A poesia é uma categoria literária muito ampla, que permite democratizar e fechar em torres de marfim, cantar amores e satirizar, louvar os heróis pátrios e protestar contra as tiranias. Pode a poesia recorrer ao discurso corrente a ponto de parecer banal, pode elevar-se à mais hermética das erudições. Pode reclamar por justiça e liberdade, pode apresentar-se a ela mesma como essa liberdade e essa justiça, ou pelo contrário. Então, no tema “Democratização da poesia ou banalização da palavra” vou tratar apenas de um assunto e pouco mais, entre os muitos e contraditórios que se poderiam oferecer ao exercício do teclado: a abundância de poemas e a facilidade de acesso à publicação, nos nossos tempos.
Recordo-me de ter tido uma grande surpresa, quando, no final dos anos 80, ao entrar para os corpos directivos da Associação Portuguesa de Escritores, deparei com um ficheiro de milhares de escritores, na maior parte, poetas. Pelos meus cálculos, seríamos então uns dois mil, o que, somado às ideias que todos trazemos da História da Literatura, me levou a concluir que Portugal se caracterizava, em termos culturais, pelo facto de todos sermos poetas, e pela boa qualidade geral da nossa lírica.
Hoje, continuo a dizer que a lírica portuguesa é em geral de muito bom nível, mas já não caracterizaria o país por ter muitos poetas, como outros fazem, comparando com a Alemanha, por exemplo, que é considerada um país de filósofos. A abundância de poetas é geral no mundo, debato-me com ela quase diariamente, no TriploV. Dá ideia de que versejar é comunicar numa extensão natural da língua materna, apenas situada essa comunicação num plano ritualístico e não de uso corrente, utilitário. Mas é um segundo uso, tão comum como as práticas religiosas, que têm isto de particular: o ritual é uma repetição, que não podemos acusar de banalidade. A poesia, sendo prática individual, oriunda de uma personalidade discreta, gera textos originais que, não obstante a sua diferença, podem às vezes ser ou parecer banais. A superabundância pode ter esse efeito, é verdade. Porém, a menos que se cite, parafraseie, ou adopte comportamentos típicos dos poetas mais conhecidos, a poesia de cada um de nós é sempre original. O que é banal é o hábito dos heterónimos, por exemplo, pois basta um Fernando Pessoa para logo outro que assuma idênticas posturas se tornar um imitador.
A maior parte das colaborações que me enviam para o TriploV são poemas. Eles chegam do Brasil, do Chile, de Espanha, do México, da Argentina, de Portugal, da Venezuela, e um pouco de toda a parte do mundo, o que me leva a pensar que a poesia é a mais universal de todas as artes. Desde os versos de sabor popular aos hiper-eruditos, tudo aparece, a querer um lugar no ciberespaço ao lado de homólogos estrangeiros.
Hoje não há motivo para ninguém entrar em depressão por não conseguir publicar os seus textos. Nada mais fácil do que publicar em papel, basta pagar as edições. É uma vantagem entre desvantagens muitas da crise económica e da falência com que se debatem editoras convencionais. Não há nada de errado com as edições de autor; muitos grandes autores do passado a conheceram, não existia outro procedimento; se alguns recorreram ao mecenato, quer isso apenas dizer que não tinham os meios económicos para arcarem pessoalmente com as despesas.
No meio da diversidade de edições em papel quero mencionar uma editora, por estar ligada a ela, que nem é convencional nem pratica a edição de autor camuflada, antes resolveu com originalidade os problemas económicos: é a Apenas Livros. Publica sob a forma de livros de cordel, em tiragens mínimas, facilmente restauráveis em segunda e terceira edição. Há um limite de páginas que define o aspecto de opúsculo dos livros, e isso permite vender barato. Os livrinhos raramente custam mais de quatro euros.
A edição no ciberespaço é ainda mais democrática nos custos, pois, tratando-se de um blog, por exemplo, pode ser gratuita, e é democrática sobretudo na dimensão da audiência: publicar no TriploV equivale a chegar a quase todos os cantos do planeta. Não digo todos por inexistência de democratização do bem-estar em todos os países: em alguns, caso dos africanos, o acesso à instrução e às novas tecnologias é reduzido. Quase não existe audiência nos países africanos a que estamos ainda tão ligados, por falta de implantação de redes de comunicação avançada. Não existindo tecnologia de comunicação em dados países, o seu grau de democratização também é baixo, por isso mesmo, por falta de veículos da palavra, acrescida a outras razões.
Publicar em livro e publicar no ciberespaço implica diversos modos de estar na cultura. Chamo agora a atenção unicamente para o facto de que quem publica na Internet, num site de grande audiência, não está a ser lido pelo estreito círculo dos familiares e amigos do bairro, sim por uma comunidade que nos seus limites mais amplos é estrangeira. Nota-se tendência dos poetas para se comportarem como se os fosse ler só a família. Têm de começar a comportar-se como quem está a apresentar-se ao desconhecido, e isso exige menos atitude antidemocrática, isto é, menos narcisismo.
Não podemos falar de democratização da palavra como se a democracia fosse absoluta e geral. O facto de a rede gerar uma audiência à escala global não significa democratização global. Não só existem países que não têm acesso a esses meios, como o acesso a eles, nos países que os têm, está reservado a uma elite com dinheiro. Nessa elite, usam computadores certas faixas etárias, e outras, não. Nem todos os poetas usam os meios de comunicação de que hoje dispomos, e alguns nem sequer chegaram a passar pela máquina de escrever.
De outra parte, a democracia não é um valor absoluto. Na sua vertente mais importante para os escritores, vemos que a liberdade de expressão é um direito que não corresponde às nossas utopias nem às nossas necessidades. Mesmo na vida corrente dos noticiários, a cada passo deparamos com queixas acerca dos limites impostos na política à manifestação da palavra. Portanto o direito à liberdade de expressão tem limites, é pouco para o que desejamos; acontece entretanto que o maior dos nossos censores não é a opinião pública nem as limitações políticas, sim o nosso dispositivo autocrítico. É o critério de selecção que nos impede de tudo dizermos e de qualquer maneira. Sem pretender entrar no labirinto e nos precipícios da alma, cujas razões são obscuras e passionais, basta pensarmos que o ritmo, a medida, a extensão, a metáfora, são dispositivos a que recorremos normalmente para dizer isto e assim, por exclusão do dizer aquilo e assado. A palavra implica um dispositivo de selecção e combinação interno, e esse dispositivo, ao incluir e excluir, já por si é uma censura, e por conseguinte é antidemocrático, ou em nada se relaciona com o âmbito político e social do termo “democracia”.
E terminaria com os dispositivos de exclusão social ou cultural tão caros a alguns de nós, e que por vezes sinto na pele. Assumem várias máscaras, pois nunca se apresentam em cru como dispositivos de exclusão de pessoas. A mais comum é o apelo à qualidade, que não passa em geral de pretexto para exercício de lideranças, permitido pela criação de grupos. O que mais faz sofrer, no TriploV, não é a quantidade de versos com que me bombardeiam poetas de toda a parte do mundo, sim as pressões que alguns exercem para que exclua este e aquele, ou até para que me auto-exclua de certos círculos.
Nesta Bienal que a nossa amiga e poeta Gabriela Rocha Martins faz sempre coincidir em tema e em data com o 25 de Abril, deixo em remate esta consideração: nem nas torres de cristal da poesia são sempre democráticos os nossos comportamentos cívicos.