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Maria Estela Guedes
Amar por ouvir contar, como Tedon e Ardinga
Passion veut dire souffrance, chose subie, prépondérance du destin sur la personne libre et responsable. Aimer l'amour plus que l'objet de l'amour, aimer la passion pour elle-même, de l'amabam amare de saint Augustin jusqu'au romantisme moderne, c'est aimer et chercher la souffrance. Amour-passion: désir de ce qui nous blesse, et nous anéantit par son triomphe.
Denis de Rougemont (1)

 

Consideram alguns, mais racionalistas, como Descartes - O amor paixão tem origem na acção do corpo, dizia o filósofo - que o desejo é a resposta ao estímulo de feromonas, por isso um fenómeno estritamente bioquímico. Porque germinam estas concepções de teor científico no tecido social, e a ciência goza de grande poder persuasivo, logo as empresas se apressam a tirar partido delas, criando novos produtos que a publicidade anima com o inevitável "Compre já!". É o caso dos perfumes:

"Imagine um afrodisíaco natural provado cientificamente atrair mulheres. O nosso Concentrado de Feromonas de Androstenona é exactamente isso!

As mulheres subconscientemente detectam este produto e sentem-se instantaneamente atraídas por si!

Encomende já!" (2)

Armados em Cristianos Ronaldos, os novos galãs ungem-se com aqueles aromas que à doninha, por exemplo, deram a alcunha de "fedorentas". E lá vamos nós, mulheres em cio, de gatas a farejar-lhes o rasto, mais de língua de fora que jogador atrás da bola. Será? O que nos homens nos desperta o interesse será o almíscar com que se untam nos pulsos e atrás das orelhas?

Defendo, baseada na experiência de vida e de leitura, que, na origem de um enamoramento, nada obsta a que todos os excitantes sejam imaginários. Enamoramo-nos tanto mais, quanto mais formos criativos. O amor é um filho do mundo emocional e intelectual e não tanto de secreções das glândulas sudoríparas. Isto, pelo menos, entre indivíduos civilizados e sãos. Admito que em zonas doentias da mente - mas seria sempre a mente a comandar a bioquímica - o desejo se compraza em excitantes mais próprios do analfabeto mundo animal. Ama-se de acordo com o estrato intelectual, eis a minha questão.

É neste ponto que entra a história de Ardinga e Tedon, os heróis lendários da região lamecense, e uma pergunta me inquieta: saberiam eles ler e escrever? É claro que uma coisa é a palavra e outra a ortografia, por isso eles podiam ser cultos e sábios sem terem aprendido o que, na Idade Média, era atributo preferencial do clero. Eles demonstram que a sua paixão é culta, e ainda que é muito antiga a faculdade de os humanos se enamorarem em razão de estímulos que nada devem à bioquímica. No caso, apaixonam-se por ouvir contar, exactamente como Chaariar poupou a vida a Xerazade por esta o ter encantado com histórias ao longo de mil e uma noites. Mais poderosas que a morte, muito mais poderosas que as feromonas, as palavras decidem a vida e a morte e por isso são estímulos do amor, o amor-sofrimento, tal como o escalpelizou Denis de Rougemont, ao estudar casos idênticos do amor cortês como o de Tristão e Isolda.

E no dia seguinte… "No dia seguinte", eis um eficaz anzol para prender corações, e esse anzol é a palavra. Tal como a roda, ela puxa o carro da imaginação. Se a palavra for cantada, então… Quantos de nós não se apaixonaram loucamente pela Madonna, pelo Elvis, pelo Alain Delon, pela Angelina Jolie, pelo Brad Pitt? Ui!, e pelos apresentadores de Rádio e Televisão? E que feromonas podiam ter eles lançado ao écran, capazes de nos porem a correr atrás deles como fêmeas do cervo-almiscarado? Aí está: não lançaram nenhumas, as suas feromonas não são substâncias bioquímicas, são substâncias verbais e imagéticas. Coisas do delírio manso, do devaneio.

A lenda de Ardinga, a princesa moura, faz parte de uma série de textos fundadores da cultura cristã na parte mais ocidental da Europa. No seu entrecho mais forte, relata o caso de amor da muçulmana pelo cristão, e mostra como é bárbara a cultura islâmica, quando o pai a condena à morte por se ter convertido ao cristianismo. As religiões confrontam-se, mas no horizonte entrevê-se a utopia da aliança entre as duas culturas, como sugere Isabel Oliveira (3), aliança que se verificou de facto, em vários sectores, um deles o misticismo da lírica árabe absorvido pelos trovadores.

