António Júlio Estácio
nasceu na Guiné, a língua que usou foi o português (podia ter escrito em crioulo), o tema diz respeito à Guiné-Bissau (e a
Portugal, e a Cabo Verde, etc., e ao mundo), mas receio que estas três
razões não bastem para os bissau-guineenses considerarem o livro como pertencente à
sua literatura. Em princípio, à sua literatura pertencem obras assinadas por pessoas
de nacionalidade bissau-guineense. O mesmo se diga de outras
literaturas, talvez. Em relação à portuguesa, o assunto não apresenta importância de
maior: saber se Camões era galego ou português, se as obras de Gil
Vicente em castelhano são portuguesas ou espanholas, e por aí adiante,
não nos afeta: "Os Lusíadas" continuam a representar-nos como Nação e as
obras em castelhano dos escritores que publicaram durante os reinados
filipinos continuam a ser portuguesas. Aliás o mesmo acontece com as
obras e os autores brasileiros, moçambicanos, angolanos, cabo-verdianos,
guineenses, etc., se existem, que datam do tempo em que Cabo-Verde,
Moçambique, Brasil, Angola, Goa, Macau, Timor, etc., eram espanhóis. Em
suma, estes assuntos parecem literários, mas realmente nada têm a ver
com a arte, eles dependem do estabelecimento de convenções políticas.
Esta discussão não faz
grande sentido nem em Espanha, nem em Portugal, porque são países de
"muitas chuvas", agora em relação a países jovens, sim, porque os autores são
pessoas vivas, apaixonadas, que sofrem por se sentirem excluídas do
grupo ou se alegram por se sentirem aceites nele. É uma questão de "tchon",
de terra-mãe, o que entra por dentro das causas familiares, as mais
determinantes para nós. Não há nada de mais importante para nós do que
os filhos, os pais e o lugar de implantação do clã familiar.
Convém que a mãe-pátria
não exclua exageradamente, ou ela é que ficará de luto, o que não se
traduz apenas em perda de património literário, sim, e sobretudo, em
perda de património para formação futura dos cidadãos. Os cidadãos não
se formam com leis nem à chicotada, formam-se na leitura, com a
experiência da cultura, da ciência e da arte.
Presumo que os
autores nativos que se encontram no exílio ou na diáspora, com
nacionalidade não-bissau-guineense, se contam em muito maior número do
que os nacionais ou nacionalizados. Se estas contingências forem motivo
de exclusão, mais do que os autores, quem perde é a Guiné-Bissau. Não
podemos dar-nos ao luxo de excluir património cultural, mesmo em termos
pessoais. E nem tal seria exequível: não posso excluir da minha formação
a influência que nela exerceu José Saramago, sob alegação de que era
comunista e anti-católico, nem, pelas opostas razões, conseguiria riscar
da memória "O minino Deus em metáfora de doce", de Frei Jerónimo Baía.
Se só integramos o que aprovamos, ficamos com as mãos armadas, sim, mas
cheias de nada.
Do meu ponto de vista,
este debate precisa de se posicionar fora do espaço político. É de fora
dele que concluo sobre a riqueza e
diversidade das obras pertencentes à "literatura guineense"
(1). Se a
expressão, no seu maior rigor, só comportar autores de nacionalidade bissau-guineense, então,
para tristeza nossa, o meu levantamento da literatura correspondente
está feito na maior parte (2). Que eu saiba, faltam textos que representem a
obra de um ficcionista, Abdulai Silá, e de alguns dois ou três poetas
mais. Convenhamos em que uma lista de uma vintena, ou mesmo de
três vintenas de autores, é muito pouco para um país. Se esquecermos a
nacionalidade e estudarmos tudo o que diz respeito à Guiné-Bissau, sim,
neste caso há literatura suficiente para alimentar algumas teses de
doutoramento, sobretudo porque nesta literatura também é preciso contar
com as obras de caráter historiográfico, relatos de exploradores,
naturalistas e tantos outros.
Quanto a Nha Carlota,
que, não sendo nativa, foi uma famosa figura guineense, como demonstra
António Júlio Estácio, resta saber de onde lhe veio a fama. A mais
remota, é a de
ter combatido ao lado de Teixeira Pinto, nas guerras de pacificação, as
guerras movidas pelo exército português contra as tribos insurretas da
Guiné.
