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Maria Estela Guedes
Foto de Aline Daka

Poemas para Federico García Lorca

Harlem

Também eu andei pelo Harlem, Federico.

Domingo, dia de missa, na Igreja Batista Abissínia.

O dia de chuvita rala, mal-encarado,

A interminável bicha para a entrada,

Guiada, conversada e instruída,

Sobre o que se pode e não fazer

No local sagrado.

As velhas negras sobre saltos altos, Federico,

E eles, de sobretudo, barba aparada, cabelo brilhante,

Sapatos bem engraxados.

E outras, mais novas, belas negras,

Os casacos, a rasar o chão,

De vison, chinchila e raposa

prateada. E eles muito envernizados

E elas de chapéu e tudo,

O dinheiro a exalar

Vapores de perfume caro,

Ganho, quem sabe?, no Diamond District,

Ali tão perto da alta finança

Por metonímia chamada Wall Street.

Lá dentro, na catedral, com dois pisos

Como um teatro, e alta piscina no altar

Onde brancos e negros mergulham

Para iniciático batismo,

Cantam gospell potentes vozes

E o Pastor anuncia a toda a gente

Quais os famosos ali presentes.

Havia embaixadores, Federico, e políticos

Importantes, porém só retive um nome,

Rescendente a monarquias - Prince!

 

Como vês, nada neste capítulo se iguala

Ao que viste, se bem que continuem

A assassinar-se editores de filmes

Que ganharam prémios

E outros mil delitos maiores e menores,

Mas nada de racismo à vista,

E ódio a bichas, só se forem as tantas

Para comprar bilhete no teatro, para arranjar

Lugar sentado no café, e para pagar a conta,

E para entrar nos museus,

E para ver as exposições, porque, Federico,

Agora os homossexuais até podem casar-se, vê tu bem!

E com uma bela negra, se quisesses, também

Ninguém se oporia…

Mas é bem verdade, meu amigo,

Restam queixas ainda

Do capitalismo

E a maior delas é esta: o outro lado do esplendor

É a aniquilação paulatina do Planeta,

O outro lado da vida milionária

É pessoas comerem dos caixotes do lixo. 

Poemas para Federico García Lorca - Index

Britiande, Fevereiro de 2010

Maria Estela Guedes. Membro da Associação Portuguesa de Escritores, da secção portuguesa da Associação Internacional de Críticos Literários, do Centro Interdisciplinar da Universidade de Lisboa e do Instituto São Tomás de Aquino. Directora do TriploV. Alguns livros publicados: Herberto Helder, Poeta Obscuro; Eco/Pedras Rolantes; Crime no Museu de Philosophia Natural; Mário de Sá-Carneiro; A_maar_gato; Ofício das Trevas; À la Carbonara; Tríptico a solo; A Poesia na óptica da Óptica; Chão de Papel; Geisers. Espectáculos levados à cena: O Lagarto do Âmbar (Fundação Calouste Gulbenkian, 1987); A Boba (Teatro Experimental de Cascais, 2008).