A história de Ardinga, e sobretudo a natureza do amor dela, aproxima-a da lírica medieval, em que impera o amor cortês, cantado na primeira pessoa pela amiga, numa das suas versões. Tal como numa cantiga de amigo, a personagem activa é a mulher; tal como numa cantiga de amor, o estatuto social da mulher é elevado, e o amor que lhe vota o trovador pode ser interpretado como mariano, o que religa o amor cortês a uma religião.

Que diz a lenda? Não é preciso reescrever o que mil vezes foi escrito. Vejamos o que diz o site da Câmara Municipal de Tabuaço:

Segundo a lenda, D. Thedon e D. Rosendo, cavaleiros cristãos que, nos princípios do séc. XI, combatiam a mourama instalada na vertente do Douro, passaram por esta terra a que hoje chamamos de Granja do Tedo e aqui se quedaram por algum tempo. Agradado com o sítio, D. Thedon assentou aqui residência e construiu casa e granja.

Tal era a valentia e tais os feitos de D. Thedon em combate que acabou por conquistar também o coração de uma princesa moura, Ardinga ou Ardínia, filha de D. Alboazan, Rei Mouro de Lamego, que os cavaleiros combatiam. Por amor a D. Thedon, a princesa moura, acompanhada de uma dama de companhia, fugiu para a Ermida de S. Pedro das Águias, à esquerda do rio Távora, onde o monge Gelásio a recebeu, instruiu e converteu, pelo baptismo, ao Cristianismo, para poder casá-la com D. Thedon. Alboazan, o Rei Mouro, ao saber da fuga da filha, tomou-se de ira e seguiu Ardinga até ao santuário, onde a matou e atirou ao rio Távora, antes que a sorte a tivesse unido alguma vez ao cavaleiro. Ao receber tal notícia, D. Thedon jurou morrer solteiro e nunca mais descansar a espada na luta contra os sarracenos.

Diz a história que o Rei Alboazan, morto por D. Thedon, foi a enterrar no monte vizinho, que ficou a chamar-se Monte Rei. O cavaleiro, esse, lutou corajosamente até que, apanhado à traição, foi morto em combate e o seu corpo mutilado atirado às águas do rio que hoje usa o seu nome: o Rio Tedo (4).

Como se nota, Ardinga apaixona-se por ouvir contar... Pelo seu lado, D. Tedon retribui depois de lhe terem contado... E nunca se chegaram a encontrar, de forma a produzir-se alguma química entre eles. Noutras versões da lenda, a reação de D. Tedon, depois de ter ouvido a história, não foi só a de jurar celibato, mas também a de se fazer frade. O amor sublima-se em religião.

Tudo lendas, belas lendas, não é verdade? Mas, meus amigos, pergunto: o que faz apaixonarem-se hoje os jovens, nos chats? Quais são as feromonas que os excitam? Alguns ainda têm webcam e outras visões corpóreas, mas a maioria apenas tecla. É só a palavra que faz correr uns para os braços dos outros, e palavra bem pobrezinha. Porém lá está: mesmo sendo pobrezinha a conversa, a palavra é tão poderosa que decide entre vida ou morte e dá definitivamente um pontapé no traseiro das doninhas fedorentas.

A propósito: o chat do TriploV está a funcionar. Aproveite para morrer de amor.

Britiande, 28 de Julho de 2008

Notas

(1) Denis de Rougemont, L'amour et l'occident. 1972, Paris, Plon.

(2) In: http://www.apaixonante.com/

(3) Isabel Oliveira, Ardínia – Um passado presente. Comunicação ao VII Colóquio Internacional “Discursos e Práticas Alquímicas”. 2007, Lamego.
In:
http://www.triplov.com/Coloquio_07/Isabel-Oliveira/index.html

(4) http://cm-tabuaco.pt/cmtab/index.php?option=com_content&task=view&id=21&Itemid=30

Maria Estela Guedes. Membro da Associação Portuguesa de Escritores, da secção portuguesa da Associação Internacional de Críticos Literários, do Centro Interdisciplinar da Universidade de Lisboa e do Instituto São Tomás de Aquino. Directora do TriploV. Alguns livros publicados: Herberto Helder, Poeta Obscuro; Eco/Pedras Rolantes; Crime no Museu de Philosophia Natural; Mário de Sá-Carneiro; A_maar_gato; Ofício das Trevas; À la Carbonara; Tríptico a solo. Espectáculos levados à cena: O Lagarto do Âmbar (Fundação Calouste Gulbenkian, 1987); A Boba (Teatro Experimental de Cascais, 2008).