu pai
espiritual.
Não pode ficar de lado
o relacionamento do poeta com Fernando Lopes Graça, importante
compositor e homem de esquerda, várias vezes preso devido às suas
intervenções de cidadania. Compôs a música para as Canções Heróicas,
entre as quais se conta um poema de Carlos de Oliveira. Essa canção
tornou-se uma das mais populares do pós-25 de Abril, quer na versão de
Lopes Graça, quer na de Manuel Freire:
Solo
Não há machado que
corte
a raiz ao
pensamento
Coro
não há morte para o
vento
não há morte.
Solo
Se ao morrer o
coração
morresse a luz que
lhe é querida,
Coro
sem razão seria a
vida,
sem razão.
Solo
Nada apaga a luz
que vive
num amor, num
pensamento,
Coro
porque é livre como
o vento,
porque é livre.
Carlos de Oliveira,
«Livre», texto musicado por Lopes Graça
A
divulgação dos ideais patentes no Novo Cancioneiro deveu-se também a
pessoas como Maria Barroso. Esta atriz, mais tarde casada com Mário
Soares, fundador do Partido Socialista Português, que viria a ser
primeiro ministro e duas vezes Presidente da República, corria as
associações populares de todo o país a declamar os novos poetas.
Mais
velho do que eu, e mais próximo, não apenas em idade, mas também em
relações de amizade e pensamento com essa frente de autores que
afrontaram a ameaça da Censura e da PIDE é Baptista Bastos, que anota o
esquecimento em que vão caindo esses escritores cujas manifestações de
cidadania se exprimiram no combate a um regime injusto e
anti-democrático, considerado fascista pelos opositores:
“Muitos dos nomes
desapareceram, na voragem do esquecimento. Quem lê Leão Penedo, Rogério
de Freitas, Alexandre Cabral, Manuel do Nascimento, Egito Gonçalves,
João Apolinário, Luís Veiga Leitão, Garibaldino de Andrade, Antunes da
Silva - ou, mesmo, Carlos de Oliveira, Fernando Namora, Alves Redol,
Cardoso Pires, José Gomes Ferreira, Augusto Abelaira, Alexandre Pinheiro
Torres, tantos, tantos mais? E, no entanto, eram cimeiros na aventura
cultural daqueles tempos.”
Faço notar que Carlos
de Oliveira não está assim tão esquecido. A sua obra foi reeditada nos
últimos anos pela Assírio & Alvim, e tem merecido estudo por parte da
Universidade, quer em Portugal, quer no Brasil.
Os leitores de Carlos
de Oliveira sabem que se manteve sempre fiel à gândara e aos seus
habitantes. Embora de forma estilizada, a terra, as classes, o anúncio
da ruína da burguesia mantêm-se no seu último livro, Finisterra –
Paisagem e povoamento. A temática e o enquadramento ideológicos
permanecem tão vivamente de esquerda que, apesar de o discurso ser
bastante abstrato, Urbano Tavares Rodrigues considera essa obra um
«romance marxista». |
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A
marginalidade contra a burguesia |
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Se
Carlos de Oliveira, como principal manifesto de cidadania, mostra o
apelo às doutrinas marxistas que vieram a tornar-se prática no 25 de
Abril de 1974, Herberto Helder, além de não veicular as doutrinas
marxistas, é mais radical. A militância, seja de que tipo for, não faz
parte das vivências expressas no Ofício Cantante, o mais recente
título da sua «Poesia toda». Diferentemente de Carlos de Oliveira, que
tem sempre um anjo a guardá-lo (Gelnaa, Ângela), em Herberto Helder o
poeta é um ser solitário.
Em 1979,
em Photomaton e Vox, quatro anos volvidos sobre o 25 de Abril, já
Herberto Helder recusa a ideia de ter existido em Portugal uma
revolução. Portanto, a revolução permanece ainda no horizonte
messiânico, admitindo que o poeta professe tal crença.
Falar de
cidadania a respeito deste poeta implica entrar no mundo das paixões que
agitaram os grupos surrealistas de Lisboa, de que ele foi próximo, e de
que se distanciou depressa, talvez por desagrado face à excessiva
colagem às doutrinas comunistas. Não obstante, o surrealismo, ao
levantar o estandarte da liberdade, ao penetrar no obscuro reino do
inconsciente, e ao valorizar a imaginação criadora, deixava e deixa
sempre os seus adeptos sem coleiras. Trata-se de um movimento e não de
uma escola, por isso a proposta de “poesia e liberdade”, do meu ponto de
vista, permanece válida. O surrealismo foi tão virulento como o
neo-realismo no ataque à ideologia burgesa. Fê-lo de outros modos: pelo
discurso não normativo, pela imaginação transgressora e pela defesa da
liberdade individual. O surrealismo tenta conhecer o universal através
da experiência individual, por isso a presença do autor na obra é
fundamental.
