Mal de altura, o fôlego perde-se a cada passo, e então
A subir tantos graus quantos os degraus
Da escada de Jacob, que só no regaço de Deus terminam?
Mastiguemos umas folhas de coca, bebamos chá de coca,
Ilusões que não fornecem oxigénio, apenas tranquilizam
Quem tem fé em elixires mágicos.
Copacabana, a pobreza espreguiçada nas margens
Do luxuoso Titicaca. O imenso lago de altitude
O andino mar interior
Como um suspiro de luzidia alga.
Loja sim, loja não, é uma agência de viagens.
Quatro horas da tarde, passa gente despida e gente vestida,
Reflectindo a amplitude térmica diurna
Despropositada.
De noite, um gelo. De dia, os tropicais abrasões solares.
Por isso as samarras quentes, os ponchos, os gorros
Da meia-noite ao meio-dia
E ao mesmo tempo as havanesas frescas e outras vestimentas
Do meio-dia
Nas tiritantes tardes
A crepitarem nomes de ilhas das Bermudas.
Cabelos lindos os destes incas, negros e lisos,
Negras e lisas noites
Brilhantes e compridas.
E oleosos também. Ou secos e partidos
Mas no olhar cativeiro de imagens
Ficam lágrimas escuras
De fios soltos e enrolados na nuca.
De noite adormecem com ela em sonhos de
Ilha do Sol e Ilha da Lua.
Profundo Titicaca, formoso céu és
Em terra liquefeito.
Tiro-te o boné! E os
Óculos escuros,
Para te ver as cores verdadeiras.
Copacabana, margem boliviana do lago Titicaca.
As mulheres
Carregam cargas à cabeça e filhos às costas
Para vender aos turistas, os homens ficam a ver.
Vai gente civilizada e europeia buscar essas crianças
Morenas
E pequenas
De rostitos precisos e agudos sorrisos
Na cratera dos seus olhos de obsidiana.
É rápida a transação e isenta de burocracia.
O Titicaca, ao fundo da miséria, encantada baía
Com dois ou três
Gansos flutuantes, mas
Nenhum humano se aventura nas águas
Que adivinho cristalinas pedrarias
De tão geladas.
Até onde o olhar avista, é mar azul-tranquilo
O altivo lago.
Passam dois jovens incas
Profusamente abraçados – que quererá isso dizer?
O Mário falou de gatos por e-mail,
Deve ter-se esquecido de um emoticon
Para subtrair os Carnivora à semiótica fauna.
Indaguei e só surgiram à tona da conversa
O já conhecido llama ou vicuña (Camelidae),
Que tem por ofício na ilha da Lua
Deixar-se fotografar com turistas,
E um tigrillo que também é gato,
Mas não abraçado a outro
Pela cintura
Na mais turística rua
Desse quase reles lugarejo
Cujo nome espelha o da outra Copacabana.
Copa-
Cabanas lhes chamaria não fora o material de construção
Mais evidente ser o burro
Isso, o tijolo, o barro, a seca lama.
Outros típicos Felidae apreciamos
Nos cafés a fazerem companhia
A senhoras sós
Como acontece também no comboio que trepa de
Assuão para o Cairo,
Nocturno e generoso em miados egípcios
Tão semelhantes aos venezianos
Em cantadeiras gôndolas.
O amor perde-se e ganha-se nos vários tons de
Azul-tranquilo
Do altaneiro Titicaca.
Assim admiramos europeias com incas
Machos ao lado
Em perfis esculpidos de condor
Nas esplanadas. O contrário ainda não vi.
O ar sem oxigénio é seco.
Abrasa o calor mas não se transpira.
Trespassam-nos os olhares de índias com nariz de rochedo
Na sua tez morena sem lua. Difícil distingui-las umas
Das outras. Belas raparigas que o amor,
Em sua dimensão maternal,
Transforma em matronas sujas.
Sujas, as saias cor-de-rosa aos folhos, recamadas
De lantejoulas,
O embrulho dos filhos e haveres às costas, a barriga
Inchada.
Baleias com um ridículo chapeuzinho à banda.
Tudo isto me tem causado pesadelos.
Passamos demasiadas horas na cama, penetrando
E deixando-nos penetrar pela carne.
O primeiro
Foi o de me rasgarem o ventre com um punhal.
Vvvvvvvveeeeeeeeeee!!!!!!!!!! Viiiiiieeeeee!!!!!!!
Um som fino a laminar o silêncio.
Aflijo-me em ânsias, gillettes lancetantes,
Antes de agonizar.
Noutra noite sonhei que me estava a transmutar
Num ser viscoso, verde e
Imundo, com tentáculos adesivos
E uma comprida infelicidade de lula.
Sepia officinalis, mais cientificamente.
Se não for Loligo, ou mesmo Octopus vulgaris.
Esses animais sem vértebras
Que escorrem cromatóforos
Deixando luminosos os dedos.
Esta noite sonhei que as pessoas andavam a ser mortas
No metropolitano, em Lisboa. Sonhei isso,
Aqui,
Nestas alturas desgraçadas dos Andes.
Eu ia com outros numa carruagem, deitados no chão, para nos defendermos. Quando o metro começou a andar, um tubo negro preso à parede deslocou-se, dobrou-se como ânfora redonda, e começou a soprar um gás pela boquinha de serpente. O jacto expirado com ruído frio, senti o odor do clorofórmio e gritei que nos estavam a anestesiar. Consegui fugir quando o metro parou na estação seguinte, mas corria pela noite sem ruído e sem dinheiro, sem cartões de crédito e sem documentos, e tinha de empreender uma longa viagem pelas favelas bolivianas até alcançar a segurança de uma casa.
A viagem experimenta o corpo,
O erotismo,
A sexualidade. Porém o espírito, a alma,
O que é feito deles? O que é feito do amor?
Devem estar cloroformizados.
Só o corpo se move nos écrans,
Voga como nenúfar
No azul-absorto do Titicaca.
Abraçado a espáduas morenas de incas
Nas praças, de preferência atlético e sedutor.
A alma foi sequestrada em La Paz
Por um bandido com charme
Que te levou todo o dinheiro
E agora não consegues regressar a casa.
Mais longe, as ilhas flutuantes dos Uros,
Feitas de totora
Aguardam na sombra que as fixem à terra
E alumbrem com luz eléctrica.
Ouve-se a cantiga de um telemóvel
Abafada a estridência no chão de folhas que sussurram.
Os barcos também de junco regressam
Às ilhas redondas de crepúsculo,
Os remos ruce-rucem no azul-cobalto das ondas
A fímbria dos vestidos de baile
Assim: taf-taf-taf-tafetá
Taf-taf-tafetá.
Bolívia e Peru, 2007/Lisboa, 2008 |