Somos um corpo, somos a consciência do nosso corpo,
somos a relação que o corpo estabelece com a correnteza de outros corpos,
com a alteridade elevada ao grau de uma Civilização egomaníaca. O Espírito
é o corpo vencido pelo pudor, é a vergonha da Identidade conformada ao
jogo inalienavelmente selectivo, cruamente competitivo, é a insubmissão à
mortalidade, ao atrito que o tempo amolda à (des)estrutura, à entropia que
a dialéctica submete ao Ego outrora (visto como) inquebrantável. O
Espírito é o "Eu" potencializado, imortalizado, elevado ao expoente
Divino, pelo pequeno grande ser, pelo carisma do Sábio, pela Instituição dos Valores a querer
gorar a possibilidade do seu próprio eclipse. O Espírito é o etéreo
recalcamento do que pretende sobrepor a matéria prima e subtil à
substância grosseira e arenosa, é a justaposição da qualidade mental à
inqualidade física, a aposição do Sentimento, da Consciência e do Valor à
rudeza de um corpo vicioso, por demais assustador, capaz de toldar o
juízo, de fenecer a decisão racionalizada. O corpo assusta, implica-nos
nas trevas familiares, palco em que o inesperado se possibilita, em que o
controle é gorado pela ordem da submersão. O Espírito potencializa a
efemerização desse palco telúrico, a consubstanciação da Forma subtil,
imensurável, eternizada ou quase eternizada por uma corrente
transmigratória, com esta a querer ser igualmente vencida e transtornada
pelo retorno ao Espírito puro, Uno, inefável e incognoscível. O Espírito
alivia a carga dialéctica, como se, de algum modo, a dinâmica inerente à
dualidade, com o inacabável das suas turbulências, passasse por
excrescência indigesta, inútil ao objecto meditativo, focalizador,
diluidor das oscilações da materialidade dinâmica. Ele é a esperança de
uma vida despojada de Sentido, Ele é o embalo de uma existência dissolvida
no lamento, Ele é a promessa de uma Utopia, Paraíso inalcançável na Terra
(e, na verdade, em qualquer outro sítio), Unificação repleta de prazeres
eternizados, infelizmente não percepcionados como outra efeméride... O
Espírito equilibra, aproxima, dilui as condições, as desigualdades
epigenéticas, as próprias distensões culturais; põe tudo em COMUNicação,
aproxima e simboliza o que parece insintetizável.
Não é por demais de espantar que assumir que o Espírito
é uma construção feita à imagem do corpo, do Inconsciente Colectivo
(tornado Consciência Colectiva), acabe por mover tamanhas resistências. E
também não é de espantar que exista tamanha oposição face à ideia de que
os Valores são construções humanas, projecções psico-teo-maníacas. Retirar
ao Homem a sua própria Ilusão de um Sentido pode ter efeitos devastadores.
Frustrar ao Homem a sua própria Eternidade, pode também doer muito. Até
porque milénios de condicionamento religioso, incluindo a prisão
cartesiana, terão enformado uma civilização fortemente arreigada pela
Ideia de uma Moral categórica, axial, Universal. Contam-se pelos dedos os
filósofos que aceitam a verdade do relativismo radical. E mesmo estes
reconhecem o perigo, senão a Culpa, de tal aceitação. Não admira que o
próprio objecto corpóreo mova tais energias repressivas, tal intento
castrador, culpabilizador. O nosso "complexo de castração" tem milénios de
idade, tal como o complexo dos que nos educaram e socializaram. É o mesmo
tipo de complexo que urge limitar o nosso movimento de aceitação da
verdade de que toda a Ética é corporeamente baseada, materialmente
condicionada. Curiosamente lá chega o dia em que nos perguntamos: a Ética
é o corpo, e daí? Significará isto que passarei a ser menos ético, um
portento de imoralidade? Podemos saber tudo sobre a fisiologia do aparelho
cognitivo-moral sem que isso tenha qualquer tipo de implicação no nosso
comportamento. Recusar a Verdade, isso sim, parece-me pouco "espiritual".
Isto assumindo mais uma vez que a Espiritualidade tem menos a ver com o
Uno hipermoral do que com o Uno Epistémico...