O itinerário da
juventude de Herberto Helder, além da similitude com a afrontação dos
valores burgueses através do discurso surrealista e do experimentalismo,
liga-se também à contestação dos anos sessenta, com a contracultura
própria do movimento hyppie, da beat generation, da música
pop, etc..
A recusa do modelo de
vida burguês manifesta-se, em Herberto Helder, quer na obra quer na
vida. É por demais conhecido, mesmo no estrangeiro, que o poeta recusa a
maior parte das experiências mundanas da poesia, como homenagens,
prémios, entrevistas, participação em congressos e bienais do livro.
Provavelmente, porque esses são os sinais mais óbvios de um entendimento
da arte como atributo da pessoa prendada, passível de entreter salões de
família. Ou como produto comerciável. Deixando para espaços mais
discretos a discussão da arte como experiência dos limites, entrega
vinte e quatro horas por dia, ou mesmo caso de vida ou de morte, como
queria Rimbaud, fiquemos por questões mais terrenas, ao contrapor o
artista a uma burguesia intelectualmente destruidora, para a qual o
cidadão modelo é aquele que a replica em comportamento e endoutrinação:
«Olha para mim, aprende com o que eu faço, sê como eu sou!».
Na generalidade, o
papel do artista não tem boa integração social. Nós não somos ricos. Ora
o dinheiro é o máximo valor nos nossos dias. Não somos considerados
profissionais da escrita, sim professores, médicos e advogados cujo
entretenimento é fazer uns versos e contar umas histórias nas horas
vagas. Por isso, não precisamos de ser pagos. Esse é o maior valor
burguês e capitalista: o sucesso na sua atividade, a riqueza alcançada
com o trabalho. Embora a coleção de poemas de Carlos e de Oliveira,
Trabalho poético, e de Herberto Helder, Ofício cantante,
exiba título idêntico, a verdade é que o valor do trabalho é diferente
na obra de ambos. Quanto à biografia, nenhum parece ter exercido tarefas
remuneradas que valha a pena mencionar.
Na nossa sociedade
ocidental, o sucesso obtém-se na competição, e competição significa
corrida de semelhantes. É fácil ver que tal modelo é avesso à estética,
em que o artista precisa de ser o mais possível diferente. Ele não pode
recorrer a modelos nem a estereótipos, sob pena de se tornar a melhor
Dolly do rebanho. Herberto Helder não só recusa os modelos como escreve
contra eles. E como alguns pilares da sociedade burguesa são
constituídos por nós, isto é, pelas universidades e academias, nos
últimos anos tem-se revoltado contra os senhores doutores que escrevem
sobre os seus livros. Vamos ver apenas um exemplo, incompleto extrato,
coligido no seu mais recente livro em primeira edição:
ó stôr não me foda com essa de história literária,
o stôr passou-se da puta da mona,
a terra extravaza do real feito à imagem da merda,
e então vou-me embora,
quer dizer que falo para outras pessoas,
falo em nome de outra ferida, outra
dor, outra interpretação do mundo,
outro amor do mundo,
outro tremor,
[…]
Herberto Helder, A faca não corta o fogo
Pelas razões
aventadas, encontramo-nos sós neste debate, o poeta não está aqui. O
poeta continua a viver, como na juventude, à margem do sistema social,
no silêncio do seu eremitério. Como se viu, ele recusa a pertença ao
mundo ideológico dos outros, invoca a existência de um diferente
paradigma, pelo qual se rege.
Vejamos três formas de
recusa no interior da obra de Herberto Helder. Primeira, pela assunção
do sujeito, aquela presença do individual susceptível de espelhar o
universal, típico do surrealismo. A tal ponto é apaixonada essa
presença, que o leitor identifica a pessoa que fala nos textos com o
autor. É o que acontece no fragmento que escolhi para epígrafe, em que o
enunciador é um poeta que fala da sua obra. O mesmo ouvimos no fragmento
anterior, discurso contra os universitários que invocam coisas tão
anacrónicas como História literária, a respeito dos seus poemas. Quem
fala nestes textos? É evidente que só pode ser Herberto Helder. Nesta
óptica, a obra torna-se profundamente autobiográfica. De resto, não
declara ele - «tenho (ou sou) uma obra»? É a pessoa do autor que se
impõe como texto disponível para a leitura. O autor quer que o leitor se
preocupe só com a obra, deixando de lado genealogias, História literária
e biografia. Porém a obra, sem aquele indivíduo que nos interpela ao
falar da mesma obra e no interior dela, não existe, não se concebe. Se
pudéssemos subtrair o autor à sua obra, não sobrava nada. No caso de
Carlos de Oliveira, sim, a figura do autor pode desaparecer, ela não tem
grande peso nos textos. A autobiografia não deixa marcas na memória do
leitor. A figura do autor aparece num livro de ensaios, O aprendiz de
feiticeiro, mas as personagens mais marcantes da obra não são as
ligadas à literatura, sim ao trabalho do campo ou à pequena indústria,
como a da extração da cal.
