Voz do
Silêncio |
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BENTO DOMINGUES, O.P. ............................Público, Lisboa, 9.1.2005 | |
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1. Alexandra Prado Coelho falou com crentes de cinco religiões acerca da tragédia da Ásia. Nenhum dos interrogados atribuiu o maremoto a um castigo divino (cf. PÚBLICO, 5/1/2005). Ainda bem. O silêncio e a solidariedade, perante uma catástrofe de tal dimensão, são as únicas atitudes que respeitam a transcendência de Deus e a dignidade dos seres humanos. Até há poucos anos, os mestres do egoísmo, solidamente instalados numa confortável apologia da finitude, defendiam que gozar a vida no máximo dos seus prazeres era o único sentido que a existência humana podia ter. Para este culto da finitude bem sucedida bastava a imersão na corrente da vida de uma natureza generosa. Qualquer alusão a um mundo de infelicidade ou a sinais do sagrado, a interrogações de pendor metafísico ou religioso eram restos de superstições condenadas a desaparecer. Acontecimentos inesperados obrigam-nos a parar e a escutar a voz do silêncio. É preciso ir mais longe e mais fundo do que as solidariedades pontuais, por mais urgentes e indispensáveis que elas sejam. A catástrofe não foi um castigo de Deus, mas pode ter sido o castigo da falta de preparação e equipamentos para escutar os sinais da natureza (cf. Costas Synolakis, PÚBLICO, 2/2/2005). 2. Não se ganha nada em instrumentalizar ou em esquecer a religião. A explosiva situação actual exige novo discernimento. Conta Frédéric Lenoir, director de "Le Monde dos Religions", que nos finais dos anos 80 do século XX, quando começou a trabalhar no meio editorial e na imprensa, o fenómeno religioso não interessava ninguém. Hoje, de múltiplas formas, a religião invadiu os "media". O século XXI está a configurar-se sob a influência crescente do "facto religioso" com duas expressões de carácter muito diferente: uma resulta do abrupto despertar identitário e a outra situa-se no âmbito da busca de sentido. O despertar identitário atinge as dimensões do planeta. Nasce no confronto de culturas, de novos conflitos políticos e económicos que mobilizam a religião como emblema e bandeira de um povo, de uma nação ou de uma civilização. A procura de um sentido para a vida desenvolve-se sobretudo no Ocidente secularizado. Os indivíduos ultramodernos instalados na finitude e consolados de iguarias terrestres foram sempre uma minoria. Os outros viviam das promessas da ciência e da política embarcadas na ideologia do progresso. Nem todos conseguem iludir as perguntas sobre a origem, o sofrimento e a morte. As grandes tradições sapienciais, religiosas, místicas e esotéricas são, de novo, revisitadas e interrogadas. A linguagem mítica, simbólica e ritual retomou o seu fascínio. F. Lenoir observa, com argúcia, que o despertar religioso, nas suas duas vertentes - a identitária e a espiritual -, evoca a dupla etimologia da palavra religião: recolher e religar. O ser humano é um animal religioso porque tem o olhar voltado para o "céu" e questiona o enigma da sua existência. Recolhe-se no silêncio para escutar e acolher os seus apelos. Mas também é religioso quando procura ligar-se aos seus semelhantes através de um laço sagrado suspenso de uma transcendência. A dupla dimensão do fenómeno religioso - a vertical e a horizontal - existe desde a aurora dos tempos. A religião foi um dos principais fermentos do nascimento e do desenvolvimento das civilizações. Produziu realidades sublimes: a compaixão activa dos santos e dos místicos, as obras de misericórdia, as mais sublimes expressões artísticas, valores éticos universais e até o brotar das ciências. Mas na sua versão endurecida e pervertida alimentou e legitimou guerras e massacres. O próprio extremismo religioso revela-se em duas vertentes. O veneno injectado na dimensão vertical é o fanatismo dogmático ou o irracional delirante. É a patologia da certeza que pode levar os indivíduos e as sociedades a todas as loucuras em nome da fé. O veneno injectado na dimensão horizontal é o comunitarismo racista, a patologia da identidade colectiva. A mistura das duas doenças resultou na caça às bruxas, na Inquisição, nas guerras de religião, no assassinato de Itzhak Rabin, no 11 de Setembro e na Guerra do Iraque. Perante as ameaças que elas representam, alguns observadores e intelectuais europeus são levados a confundir as religiões com as suas deformações e acabam por ampliar aquilo que pretendem combater. Frédéric Lenoir tem razão: não se poderá vencer o extremismo religioso sem reconhecer o valor positivo e civilizador das religiões, aceitando a sua diversidade. Mas é igualmente preciso ir à raiz dos males que explicam o sucesso actual da instrumentalização terrorista e política do fenómeno religioso: as desigualdades Norte-Sul, as dimensões monstruosas da miséria e da injustiça, o desprezo das identidades. São precisos mais de três minutos de silêncio para escutar a voz misteriosa da natureza, dos homens e de Deus. O ser humano é o único animal capaz de compaixão, de solidariedade e de conversão. O encontro ecuménico de Taizé - um dos maiores acontecimentos europeus aberto ao mundo realizado em Lisboa - revelou no longo silêncio, no canto, no diálogo de povos que ainda recentemente se guerreavam, que onde aumenta o perigo, pode crescer a salvação. Hoje - na festa do Baptismo de Cristo - o céu proclama o seu amor pela terra (cf. Evangelho de Mateus, 3,13-17). |
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