Há nomes que me perseguem. Perseguem-me pela vida fora, atrelados à imagem daqueles a quem pertencem, como se homens me perseguissem, aos pares, aos trios, pois clonados, só os nomes. Bocage, por exemplo. Eu dei aulas num Externato Bocage, eu trabalhava ao mesmo tempo no Museu Bocage, tanto que escrevi sobre Bocage, muito mais sobre o naturalista que sobre o poeta, mas escrevi muito. E foi n’ “O Bocage”, revista do externato, que publiquei algum dos meus mais antigos textos.
Moro na Rua Dr. Egas Moniz, em Odivelas. A região onde nasci, mais ampla que a de Lamego, actualmente, pertenceu outrora às Terras de Ribadouro. Foi um dos pólos mais importantes do povoamento, em tempos de fundação de um novo país. Seu terratenente, Egas Moniz, foi na tarefa coadjuvado pela mulher, dona como ele, ou D. Teresa, cuja piedade e saber político a levaram a fundar mosteiros para os monges cistercienses. Os cistercienses agregaram a si a fé dos que vinham para povoar e fixar-se às terras da nova nação, e para isso desde logo tiveram a seu favor o vento dionisíaco, uma vez que, entre as novas culturas introduzidas pelos monges, se distinguiu a da vinha. Daí que um dos passeios pelas belas terras durienses, “Rota dos vinhos de Cister”, exiba por chamariz as quintas com os seus vinhedos em socalcos e as suas grandes adegas, para lá dos vários mosteiros cistercienses, uns em estado de ruína mais calamitoso do que outros – S. João de Tarouca, Convento de Ferreirim, eis duas referências.
Não sigo o rumo traçado por Herculano, n’ “O monge de Cister”, a minha viagem é de metropolitano - linha amarela, a do girassol –, de Odivelas à R. da Escola Politécnica. Ambas estações terminais, como certas fases de doença. Deve-se o topónimo à existência da Escola Politécnica, em cuja fundação desempenhou papel de relevo a oratória do historiador, ficcionista e poeta romântico. Mas não, o meu percurso não segue as pisadas de Alexandre Herculano, por isso atravesso rapidamente para o outro lado da rua. Egas Moniz, nome que recobre duas identidades separadas por muitos séculos, eis a segunda coincidência.
Escola Politécnica. Aí se agregam médicos, matemáticos, físicos e químicos, quase todos professores. Alguns médicos mais cientistas seguiram e ainda seguem a pé, na direção do Rato, a R. Politécnica, desde a bica tomada na Cistér (assim mesmo, com acento, reza o velho letreiro da pastelaria, para dissuadir a toleima de quem pronuncia “císter”), até à Calçada Bento da Rocha Cabral, ao lado do casarão cor-de-rosa do PS onde outrora se localizavam laboratórios e oficinas relativos a indústrias nascidas da visão de Pombal e das virtudes oficinais de Vandelli, Domingos, Vandelli, Alexandre, seu filho, e de tantos outros que, por sinal, viviam nas imediações, como o próprio Domingos Vandelli, que tinha casa na R. de S. Bento, nº 289 (hoje loja de antiquário) e alugara a parte superior ao colega Andrade Corvo.
Subamos também nós pela Calçada, pois nela existe um palacete onde nos seus bons anos teve laboratório o Dr. Egas Moniz – Instituto de Investigação Científica Bento da Rocha Cabral. É esta instituição que dá nome à rua. Hoje, nela, estão sediados vários centros de investigação, um deles o CICTSUL, ao qual pertenço.