O auto-retrato, que de
resto Carlos de Oliveira também cultivou, mas em pintura, em Herberto
Helder vem desde os primeiros poemas. Em Carlos de Oliveira, não só a
pessoa do autor não se reflete em espelho relevante na obra, como as
próprias personagens desaparecem como figuras autónomas. No último dos
seus romances, Finisterra, não têm nome próprio, é difícil
distingui-las umas das outras, e a gândara também se desintegra na sua
individualidade geográfica. Nesse aspeto, Carlos de Oliveira parece
exprimir a tendência declarada por Roland Barthes e Michel Foucault, ao
assinalarem a morte do autor, e a teoria marxista, ao deslocar do
individual para o social os valores de cidadania a perseguir pelo
indivíduo. A maior ofensa que o neo-realismo endereçava ao surrealismo e
manifestações estéticas marcadas pela emoção de um “Eu” era a de os
autores se ensimesmarem na contemplação do seu próprio umbigo. E a
resposta de surrealistas, experimentalistas e afins, era a de o
neo-realismo não ser arte, sim propaganda política.
Segundo modo de se
situar à margem, com Herberto Helder, é o discurso poético, variado,
cobrindo desde a luxúria metafórica de «O amor em visita» até à secura
da afronta, como lemos acima.
Se bem que hoje eu já
não ache o poeta tão difícil de entender como há trinta anos, data em
que publiquei o meu primeiro ensaio sobre ele, Herberto Helder, poeta
obscuro, ele é usualmente considerado um poeta de discurso
hermético. Entre outras exegeses do problema, podemos considerar este:
Carlos de Oliveira e Herberto Helder, como todos os artistas que se
manifestaram em obra pelo menos nos quarenta anos anteriores a 25 de
Abril de 1974, tiveram de enfrentar a Censura. Quer o discurso literário
quer o discurso da Imprensa estão codificados, de forma a iludir os
censores. Que eu saiba, os códigos ainda não foram estudados e era
urgente que se dicionarizassem as suas expressões, pois outra História
se conta nas entrelinhas da História que toda a palavra comporta.
Porém o discurso é
avesso à inteligibilidade normal por outras razões, ou nenhumas. Claudio
Willer, em A geração beat, anota que o discurso não linear, não
coincidente com as estruturas normativas do pensamento, era uma das
armas da contracultura.
Terceiro aspeto da
recusa do modelo burguês, em Herberto Helder, e por consequência
terceiro exemplo do seu exercício de cidadania, é o apelo ao crime. O
crime representa a máxima subversão da ordem da cidade, portanto a mais
forte agressão à nossa necessidade de segurança. Herberto Helder entende
a poesia como ato transgressor e carniceiro, aponta revólveres nos
textos. O poeta recusa a ideia da democratização da poesia. Pelo
contrário, ataca os leitores, e rejeita o exercício da cidadania.
Ernesto de Sousa proclamava que «A poesia é feita por todos». Contra
isso argumenta Herberto Helder que “(a poesia é feita contra todos)”:
É
aborrecido ter que reclamar-se de todas as afirmações de princípio muito
óbvias.
Nós
respeitamos os atributos e instrumentos da criminalidade: agressão,
provocação, subversão, corrupção. Queremos conhecer, exercendo-nos
dentro de poemas, até onde estamos radicalmente contra o mundo. Nesse
sítio, os poemas começam a fundar os seus entendimentos com a poesia. É
também o momento em que desaparecemos, e seria grato ver como o nosso
rosto poderia promover o susto dos corações afectos e afeitos à
cordialidade.
Herberto Helder, Photomaton & vox
Para terminar, que nos
pede hoje a polis como exercício de cidadania? São livres de se
remeter ao silêncio os artistas que reclamam o direito à arte pela arte.
Ela de qualquer modo tem sempre meios para falar, mesmo quando o autor
entende que não, e em verdade se diga que nada é mais gritante do que
certo silêncio. Os que além do direito a não se envolverem nos assuntos
da cidade também sentem o apelo do social, têm todas as causas passadas
para levar à realização completa, e basta, para as identificar, recorrer
ao velho tríptico «Liberdade, Igualdade e Fraternidade». Porém, a
situação é hoje muito mais complexa e ampla, ultrapassa o individual e o
social para se projetar na Via Láctea. Por isso, aos antigos combates,
acresce a defesa da nossa casa no sistema solar. Hoje, a cidadania
exprime-se pela defesa de Gaia, a biosfera. |
|
BIBLIOGRAFIA |
|
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12 de Agosto de 2011.
