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Maria Estela Guedes
Foto de Aline Daka

O Deus escondido de Frei José Augusto

José Augusto Mourão acaba de publicar um volume de 320 páginas em que reuniu os seus poemas inéditos e publicados, «O Nome e a Forma», prefaciado por José Tolentino de Mendonça (Lisboa, Assírio e Alvim, 2009). O título, de tão descarnado, é mais consentâneo com a sua especialização em semiótica do que com a poesia. Contraste entre formas de expressão, dele sairá vencedora, no entanto, a  voz do afecto. Nestes pontos de tensão verificam-se rupturas, o que traz como resultado um tom novo para a poesia religiosa. Aliás, esta poesia, por ser assumidamente católica, aparece como algo de novo na nossa literatura mais recente, em que o fenómeno religioso, ou não se identifica com o catolicismo, ou, a identificar-se, confere à poesia a pátina do anacronismo e do estereótipo. 

São-me por vários modos familiares os poemas, alguns porque ditos por mim em ofícios religiosos ministrados pelo autor. Experiência que alia a estranheza da situação a uma camaradagem com o poeta já entrada em anos e por isso consolidada em amizade. São vários assim os caminhos da interacção entre escrita e leitura, e esse, o da comunhão da poesia no espaço sagrado, devido a alimento mais divino, não deixa de causar perplexidade, sobretudo no drama das mais íngremes contradições. Adianto que não tem sido só a poesia de Frei José Augusto a eleita para as suas liturgias, outros poetas nesse «quando» entregam versos à oração.

É pois de poemas católicos que o livro se constitui, e não são poucos os problemas que levantam, pelo menos a mim, que sou pessoa de poucas crenças e de menos fé ainda, e por isso mesmo, e não pelas razões contrárias, pratico, e concordo com algum pensamento contemporâneo, segundo o qual a crença deixou de ter significado, mais pertinente do que ela é a necessidade; e pensamento que fala de uma «presença real» na arte, o partir de um real em demanda de outro real. A esse real dá George Steiner o nome de Deus, num livro cujo título já se embebeda em realismo: «Presenças Reais».  Eis a decifração da primeira parte do título de José Augusto Mourão – o Nome dele é mais do que provavelmente o de Deus. Para o segundo, a Forma, não disponho de chave num quadro de desambiguação. Mas precisamente: há muitas formas de perseguir Deus, ou de invocar o seu nome. A mais óbvia é a oração, quer dizer, o esforço de estabelecer contacto com Deus através de palavras não estereotipadas que, no caso, são os poemas de «O Nome e a Forma».

Será inoportuno contar uma história pessoal? Arrisquemos um lance biográfico. O nosso povo ensopa-se em missas, já não é a primeira vez que oiço padres recomendarem do altar que as almas não precisam assim de tanta encomenda. Não precisam, acho que os vivos precisam mais delas do que os mortos, mas adiante, vamos ao relato pícaro. Certa vez trouxe um terço de presente a Frei José Augusto, de regresso de viagem a algum lugar mais santo. Ele ficou a olhar para mim, sem saber se havia de me pregar ou não na cruz de alguma homilia. Posto um silêncio escrutinador, ficou-se pelo declarar que não usava terço. Não reza o terço?! Que não rezava. Para que precisaria Deus das suas orações?

Pois é evidente, Deus, na sua omnipotente envergadura, não precisa de nada, quem precisa somos nós, e rezar é uma boa ocupação para a mente, especialmente quando as orações são boa literatura. Aliás, a poesia é boa prece, como Frei José Augusto demonstra. Insuportável é a repetição do que se torna realejo de baixa cultura.

Isto para dizer que não rompemos os joelhos em adros de devoção comum, o autor é pessoa dada a reflexões de ordem mais elevada, o que não resolve nenhum dos problemas que a sua obra levanta, e o maior deles, na minha perspectiva, é o de ser ministro de uma Igreja que põe como dogma a omnipresença de Deus (Deus está em nós, Deus está em todo o lado, e por isso, por mais forte razão ainda, Deus está no templo, a sua casa) e contra o dogma se erguer com as palavras de «Deus absconditus»:

onde estás, Deus libertador,

que nos perguntam por ti e não te vemos?

Deus escondido, onde estás?

Problema exposto, sangrando na cruz, talvez não para este emissor que às vezes se vela por detrás do frígido manto da Semiótica, sim para nós, que nos fixamos nos nomes e nas formas de que o afecto se reveste, é este de nos confrontarmos com um homem da Igreja, apaixonado por Deus, que nos garante que Deus não está entre nós. Existe mas não está. É Ser, mas não ocupa lugar, portanto o seu reino não é matéria neste mundo. Diferentemente de George Steiner, para quem Deus é uma presença real na arte, Frei José Augusto estende o braço para mostrar aos crentes o templo vazio: «Deus não está aqui». É a maior de todas as feridas, esta de reconhecer para si mesmo que o sentido de Deus é o esforço do Homem para se encontrar. Visto o choque de um lado científico, o meu, v.g., essa é a grande necessidade do divino, ele provoca a impulsão do Homem para o alto, com a evolução e aperfeiçoamento daí decorrentes.