Nestes mares urbanos da ciência, atravessado o canal da Cantina Velha, eis-me diante de uma estátua, à entrada do Hospital de Santa Maria, cuja lápide se reproduz:
A EGAS MONIZ
1874-1955
PRÉMIO NOBEL DE MEDICINA E FISIOLOGIA
27 de Outubro de 1949
Egas Moniz é um dos melhores exemplos de que certos médicos são cientistas. Sim, porque contra o que possam até pensar os médicos, a medicina não é uma ciência, sim uma técnica, que recorre a ciências variadas. Porém há médicos cientistas, como Egas Moniz ou Pasteur, todos os que nos bastidores das consultas aos doentes fizeram investigação em laboratórios como os do Rocha Cabral, deixando ratinhos incubarem doenças para lhes estudarem os tecidos, experimentando soros e tratamentos eléctricos, tentando excisões de partes do cérebro, a ver se este recuperava faculdades mentais, tudo num grande aparato de lâminas e lamelas, bisturis e compasso de pontas secas, máquina centrifugadora, frigorífico e estufa, gavetões com rolhas de cortiça de dimensões variadas, outros com gaze, outros com algodão em rama, e os frascos, e as bocetas, e os cadernos de apontamentos, com muitas colunas de números e de nomes em latim, e as indispensáveis luvas de borracha e o odor do formol a sobrepor-se ao do álcool e da cânfora. Sem luvas não há experimentação, sem esta não existe laboratório, e sem laboratório não existe ciência.
Ia eu a pensar nisto tudo depois de ter saído da maravilha tecnológica que ainda é o metropolitano. Sim, porque a ciência não é nada só com as suas retortas de alquimista e tubos de ensaio de vidro torcido ali mesmo, no laboratório, por dedos experientes, de senhores Ferreira ou de donas Fernanda, quase roçando o gás ardente sobre o bico de Bunsen. Qualquer ciência precisa da tecnologia, e hoje não é nada sem o computador, que lhe fornece, além do útil, toda a máscara da competência, em diagramas, estatísticas, ecografias, tudo dispositivos em que se exibe a pedra de toque do saber médico: a imagem do interior do corpo, expressa em ícones pulsantes, próprios de um ver-se internamente ao espelho, e o algarismo, com a sua exactidão metafórica, transponível de acetato para a realidade. Assim também o metropolitano que me deixou à berma da quotidiana tragédia é um dispositivo metafórico por excelência, científico até ao rigor do "ou zero ou um". Vá-se a Atenas, não nos espantemos por ali as rodoviárias terem por nome “Centro Metafórico” – é isso o que a tecnologia fornece através dos monitores: a iconografia, um transporte do invisível até à capacidade de leitura do olhar.
Saí então da carruagem de uma das metáforas da linha amarela, a do girassol, na Cidade Universitária, aquela a que Helena Vieira da Silva emprestou alguma da sua arte de criar labirintos urbanos com apenas alguns mínimos quadradinhos. Quando eu morrer – dizia ela – quero ser uma gaivota! Ou terá dito algo parecido e não exactamente isso, mas sim, é uma asserção grave que manifesta o desejo de não morrer, de permanecer na memória dos outros sob a forma de gaivota. Uma gaivota no céu, entenda-se. A voar. A maior parte das aves marinhas, haja em vista o famoso albatroz de Baudelaire, são desastradas em terra, toda a sua graça vem do movimento entre as nuvens. E note-se que tão distinto é o voo de cada espécie que podem as aves ser identificadas à légua pelo modo como no céu se deslocam, picam, planam, sobem para as nuvens em espirais, batem as asas tão velozmente que mais parecem ápteras, como já reparou aquele que com exactidão milimétrica – a própria da ciência – se deteve a estudar o voo dos colibris.
Ia de cabeça apanhada pelo rigorismo da matemática, depois de uns minutos em navegações pela Internet à caça de informação sobre certas doenças, o António, amigo próximo que tinha ido ao Hospital de Santa Maria fazer uns exames, todo o dia passando à espera que lhos fizessem, até que, pela noite, noite da qual já não sairia, um médico o informou de que tinha um tumor nos pulmões em estado já muito avançado, com metástases no fígado, e depois seria na medula e também no cérebro…
- Não precisa de dizer mais nada, já percebi tudo! – cortara o António, com a morte na alma antes de lhe alcançar os órgãos da fala. Porque logo a seguir foi isso o que falhou, a capacidade de dar nome às coisas. Não conseguiria dizer, ou lembrar-se, de nomes de alimentos tão correntes e tão simples como “água”, “pão”, “maçã”. Ou nauseá-lo-iam os signos, em referentes transmutados, o fígado atingido pelo raio... Deixou de se alimentar, tudo lhe sabia mal, até a água, que só bebia em pequenos goles. Levantou-se duas vezes alta madrugada para tomar banho, desviava a cara de quem lhe falava perto, para não sentir o mau cheiro dos dentes alheios. Em vez de “sopa”, palavra agora interdita ou esquecida, pediu uma tarde, apontando a tigela no tabuleiro hospitalar:
- Dá-me duas colheres daquela coisa…
E depois foi deixando de falar, uma vez por outra suplicou que o levassem para casa, mas a súplica foi-se reduzindo até um sopro final em que se suspeitava apenas a palavra “embora”.
