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Maria Estela Guedes

A Formiga branca

O senhor José Travisco, homem atravessado

De génio violento, que até batia nos trabalhadores

Pondo a mãe em pânico, tinha casado

Por procuração.

 

Combinou um jantar de arromba

Para a noite do dia em que chegou a mulher

A D. Mariazinha,

Desembarcada do Alfredo da Silva

E não refeita ainda do choque

Da diversa cultura da das couves sua -

Transparente nas ruas da Praça

Desde o cais até à ponta, em Santa Luzia.

 

Que tempo seria? Provavelmente, o das chuvas

Aquele em que as plantas ressuscitam

Com pujança, e os animais, tendo alimento,

Mais se reproduzem.

Foi hoje, façamos de conta.

No terreiro da tabanca

Os negros dançam, as crianças chapinham e riem

Debaixo dos cordões de água

Em agradecimento ao Irã.

Este ano vão ter muito arroz nas bolanhas

Muita mancarra para arrancar e cozer

E muita farinha de mandioca.

Sim, só pode ter sido no tempo das chuvas.

 

Mesa posta no comprido pátio de cimento

Rachado, ornado com os ancestrais símbolos –

O tronco para castigo dos escravos

E a ferrugenta balança, para pesar as toneladas

De cana destinadas ao alambique.

 

Noite quente, úmida, com ligeiro frufru

Nos ramos dos coqueiros e das palmeiras do

Dendém – Elaeis guineensis

Com que se cozinha o dourado chabéu.

 

A mesa posta com toalha branca

E brancos guardanapos

Os copos cintilantes no lusco-fusco

Que a noite cai cedo

E tão rapidamente

Que entre noite e dia quase não se percebe

O intervalo.

Comem a canja

- E a D. Leonor, que ainda não quis destapar o pato

Felizmente! –

 

Os vizinhos apresentaram-se todos

E cada família trouxe a sua iguaria

Apesar de o noivo ter bastante mau caráter.

 

Comemos a canja, gostosa.

Eis que se aproxima silenciosamente um enxame

De bagabaga, voando, porque elas voam, as

Térmitas ou formigas-brancas, voam até

À fase nupcial, aquela em que festejavam

O casamento os senhores da ponta

Exatamente como elas.

 

O riso a disfarçar a deceção

O grande desapontamento

Para não falar do prejuízo

As formigas voando no seu voo nupcial

Atraídas pela luz dos candeeiros Petromax

E deixando cair as suas já inúteis asas

Sobre a canja

Elas mesmas, térmitas, ainda meio lagartas,

Aterrando nos pratos

A pontaria errada, pois era no chão

Friável que deviam ter caído, enfim, em local

Aprazível para construção de nova termiteira.

 

Só sei dizer que o casamento ficou sem janta, excetuado o pato da D. Leonor, que deve ter adivinhado e por nada quis destapar antes de tempo a sua oferenda de pato assado.

De Chão de Papel (em publicação na Apenas Livros)
 

Maria Estela Guedes. Membro da Associação Portuguesa de Escritores, da secção portuguesa da Associação Internacional de Críticos Literários, do Centro Interdisciplinar da Universidade de Lisboa e do Instituto São Tomás de Aquino. Directora do TriploV. Alguns livros publicados: Herberto Helder, Poeta Obscuro; Eco/Pedras Rolantes; Crime no Museu de Philosophia Natural; Mário de Sá-Carneiro; A_maar_gato; Ofício das Trevas; À la Carbonara; Tríptico a solo. Espectáculos levados à cena: O Lagarto do Âmbar (Fundação Calouste Gulbenkian, 1987); A Boba (Teatro Experimental de Cascais, 2008).