Tito Iglesias é um poeta
de formação literária portuguesa, apesar de ter nacionalidade espanhola,
nascido em Santiago de Compostela, terra de antiquíssimas peregrinações.
Como as do autor, que tem peregrinado por Seca e Meca, desde a América
Latina à Ásia, como fica patente no seu livro de poemas, Antes que do
desconhecido surja a inevitável ave de rapina. Ficar isso patente na
sua obra, tal como a especificação dos motivos que o têm levado a andar
pelo mundo, sempre em bons hotéis, é uma das originalidades do poeta:
ele não receia os limites, ultrapassa tudo quanto não é habitual num
livro de versos, como seja trazer à colação centenas de amigos e
pessoas, a pretexto de dedicatórias, assim como informações biográficas
precisas, a exemplo da que nos fez peregrinar - a sua profissão como
director ou gerente na alta hotelaria.
Consideremos essa expansão
própria de uma vertente sua como artista naïf, um ingénuo culto, pois do
outro lado da ingenuidade deparamos com relacionamentos fortes com a
poesia portuguesa, mais evidentes nele através dos ritmos e claridades
dos cantares de amigo, alguns de escárnio, do romanceiro, passando pela
luminosidade de um Camilo Pessanha até se encontrar no seu mundo real, o
sobre-real do surrealismo. Mas quem fala em romanceiro recorda logo o
Romancero Gitano, pois García Lorca é um dos poetas em castelhano
que mais chama a atenção no peregrinar dos versos de Tito Iglesias.
O livro é grande,
testamentário como o título aponta, por isso, nas suas quase 250 páginas
divididas em várias partes, são numerosos os temas, as formas, os
recursos e os modos como se apresenta a poética iglesiana. Ficaremos por
aqui mesmo, pela poesia, pois só ela já daria matéria para um volume de
ensaios.
Entre os numerosos temas,
encontra-se então um, aliás um daqueles que definem a modernidade, que é
o de a obra se contemplar, descrever e analisar a si mesma. Do primeiro
ao último poema, ela lá está, a D. Poesia, mais velada ou a dançar nua,
num permanente acto de sedução do poeta. Tal como o trovador, ao
endossar cantigas à sua dona, a D. Poesia de Tito Iglesias é a deusa, a
rainha da noite e do dia, adorável, e, como deusa que é, intangível,
inalcançável, apesar das 250 páginas do livro que contrariam o
sentimento de o poeta amar até à loucura, sem ser correspondido.
A Poesia, em Tito Iglesias,
como entre os poetas de raiz órfica, românticos, religa-se ao mistério e
ao enigma. Daí a sua implantação num espaço de cariz religioso, e
sobretudo quando, ao assumir a figura de mulher, se projecta no vitral
mariano da senhora das cantigas de amor medievais. Ao mesmo tempo, a
Poesia oferece planos ontológicos, desta feita quando colada ao poeta
enquanto destino ou vocação. Trata-se de uma poesia na primeira pessoa,
repetindo que, frequentemente, identificada com o autor, e veio de
transmissão de informantes biográficos. Então estas características
fazem do poema um instrumento gnoseológico, o ser em que o poeta assume a
dimensão de Édipo às Portas de Tebas, interpelado pela Esfinge: «sem
declives não/ descem os rios./ Sem enigmas... / não há poesia».
E porque o livro é sobre a
Poesia, não espanta que nos deparemos com Doze subsídios para a
redacção dos direitos dos poetas, e com poemas vários sobre as
muitas questões que a afectam: os afectos como tema, claro, entre
outros, as questões prosódicas, rítmicas, melódicas, mais genericamente
linguísticas, em que o «mel do idioma» se vai buscar também a Espanha, a
mater. E também a incompreensão e desprezo pela Poesia por parte
dessas pessoas cuja ignorância e arrogância gritam às vezes tão alto que
melhor era não lhes ligar nenhuma importância. Merecem que se fale
delas? Não.
O que enunciei e fica aquém do necessário não corresponde
a um guia meu para analisar a obra do autor. Tudo isto é
objecto de reflexão do poeta nos seus poemas, por isso é com toda a
propriedade que considero a Poesia a amada senhora de Tito Iglesias.
Ela domina todo o livro, mesmo quando não parece. Domina, é dominadora,
a sua génese desafia Édipo, que se interessa mais pelo lado espontâneo e
onírico que ela comporta do que pela oficina de martelar versos e rimas.
Nesse aspecto Tito é bem surrealista, se bem que a sua indisciplina
também o faça dedilhar cordas mais clássicas.
Os títulos são bons
condutores deste filão metapoético, e como, por vezes, se alargam até à
declaração de princípios ou ao resultado de exame médico - Rimas
cariadas para extrair da boca (fechada) do inferno... - ilustram bem
o facto de que a Poesia é a sombra do Poeta, eles vão de mão dada desde
os primeiros ao últimos versos. Sombra e conteúdo, quando Tito se
metaforiza em livro - «Um velho livro sou, / Impreso en España».
Habitado pela Poesia, Tito
sem ela não existiria. É o poema final que no-lo assevera, a completar
em exemplo o meu discurso.
PONTO FINAL,
AUSENTE ESTANDO A POESIA
Sem ti, eu sou
um lenço encharcado de lágrimas,
verso tingido de roxo
coração submerso no vazio.
Sem ti, não sou. |