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Sersgeisers

Maria Estela Guedes
Geisers

Os três velhos geisers
Quando já ninguém precisa de nós
estamos arrumados

Anónimo do séc. II

Venho da quinta lua de Júpiter

a pé, alquebrada, com um mar geiser entre as pernas

a dar-me água pela barba. E o meu bigode, de guias retorcidas

como cornos de caracoleta, a precisarem de cuidados de beleza.

Amanhã, sem falta, às dezasseis horas precisas,

lá estarei, no salão onde se sabe o que é a estética,

para lhes avivar o tom isabel.

Venho da noite de azebre, cor de betume profundo,

venho de casa do próprio Saturno, o Velho,

o sábio Saturno, onde moram três velhos geisers

enquanto a morte os não levar de autocarro.

Três velhas, duas menos que uma,

uma mais velha que as outras duas.

Estas duas ainda respondem com radiação termal

quando as chamamos, de preferência pelo nome,

e em especial pelo nome colorido, estilo Rosinha.

Sorriem quando viram a corola para nós e

deixam vibrar um pouco as pétalas ruborizadas.

Ou voltam a cara de medronho murcho

para lhes não vermos as lágrimas,

quando vamos embora, antes de expirado o horário de visita.

Não temos conversa para estas donas

sem terra, nem mesmo a terra de ninguém,

os bens passados a filhos, já sem a casa onde moravam

desde o casamento, a casa que viu baptizados e o corpo hirto do marido

num caixão parado na sala de jantar

com gente à volta conversando em voz baixa e limpando

os olhos por convenção a lenços de risca azul-cerimónia.

Faltam referências para as palavras manterem uso comunitário.

Já não é o mesmo espaço que habitamos, com os incidentes

comentáveis de mercado, o preço da sardinha miúda,

as bichas para o médico de família,

a geada que destruiu os gamões da vinha.

Ficam pairando no ar, sem suporte, notícias sobre

gente nova que elas não conhecem,

a Ricardina que se estampou com o automóvel, a Julieta

que deu à luz um menino. Incomodam as palavras que pairam como balões no ar

sem destinatário que as agarre, as faça suas, como pão levado à boca

imediatamente assimilado.

Por isso saímos dali, antes de expirado o prazo, deixando as velhas geisers

ávidas de um gozo prometido e só até meio experimentado.

Seria a hora de romper todos os laços, caso o afecto nos comandasse

e não o protocolo social. Porque já nos custa.

Porque lhes custa ainda mais a eles.

A terceira velha geiser nem se vê, imersa num cogitar

abissal de mantas que a escondem da cabeça aos pés

e o seu embrulho pouco ascende do nível da estreita cama.

Vai pelo meio do Estige, ou do Nilo, na barca de Rá,

pago a Caronte o preço da viagem.

Balouça na barca tal criança que dorme no regaço

morno da mãe, toda envolta no édredon placentário.

A mãe afaga-lhe o corpo, deita-se sobre ela ao comprido.

De tão amada, a velha deixa-se ir suavemente ao sabor da corrente.

Não reage à nossa presença no quarto.

O ar de ardósia em escamas, pesado e escrito

a lápis. O corpo como túmulo, protegendo

o esqueleto da alma. Intervalos de silêncio espesso como lama.

Só nós reagimos. As duas velhas geisers e eu.

Eu que penso. Elas que sentem o meu pensamento a escoar-se

num verde pastoso de petróleo em bruto.

Sentem-se a mais, por não terem préstimo, já ninguém precisar delas.

Sentem a outra a partir na barca, o corpo presente, e a alma ausente,

já na outra margem, brincando em relvados de luz psicadélica

com espíritos alados.

O corpo delas afastado do corpo da moribunda.

A que está a morrer separa-se da necessidade, cumula-se,

finalmente saciada,

abismando-se cada vez mais nos ovários da última noite.

Britiande, 18.01.07
 
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