O corpo, as suas sensações, a sua dinâmica, os seus
fantasmas, os seus símbolos, a sua linguagem, a sua intencionalidade, tudo
isto é Corpo físico, e tudo isto é, ainda assim, Espírito, não entendido
como tal por muitas construções espirituais que, mesmo assumindo-se muitas
vezes como monistas, continuam, na prática, a reificar a solução de
continuidade Corpo vs. Espírito. Por vezes, o radicalismo "espiritualista" ganha
contornos de dogmatismo, em que os supostos "iluminados", de tanto
quererem ver "Luz", acabam por divisar apenas a imagem da sua própria
Ilusão. Ignoram estes "iluminados" que, ao seguirem acriticamente as
pistas que um certo Cânone terá (re)criado, acabam por ser o que menos tem
a ver com seres tocados pela "Luz", porque a qualidade "luciferina" não é
algo que possa surgir de forma mediada, e é também por isso que a maioria
das religiões e das mestrias espirituais mais aprisiona os seres num
processo PATERnalístico, do que os torna auto-conscientes, espiritual e
filosoficamente auto-suficientes. Pessoalmente não sei por quem destilo
maior aversão: se é pelos seres que estão presos à Idade dos Deuses, se é
pelos que se deixaram apresar pelos Deuses da modernidade tecnocrática. E
lembremos que, só para mais uma vez antevermos como tudo isto é "humano,
demasiado humano", há características em comum entre os prisioneiros das
duas Idades da ilusão (Pater e Mater): a falta de autonomia reflexiva, a
auto-ilusão de Conhecimento e Liberdade, o défice de "desilusão" face à
Verdade de que "tudo é Relativo" e de que "todo o conhecimento é
auto-conhecimento" (e, convenha-se, todo o "auto-conhecimento" é a prisão
que o próprio 'Eu' conforma ao mesmo 'Eu'), a meritocracia evolutiva, a
ambição pelo desenvolvimento (e por que não ambicionar somente
Ser, sem querer
ser mais do que o Ser,
seja lá o que "Ser" for, e
ignorando que para se Ser é
preciso o Tornar-se?), a
obsessão pelas Leis, pelo "Absoluto", pela regularidade, entre outras.
Pater ou
Mater, o Homem quer o movimento, quer a evolução, quer atingir um
ponto diferenciado do inicial, como se a "estática" implicasse a própria
morte (e há ainda o medo profundo da andrógina
Indiferenciação, como se o seu alcance não implicasse, também ela, a
suprema segurança primaveril, a certeza do Princípio). O corpo demanda a
acção, a satisfação das necessidades, e o Espírito é um corpo gigantesco a
ousar titanicamente a superação da relatividade para alcançar o ponto
permeado pela eterna insatisfação, com esta a poder ser frustrada somente
no momento em que o Nada é incorporado pela morte redentora, pelo regresso
ao Princípio conciliador. E o Princípio requererá nova temporalidade, nova
involução relativizadora. E o Eterno Retorno promete (con)firmar-se, e a
Verdade mais pura é a de que Nada tem sentido, tudo é vão, toda a acção
equivale à não acção, o bem e o mal igualam-se nos termos de um eixo de
equilibração afixado pelo Princípio. Mas o corpo tem a demanda. E somos
compelidos à acção, determinados pela Fortuna à crença numa evolução e à
ilusão da Consciência e da Liberdade. É o próprio corpo que determina a
sua própria ilusão. É o próprio corpo que determina o Espírito que quererá
fazer denegar a existência do próprio corpo. É o próprio corpo que
determina a Civilização que quererá fazer desaparecer os pilares da sua
própria superação, incluindo a saúde do húmus ecossistémico. É o próprio
corpo que determina o movimento permanente, a crença - sim, a Crença!! -
de que podemos ser livres, quando, na verdade, usamos o mesmo corpo para
nos livrarmos do corpo, na ilusão de que "seremos" livres, quando, para
"sermos livres", já não podemos "ser", porque a coisa que existe, se
existe por causa de outra, de um impulso, dum movimento, já não é ela
mesma, senão a sua quimera, e a ilusão do seu conhecimento, a ilusão da