Esta celebridade lembra a
de outras mulheres que combateram ao lado de homens, e estou a
lembrar-me de Anita Garibaldi, que no Rio Grande do Sul pegou em armas
pela independência da região, ao lado de Giuseppe Garibaldi, seu marido.
A diferença é que Nha Carlota, que tinha Salazar em grande consideração, e que
foi recebida por ele, estava politicamente alinhada com o regime
colonial. Anita Garibaldi foi uma revolucionária, uma republicana, que
alinhou com os insurretos contra o centralismo da monarquia brasileira.
Bem, vamos lá, sem
preconceitos: afinal, estou é a falar de heroínas da História de
Portugal, o que em pouco se relaciona com Brasil e África, certo? Ou
será que o Brasil reivindica para si a Anita e a Guiné-Bissau quer
reivindicar Nha Carlota? Não, isto é literatura e cultura portuguesa...
Vejamos: quer Anita Garibaldi quer Nha Carlota eram
portuguesas, não é verdade? Anita nasceu em 1821, ainda o Brasil era
a parte de Portugal na América. Além disso, o pai de Anita era português
nativo, nascido em Portugal. Nha
Carlota morreu em 1970, ainda Cabo Verde e Guiné eram partes de Portugal
em África. Se algum país pode reclamar a sua memória, esse país é
Portugal, não a Guiné-Bissau, e ainda menos Cabo-Verde. A sua nacionalidade foi sempre portuguesa.
A História de Portugal só tem a ganhar com a memória destas suas
heroínas.
Mulheres grandes ilustram qualquer nação, seja qual for o lado político
em que se posicionem. Cinquenta anos mais tarde, o valor do lado
político desaparece e só fica a História: Nha Carlota, além de
combatente, foi mulher de negócios, boa conselheira (junto de António
Spínola, por exemplo, que a visitava sempre que precisava de tomar
alguma decisão que envolvesse os balantas, etnia dominante na zona de
Nhacra), benemérita, e além disso cozinhava lindamente. Em Nhacra, a sua
casa funcionava como restaurante em que os clientes só pagavam as bebidas. Os
petiscos eram oferecidos. Ficaram tão famosos como ela a sua sopa de peixe,
o seu pitche-patche de ostras, a sua cachupa, o seu chabéu e o seu
frango à cafreal. |
Maria Estela Guedes
(1947, Portugal). Diretora do TriploV
ALGUNS LIVROS.
“Herberto Helder,
Poeta Obscuro”, Lisboa, 1979; “Mário de Sá Carneiro”, Lisboa, 1985; “Ernesto de Sousa –
Itinerário dos Itinerários”, Lisboa, 1987; “À Sombra de Orpheu”, Lisboa, 1990; “Prof. G. F. Sacarrão”, Lisboa,
1993; “Tríptico a solo”, São Paulo, 2007; “A
poesia na Óptica da Óptica”, Lisboa, 2008; “Chão de
papel”, Lisboa. 2009; “Geisers”, Bembibre, 2009; “Quem, às portas de Tebas? – Três artistas modernos
portugueses”, São Paulo, 2010.
ALGUNS COLECTIVOS.
"Poem'arte - nas margens da poesia". III Bienal de Poesia
de Silves, 2008, Câmara Municipal de Silves. Inclui CDRom homónimo, com
poemas ditos pelos elementos do grupo Experiment'arte. “O reverso do
olhar”, Exposição Internacional de Surrealismo Actual. Coimbra, 2008;
“Os dias do amor - Um poema para cada dia do ano”. Parede, Ministério
dos Livros Editores, 2009.
TEATRO.
Multimedia “O Lagarto do
Âmbar, levado à cena em 1987, no ACARTE,
com direcção de Alberto Lopes e interpretação de João Grosso, Ângela
Pinto e Maria José Camecelha, e cenografia de Xana; “A Boba”, levado à
cena em 2008 no Teatro Experimental de Cascais, com encenação de Carlos
Avilez, cenografia de Fernando Alvarez e interpretação de Maria Vieira. |