Rege-nos um novo protocolo
ortográfico, e é inútil insistir nas concordâncias, discordâncias,
argumentos a favor e contra: vamos aprender as novas regras, com
vagares, pois as exceções devem ser muitas, e o meu sentimento ao grafar
estes novos objetos verbais é de gozo. Pura fruição. Pena ainda não ter
memorizado todas as mudanças, e pena terem sobrado duplicidades como
António e Antônio, académico e acadêmico, etc., pois mais fácil seria
varrer esses acentos, lembrando o uso passado de não acentuar
esdrúxulas.
Fruição por várias razões,
a primeira delas é termos uma novidade na literatura, e o novo, venha
ele de dentro ou de fora dela, é sempre excitante. A segunda razão é
amorosa, erótica, ou mesmo sexual: o que existe de diferente agora na
nossa ortografia e na dos outros países lusófonos são algumas normas
brasileiras, e o que de novo existe agora na ortografia brasileira são
algumas normas da ortografia portuguesa. Em suma: não há nada de novo
debaixo do Sol, vamos só namorar um tiquinho os brasileiros e os
brasileiros vão namorar-nos a nós.
Ora eu adoro o Brasil. Devo
muito aos brasileiros. Não precisei de novo acordo para abrasileirar, já
o fiz há mais de vinte anos, em “Eco / Pedras Rolantes” e “O lagarto do
âmbar”, por exemplo. E fui além da grafia, de resto a grafia é o
que existe de mais ligeiro numa língua, não tem importância por aí além.
Na pior das hipóteses, cometem-se uns erros de ortografia, nada que nos
leve à cadeia nem ao hospital. Ninguém tem o dicionário na cabeça. Todos
cometemos erros. Abrasileirar mais do que graficamente dá muito mais
gozo, e isso acontece quando se incorpora a semântica, o léxico e
estereótipos frásicos.
Herberto Helder deve ter-se
irritado muito com o debate sobre o Acordo, porque a matéria em
discussão é insignificante, de um lado; de outro, seja ou não necessário
o Acordo (não sei ou já
não me lembro de qual o seu objetivo, supondo que alguém tenha conseguido
mostrar a sua importância – a importância do objetivo e não a do Acordo), enfim, onde ia eu? – cometamos uma transgressãozita,
deixando a frase inacabada.
Ah, sim, Herberto Helder
sempre mexeu a língua mais do que as normas consentem, e até erros tem
nos livros – quem nunca pecou, que atire a primeira pedra! -, por isso
uma discussão sobre a fatiota da língua, quando uma pessoa a despe para
se meter na cama com ela, etc., se inspira, é para mostrar o quanto se
pode transgredir. Ele sempre o fez, porém agora, numa altura em que
vamos passar a grafar algumas palavras segundo normas brasilis, ele
aparece em cena – ao fim de anos de silêncio – com um texto em que bem
se vê que a língua é um órgão sexual além de meio de comunicação e de
matéria-prima da poesia. É o que pode ver no poema "não
some, que eu lhe procuro, e lhe boto", oriundo de A faca não
corta o fogo (link em baixo).
Creio que dispensa mais
comentários, exceto que a maior prova de não existir malefício
nos acordos ortográficos (pelo contrário) vem-nos de um grande poeta.
Se os grandes escritores portugueses, além de aceitarem a reforma, vão
ainda além dela, é porque viram que isso é bom - para quase citar
o Génesis.
Pena não se fazer também um
Acordo Económico; mesmo suavezinho e com as duplicidades do Ortográfico, já
era
animador. Sim, sim, dá gozo
pra caramba botar vestido novo no corpo da pirua. Daqui a um ano, livrinho que não
use as novas grafias, vai ficar enrugado e anacrónico. Arcaísmos,
senhores, velharias! |