"sua" (?) liberdade. É livre somente o que já Não É, a poeira cósmica na
eterna navegação quântica, "quântica" na nossa escala, quiçá matéria
grosseira e densa numa escala diferenciada, porque, nada é o que É, tudo é
"em relação" a algo, tudo é "em escala", "em perspectiva", e é por tudo
isto que as nossas tão certeiras afirmações não podem deixar de provocar o
sorriso de quem tenha um nível de consciência microscopicamente superior,
é por isso que somos tão pequenos, de tal modo inúteis, verdadeiramente
toscos na nossa risível intenção de nos libertamos, de nos
endeusificarmos, quando o Deus que projectamos (querer) ser nada é na
mudança de escala ou perspectiva. E é por isso que eu, ser menor,
estupidamente convencido de que tenho um ou dois graus a mais de
Consciência, saio daqui, deste aforismo com que pretendo gravar a minha
estúpida e inútil imortalidade, e vou voltar à vida "prática", cheio de
"certezas", de tarefas, projectos, e eventualmente não pensarei sequer em
pôr um termo a toda esta idiotia... porque o Corpo não deixa, porque o
instinto fala mais alto, porque a ilusão do sonho continua a ter
prioridade,
e eu a pensar que, ainda assim, mesmo dentro do sonho,
tudo isto é Verdade em si mesmo, e é por isso que não apago o que escrevi,
porque continuo a querer gorar a noção de que sou
escravo do desejo, escravo da intenção, escravo da ilusão,
a Consciencialização é "anti-natura", ofende o
instinto, ofende a indigência de conservação,
e eu a continuar a escrever, sempre embutido, absorvido
pela Ilusão...
e eu a querer libertar-me do próprio acto de escrita, a
querer extinguir a dúvida,
mas o corpo quer mais, a ilusão quer mais, ela devora
por dentro e por fora,
o Espírito é como o homem do dinheiro, o homem das
guerras, quer sempre mais, a obsessão quer sempre mais,
é inútil toda a tentativa de resistir; o pensamento, a
obsessão, a dialéctica, querem sempre mais, o corpo demanda, o corpo
embriaga,
e eu a querer sair de dentro de mim mesmo, a quer
largar o corpo e a obsessão, largá-los face à quimera da Liberdade, mas,
onde Essa está eu não estou, ninguém está, senão o Nada, e aí já nada fará
sentido, porque não estou lá eu para dar ao Sentido a Consciência que ele
merece.
E, finalmente, quando o pensamento conquistar a ilusão
da sua própria quietação, sairei daqui contente, relesmente feliz,
quimericamente feliz, satisfeito na minha ilusão de completude, e eu a
pensar, por breves momentos, que essa sensação de apaziguamento é qualquer
coisa a que se possa chamar "felicidade", e já a "felicidade" quer trazer
a "Liberdade" na sua asinina e mordaz trela, e já a projecção da efeméride
preludia o novo Princípio, renovada dialéctica, nova peregrinação, nova
ascensão, nova Ilusão (des)iludida, nova busca de iludida felicidade,
sensação de preenchimento, e este é toda uma revolução endócrina, hormonas
que digladiam o trono celeste, neurotransmissores a permearem-se e a
fazerem-se pensamento, e este a ser divino, o átomo de um divino maior,
e a máquina não pára, a máquina quer sossegar, quer a
certeza, o Eterno, quer que o Eterno crie a máquina que o criou, e pensar
o contrário é ter a Culpa a enformar a dúvida e a dúvida a puxar certezas
e as certezas a quererem o Eterno e o Eterno a querer o homem feito à sua
imagem.
E parar? É a solução? Matarmo-nos, despirmo-nos do
Destino... Rejeitar o caminho e a dialéctica. Porque todo o caminho é
"luta", todo o caminho é ofensivo, porque quando o corpo fala, o bem
próprio, o outro é fendido, o mal alheio. Mas escaparmo-nos da aventura?
Por que deixar que sejam só os outros a poderem embriagar-se com a ilusão?
Sejamos a Ilusão, sejamos o corpo, sejamos poetas, livres, não livres,
tanto faz, sejamos sensação, embriagação, sem Culpa, e esqueçamos que
mesmo isto é a ilusão que o corpo conquista.
|