Egas Moniz trabalhou com o cérebro, foi por causa dessas investigações que recebeu o Prémio Nobel. Devia saber qual a zona em que se gera, armazena, reestrutura a linguagem. Apagando-se essa luz, nada mais resta, ainda que o coração bata, o fígado não rejeite a comida a ponto de lhe chamar “coisa”. Funcione tudo segundo os padrões do óptimo, se o centro da linguagem for atingido, perdemos a consciência, e, sem consciência de nós, estaremos mortos.
E em quinze dias foi-se, o velho amigo, o companheiro de king e de viagens, da primeira visita a Foz do Iguaçu, e às Baleares, ilhas tantas recamadas de Podarcis de todo o feitio, quase modelos únicos, e vários por ilha, saídos da mão de Augustus ou Yves Saint Laurent. Há por detrás desta frase muito segredo, mas é do género teatral, sem matemática dentro, só Polichinelo, estilo “o marido é sempre o último a saber”.
Nada disso interessa hoje, levo uma nuvem sobre a cabeça, um “Como é possível ir-se assim, em quinze dias, sem nada antes que alerte alguma das muitas ciências a que recorre o médico, patentes nos resultados de análises, feitas em sapientes laboratórios, e expressas inevitavelmente no suporte mais científico da ciência, iconografia e algarismos?”
Hospitais são lugares de doença e morte, mas também de salvação. Para quem não crê na vida eterna, o hospital devia ser o horizonte que substitui o Paraíso. Não há mais céu a que ascender, o tecto é baixo, queda-se pelos limites da ciência. O Hospital de Santa Maria é um Céu decadente, uma cidadela de corredores labirínticos, elevadores que só vão para onde não queremos, e onde o piso daqueles que não se encontram? Tão grande, com escolas dentro, e armazéns, cantinas e restaurantes, e salas de consulta, e muitos quartos e pouca gente de bata branca. Quando nos abeiramos de alguma a perguntar, a bata sorri polidamente e desculpa-se, não sabe, não é médico nem enfermeiro, é um estudante.
Lugares de ciência, de aquisição de conhecimento, habitados por mestres, e aprendizes e companheiros. Lugares de vida ou morte, de salvação in extremis ou de nada disso. Lugares em que a ciência toma consciência da sua impotência.
Descer a pé, ainda se desce. Mas subir ao Paraíso sem nenhum elevador, próprio do piso de destino, à vista? Quem se atreve? Quem tem pernas e coração para trepar a um sétimo, oitavo ou nono piso? Subir, subi até ao sexto, e ali o elevador recusou-se a reaprender a marcha, "Avariado como de costume" - ouvi. Como é possível que um elevador para o Céu se recuse a ir além do sexto piso? E os doentes, de maca?
Cheira a desinfectantes como todos os hospitais. As paredes, de cal caída aos farrapos, parecem leprosas. Começou a funcionar em 1954, e é sem dúvida uma das grandes obras do Estado Novo. Hospitais, campanhas profiláticas, combate ao paludismo, à tzé-tzé e a outras doenças e vectores animais, nas antigas colónias. Tal como a Idade Média não foi uma era de trevas, assim a ditadura de Salazar se musculou com obras de indiscutível valor. Não esqueçamos que no interior do labirinto funciona a Faculdade de Medicina, uma cidadela dentro da cidadela maior.
Lugar de salvação e morte. Paraíso devia ser, para os doentes que não acreditam na vida eterna. O António, tão anti-clerical, tão ateu, devia sentir-se protegido pela ciência num estabelecimento de grandeza tão impressionante, com homenagem a Egas Moniz à entrada. Um Prémio Nobel português. Nobel de Medicina.
O António nem quinze dias durou desde que foi ao médico queixar-se de rouquidão e falta de ar. Ali, no Hospital de Santa Maria, perdeu rapidamente a fala e as forças e a última palavra que se lhe percebeu foi “embora”.
Odivelas, 12 de Junho de 2008