Essência Feminina Nordestina em nove mais três

 

 

 

 

 

 

MANOELA QUEIROZ BACELAR
Foto: Celso Oliveira


MANOELA QUEIROZ BACELAR . Advogada, Mestra em Direito e Vice-presidente da Fundação Edson Queiroz, mantenedora da Universidade de Fortaleza. Autora de artigos científicos. Palestrante em eventos jurídicos. Publicou os livros: Vovó, Zefinha e eu (infanto-juvenil, 2019) e Tombamento: afetos construídos (2023). Apaixonada pela artes, especialmente pela literatura e pelo exercício do gênero conto.


Essência Feminina Nordestina é um enigmático ponto de encontro. O lugar primordial fixado em folhas de papel onde doze mulheres se reúnem. Nove delas chegam nesse ponto de encontro pelo vento. Elas não estão aqui para nos contar suas jornadas com suas vozes próprias. Valem-se das outras três mulheres, suas irmãs, nossas irmãs, que querem nos falar, que querem abrir as “venezianas cuidadosamente cerradas”, como disse Natércia, para dar voz ao feminino que foi silenciado por ser feminino.

Ouvi dizer que quatro noites por ano, as doze mulheres dançam juntas, iluminadas pela fogueira do onírico.

FOTO ARES SOARES

Jovita, Quitéria, Carlota, Ana, Henriqueta e Rachel. Duas Marias Tomásias e uma Bárbara. Aliás, todas bárbaras. Eis as nove mulheres que nos apresentam suas eras, suas contradições, seus desejos por meio da grafia das outras três, como a ponta de um fio cujo novelo se enterrou no passado.

Apesar da distância temporal que nos aparta, nossas eras, nossas contradições e nossos desejos parecem compartilhar a mesma matriz fundamental da liberdade. A liberdade do outro; a nossa liberdade. Essa utopia concreta que se coloca, ao um só tempo, ao alcance das mãos e a um passo do abismo.

Essas nove mulheres, cujas existências compreendem o grande arco do século XVI ao século XX, viveram nas terras áridas de uma geografia agreste que hoje chamamos Ceará, Piauí, Pernambuco, Paraíba, Maranhão e Bahia. Um locus encantado e também invadido, engolido, ruminado e cuspido.

Viveram as vicissitudes dos seus respectivos tempos: seguiam maridos, perdiam filhos, apaixonavam-se; fundavam movimentos abolicionistas, formavam frentes separatistas; rezavam, alargavam fronteiras do território nordestino; viviam as secas, vestiam-se de homem para guerrear; eram presas, socorriam vítimas em hospitais, estudavam; imaginavam e escreviam. Corriam riscos na colônia, no império e na república. Mulheres à flor da pele.

Viveram uma Pindorama, um pré-Brasil, ou um Brasil que se fazia, que se moldava sob a violência cotidiana do conflito por território, do conflito pela sobrevivência, num mundo onde a produção era assentada sobre o regime de escravização e do comércio de seres humanos. Mesmo Rachel, a única filha do período pós-abolição, vivenciou essa alvorada sombria, que ainda se estende sobre estas nossas cabeças do século XXI.

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Ao ler Essência Feminina Nordestina pude saborear uma espécie de prazer de fundo de alma que se reconforta e se agita à vontade, nesse ponto de encontro de expansão do feminino.

Grecianny, Mônica e Carolina. As três mulheres contemporâneas, professoras desta universidade, pesquisadoras, artesãs da palavra escrita que não temem usar deliberadamente o viés feminino na procura e na construção dessa essência nordestina. Elas sabem que não há outro meio mais genuíno de fazê-lo. O traço feminino que se expressa nas linguagens escolhidas pelas autoras demarca o livro como lugar de reverberação, memória e descoberta.

Grecianny semeia pacientemente o papel por meio de diários e narrativas íntimas em primeira pessoa que, aliadas a um trabalho investigativo, dão corpo analítico aos recortes temporais vividos pelas personagens de Maria Tomásia Cardigo, Maria Tomásia Figueira Lima e Carolina Carlota Cordeiro. Ela semeia como Deméter e nós colhemos.

Mônica, assim como Diana, carrega com elegância sua aljava e lança ágil suas flechas em forma de palavras exatas e apaixonadas, para falar como Bárbara de Alencar, Jovita Feitosa e Maria Quitéria de Jesus. Ali temos a certeza de que o tempo de caçar é uma janela que se abre e que se fecha como um relâmpago.

Carolina borda seu texto poético, celebrando sua linhagem artística. Uma Calíope que nos coloca sobre um cavalo alado ao lado de Ana Néri, Henriqueta Galeno e Rachel de Queiroz. Na última frase do livro, Carolina arremata em fecho telúrico as tantas Racheis que nos habitam, um sussurro tão lírico quanto sintético, que só às mulheres é dado conhecer por inteiro:

“balbucio ao mundo: não me deixes”

O prefácio de Natércia Sampaio e a capa de Côca Torquato reafirmam a beleza do livro e a sutileza de uma estética feminina que nos encanta e nos fortalece o corpo, a mente e o espírito.

Essência Feminina Nordestina é o ponto de encontro onde doze mulheres se permitem existir sem medo, onde doze mulheres se permitem falar sem pudor; onde doze mulheres se permitem banhar nas águas do Rio Oxum.

Essência Feminina Nordestina é o ponto de encontro onde doze mulheres nos ensinam a buscar nossos nortes nos nossos nordestes, quantas vezes forem necessárias; quantas vezes quisermos…porque somos livres.