In:
http://www.jornaldenegocios.pt/home.php?template=SHOWNEWS_V2&id=502285
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http://cvc.instituto-camoes.pt/poemasemana/05/02.html
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http://letras.terra.com.br/manuel-freire/512427/
Claudio
Willer, A geração beat. São Paulo, L&PM Pocket Encyclopaedia,
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Urbano Tavares Rodrigues, «Finisterra ou de como o realismo
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|
Maria Estela Guedes
(1947, Britiande / Portugal). Diretora do Triplov
Membro da Associação Portuguesa de Escritores,
da Sociedade Portuguesa de Autores, do Centro Interdisciplinar da Universidade de Lisboa e do Instituto São Tomás de Aquino. Directora do TriploV.
LIVROS
“Herberto Helder,
Poeta Obscuro”. Moraes Editores, Lisboa, 1979; “SO2” .
Guimarães Editores, Lisboa, 1980; “Eco, Pedras Rolantes”, Ler
Editora, Lisboa, 1983; “Crime no Museu de Philosophia Natural”,
Guimarães Editores, Lisboa, 1984; “Mário de Sá Carneiro”. Editorial
Presença, Lisboa, 1985; “O Lagarto do Âmbar”. Rolim Editora, Lisboa,
1987; “Ernesto de Sousa – Itinerário dos Itinerários”. Galeria
Almada Negreiros, Lisboa, 1987 (colaboração e co-organização); “À
Sombra de Orpheu”. Guimarães Editores e Associação Portuguesa de
Escritores, Lisboa, 1990; “Prof. G. F. Sacarrão”. Lisboa. Museu
Nacional de História Natural-Museu Bocage, 1993; “Carbonários :
Operação Salamandra: Chioglossa lusitanica Bocage, 1864”. Em
colaboração com Nuno Marques Peiriço. Palmela, Contraponto Editora,
1998; “Lápis de Carvão”. Apenas Livros Editora, Lisboa, 2005; “A_maar_gato”.
Lisboa, Editorial Minerva, 2005; “À la Carbonara”. Lisboa, Apenas
Livros Lda, 2007. Em co-autoria com J.-C. Cabanel & Silvio Luis
Benítez Lopez; “A Boba”. Apenas Livros Editora, Lisboa, 2007;
“Tríptico a solo”. São Paulo, Editora Escrituras, 2007; “A poesia na
Óptica da Óptica”. Lisboa, Apenas Livros Lda, 2008; “Chão de papel”.
Apenas Livros Editora, Lisboa. 2009; “Geisers”. Bembibre, Ed.
Incomunidade, 2009; “Quem, às portas de Tebas? – Três artistas
modernos em Portugal”. Editora Arte-Livros, São Paulo, 2010.
“Tango Sebastião”. Apenas Livros Editora, Lisboa. 2010. «A obra ao
rubro de Herberto Helder», São Paulo, Editora Escrituras, 1010.
"Arboreto", São Paulo, Arte-Livros, 2011.
ALGUNS COLECTIVOS
"Poem'arte - nas margens da poesia". III Bienal de
Poesia de Silves, 2008, Câmara Municipal de Silves. Inclui CDRom
homónimo, com poemas ditos pelos elementos do grupo Experiment'arte.
“O reverso do olhar”, Exposição Internacional de Surrealismo Actual.
Coimbra, 2008; “Os dias do amor - Um poema para cada dia do ano”.
Parede, Ministério dos Livros Editores, 2009.
Entrada sobre a Carbonária no Dicionário
Histórico das Ordens e Instituições Afins em Portugal, Lisboa,
Gradiva Editora, 2010. "Munditações", de Carlos Silva, 2011. "Se lo
dijo a la noche", de Juan Carlos Garcia Hoyuelos, 2011; "O
corpo do coração - Horizontes de Amato
Lusitano", 2011.
TEATRO
Multimedia “O
Lagarto do Âmbar, levado à cena em 1987, no ACARTE, Fundação
Calouste Gulbenkian, com direcção de Alberto Lopes e interpretação
de João Grosso, Ângela Pinto e Maria José Camecelha, e cenografia de
Xana; “A Boba”, levado à cena em 2008 no Teatro Experimental de
Cascais, com encenação de Carlos Avilez, cenografia de Fernando
Alvarez e interpretação de Maria Vieira. |
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