Deus não está entre nós mas vive algures, fora de nós e fora dos templos, escondido, como garante logo na portada do livro o enigma da Esfinge, sob o título de «Deus absconditus». Mistério a revelar, o do Deus abscôndito, eis o sentido da religiosidade, segundo a minha leitura.

Deus criou o Homem e depois retirou-se, abandonando-nos ao nosso destino. E o nosso destino, agora, é viajar em sua demanda. Toda a tragédia de Frei José Augusto se desenvolve então numa busca intérmina, na dor da falta que impulsiona à peregrinação para testemunho da manifestação divina, noutro mundo e noutro tempo. O Homem identifica-se com o Cristo que se lamenta, na agonia: «Pai, porque me abandonaste?»

É uma poesia de pathos, dificilmente acessível às ideias vulgares, mas muito facilmente acessível no que nela é partilhável: o sofrimento das inteligências contemporâneas demasiado próximas da ciência para aceitarem sem provas, inquietas, carentes de fé e de crença, mas cientes de que Deus é uma necessidade humana, e por isso repletas do que tende a substituir o dogma da fé: desejo, vontade e esperança.

Frei José Augusto, dominicano, expõe-se neste livro muito mais do que no ensaio ou na homilia, ele abre as feridas, pois todos as temos, à avaliação e exegese do olhar estranho, de acordo aliás com o que teoriza em texto próprio de abertura, «Luz desarmada», por exemplo no ponto 6:

«Expor-se à luz pública é mais do que um acto de comunicação entre um emissor e um receptor: ‘Não te fixes em mim e eu tão-pouco me fixarei em ti» - é este o sentido do a priori da comunidade de comunicação. Expor-se é testemunhar do Sopro’».

Mais do que comunicar, a exposição implica o estabelecimento de relações – Deus é a máxima fixação: suporte, segurança, salvador e amado. Nada porém garante que o amor seja retribuído, mas o amor tende a ser gratuito, ou vale tanto mais quanto mais gratuito é, como de resto é próprio da condição de Deus - «Deus é gratuito», escreve-se em um dos poemas deste livro.

Como se nota, o catolicismo de Frei José Augusto está muito longe das sacristias. Ao dar Deus como Ser de questa e Ser gratuito, ele desafia o nosso mundo a ver o resultado da substituição que fizemos dos valores espirituais pelos materiais, em que, no mais alto pedestal, reluz o bezerro de oiro. O que resta é um abismo.

DOIS POEMAS DE «O NOME E A FORMA»

Deus absconditus

onde estás, Deus libertador,

que nos perguntam por ti e não te vemos?

Deus escondido, onde estás?

devemos procurar-te entre os destroços,

a cinza e as mãos cortadas como canas verdes,

ou à frente das batalhas,

entre os que caminham como o vento

e as folhas das plantas, sensíveis à luz,

entre os que vão de cabeça alta e regressam

da servidão do saco e do tijolo

os que acordados vêm,

os pés recentemente desatados,

a língua solta?

Deus escondido, onde moras?

devemos procurar-te entre os que fizeram o êxodo

e começaram a amar,

os que morrendo a si já ressuscitam

os que rompem as muralhas da pele e pedem água?

devemos procurar-te naqueles que sobem à montanha

para molhar as mãos de luz e transfigurar-se?

(na solidão dos montes apalparei a tua face?

na limpidez dos rios e nas palavras

com que que fizeste o mundo verei a tua mão correndo?)

onde devemos esperar-te, Deus da surpresa

e como nós trânsfuga?

Deus dos que não têm voz nem barcos

para na albufeira olhar a alma

a crescer como a sombra dos pinheiros

anoitece a alma e o rio,

Deus gratuito, onde estás?

devemos procurar-te na poesia e no canto,

no amor e na beleza,

na barraca e no lixo?

onde apareces, Deus amigo dos pobres,

onde te acharemos, Deus libertador?

Ateísmo

o mundo actual vive sem deuses

é ateu

o seu sonho é divino

mas não é com um deus que sonha

os deuses retiraram-se como as aves

por causa do ruído

que avassala o mundo

é no mistério que o respeito se funda

e o sagrado dispõe para o tempo a vir

só um deus nos pode salvar

no período decisivo e indeciso

do interregno da vociferação

o sagrado é fidelidade à origem

a memória é fidelidade ao sítio da alegria

que palavra fará surgir

o invisível à manifestação?

Maria Estela Guedes. Membro da Associação Portuguesa de Escritores, da secção portuguesa da Associação Internacional de Críticos Literários, do Centro Interdisciplinar da Universidade de Lisboa e do Instituto São Tomás de Aquino. Directora do TriploV. Alguns livros publicados: Herberto Helder, Poeta Obscuro; Eco/Pedras Rolantes; Crime no Museu de Philosophia Natural; Mário de Sá-Carneiro; A_maar_gato; Ofício das Trevas; À la Carbonara; Tríptico a solo; A Poesia na óptica da Óptica; Chão de Papel; Geisers. Espectáculos levados à cena: O Lagarto do Âmbar (Fundação Calouste Gulbenkian, 1987); A Boba (Teatro Experimental de Cascais, 2008).