MARIA ESTELA GUEDES
Marrocos é um dos países do meu afeto. Este livro resulta de todas as viagens que nele empreendi, em especial as três últimas, em 2018 e 2019. Em 2018 comecei a tomar notas na forma de escrita poética – a poesia tem sobre outros géneros literários a vantagem da economia, somos capazes de sintetizar num verso o que em ensaio consumiria meia dúzia de páginas. No Natal de 2019 voltei para ficar apenas em Tânger a organizar as notas e o livro, que então já tinha um certo volume e espessura dramática, em torno de uma personagem mítica, a do rei Artur, D. Sebastião, nomes que nem conheço, pois o messianismo não é exclusivo nem da religião, nem da filosofia, nem da literatura, e também não é espécie europeia. Para minha surpresa, li uma vez um livro de antropologia cultural, assinado por Julio Cezar Melatti, intitulado «O messianismo Krahó». Krahó é uma tribo de índios do Brasil.
Falo então do Messias, do Messias verdadeiro, porque, tal como de D. Sebastião vieram vários, também Messias os há às dezenas, e alguns são bem feios. “O Messias” brasileiro veio depois, ainda nem foi publicado, mas sê-lo-á nos próximos dias.
O Messias de «Esta noite dormimos em Tânger» é uma aspiração. Mesmo não o recobrindo nenhuma divindade, ele tende para o alto, é uma criatura limpa. «O Messias» posterior, o que há de vir ainda, em tempo profano de este mês, esta semana, é uma criatura demoníaca, sem altura nem profundidade, apenas um tipo unidimensional, como diria Umberto Eco: no caso, é apenas o dinheiro a sua dimensão.
Nunca me cansarei de repetir que cristãos, judeus e muçulmanos constituem o Povo do Livro. Por isso tive de deixar por escrito esta minha confissão.
Maria Estela Guedes
09.10.2020
O livro está em pré-venda no endereço da Urutau que, posteriormente, também poderá informar sobre locais de compra:
http://editoraurutau.com.br/titulo/esta-noite-dormimos-em-tanger
Esta noite dormimos em Tânger
Esta noite dormimos em Tânger
Se o furacão Elsa
Permitir que o avião levante voo.
Mas já dormimos antes
Em Tânger
Era mês de Ramadão
Abril ou maio, agora é Natal.
Foges, na esperança de poderes dormir
Num país sem fantasmas de família.
Veremos, veremos…
Nem Allah consegue escapar às verdes folhas
E rubras bagas de azevinho,
Às prendas, ao comércio, à impiedosa exploração.
Quem sabe? Veremos.
E dormimos muito antes
Num remoto passado
Em que Tânger, Alcácer-Seguer
E Arzila mais a sul
E outros pontos perdidos no GPS do fado
Rebrilharam como jóias
Na coroa de Portugal.
Abundam cemitérios junto das estradas
Onde tantos Dom e sem nenhum dom
Henriques, Fernandos
Dormem e sonham
Envoltos que foram no cendal
Ou nem sombra de sudário
Os ossos despejados na vala comum
E mais nada.
MARIA ESTELA GUEDES
Esta note dormimos em Tânger
Pontevedra/São Paulo . Editora Urutau . 2020
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