Perguntas
Sobre o Terrorismo

 

BENTO DOMINGUES, O.P. ..............................Público, 28 de Março de 2004

1. Consta que os animais irracionais têm respostas, mas não fazem perguntas. Não sei se isso é totalmente verdade. Os seres humanos enganam-se quanto evitam as perguntas incómodas.

Onde terá falhado a guerra contra o terror islâmico? Nos EUA a discussão está a aquecer. A turbulência no Afeganistão continua. Apesar de todos os esforços e das astronómicas ofertas para entregar Bin Laden, "vivo ou morto", nas mãos de G. Bush, antes das próximas eleições, esse resultado ainda não está garantido.

Um ano depois da guerra contra o Iraque, a controvérsia que a provocou desdobra-se continuamente. E depois de tantas mentiras, já nem se consegue saber se ela se inscrevia na luta contra a rede terrorista Al-Qaeda, se tentava livrar-nos da ameaça das armas de destruição maciça ou se procurava apenas disponibilizar despojos económicos para as grandes empresas norte--americanas, com alguns restos a distribuir pelos aliados, lançando bases seguras do império naquela zona.

O pântano de horrores no Iraque e a matança de Madrid parecem indicar que esse caminho, por enquanto, só favoreceu o roteiro da loucura.

Mas quando Sharon, depois de tudo o que já fez, ordena o assassinato do xeque Ahmed Yassin para secar a fonte terrorista do Hamas - e Bush nem o impediu nem o condenou -, isto significa que o assassinato, o terrorismo, tornou-se um valor inscrito nesses Estados ditos democráticos. Por estas e outras indicações, Bin Laden, Al-Qaeda e o Hamas conseguiram resultados assustadores: corromperam publicamente os seus maiores inimigos.

A metafísica sobre o terrorismo da Al-Qaeda sustenta que este visa destruir a universalidade dos nossos valores: a vida, a liberdade, a razão, a modernidade, a democracia, os direitos humanos, em suma, a civilização ocidental, para impor a cultura do ódio, da violência e da morte. Que terá acontecido para realizar esse objectivo tão rapidamente?

2. Seria importante, no entanto, prestar alguma atenção à entrevista, aparentemente ingénua, que o rei da Jordânia, Abdallah II, no passado dia 23, deu ao diário italiano "Corriere della Sera", sobretudo quando, em vários países, cresce uma onda de islamofobia bastante primária.

Ele não nega que os extremistas procuram criar conflitos entre o Oriente e o Ocidente e provocar guerras inter-religiosas. Mas para o monarca, o verdadeiro conflito trava-se no interior do próprio islão. O primeiro objectivo dos islamistas extremistas não é a destruição do Ocidente, mas a do islão moderado. Querem tomar o poder. A Europa seria, na perspectiva de Abdallah II, apenas um objectivo secundário. Ao procurarem enfraquecê-la, pretendem, no interior da comunidade internacional, influenciar o futuro do próprio mundo muçulmano.

Pensa, por outro lado, que o assassinato do xeque Ahmed Yassin apenas servirá para incrementar a violência: será uma história sem fim de represálias e contra-represálias. Resta uma única esperança: que os espíritos razoáveis e responsáveis redobrem os sues esforços para apaziguar o conflito e abrir de novo a porta do diálogo.

Esta mansa entrevista levanta a pergunta: conhecemos o mundo islâmico em todos os seus cambiantes? Não será perigoso deixar que as comunidades muçulmanas se desenvolvam, na Europa, de forma paralela, sem convívio com as outras comunidades? Que fazer para que não se sintam ameaçadas nem sejam encaradas como uma ameaça? Como conjugar as afirmações identitárias - sejam quais forem as opiniões que se tenha acerca do multiculturalismo - com uma cidadania europeia assumida a partir de cada país europeu? Que caminhos para o intercâmbio entre as culturas islâmicas e as outras culturas que se afirmam na Europa?

3. Tudo isso é, sem dúvida, de primeira importância. Mas a minha questão de fundo não é só com o terrorismo que atingiu Nova Iorque e ensanguentou Madrid. Essa barbárie toca nas próprias bases das nossas sociedades e levanta em todos a capacidade de resistência ao mal. Desperta deveres e atitudes, impõe a vigilância por si e pelos outros: qualquer um de nós podia estar entre as vítimas. Na luta contra este tipo de terrorismo os próprios governantes e oposições arriscam o seu futuro.

Mas existe um outro terrorismo - que pouco ou nada tem a ver com esse - promovido por governos, exércitos, bancos, empresas nacionais e multinacionais, organizações, pessoas e grupos plenamente identificados que, a céu aberto, por omissão e acção, degradam a natureza, provocam epidemias, mergulham na pobreza, na doença, na fome e na morte grande parte da população mundial.

Todos sabem que esse terror vai continuar sem grandes protestos e a quase totalidade dos seus autores nunca será julgada. O mais assassino de todos os terrorismos anda à solta e o Ocidente tem responsabilidade nesse crime.

Esperemos o milagre: que as principais empresas de comunicação social do mundo acordem um dia viradas para esse escândalo e não o larguem enquanto não mudar a direcção do mundo.

Para já, honra e louvor ao PÚBLICO. Desde o domingo passado, com o "dossier" sobre a pobreza em Portugal e, no dia 24, com a divulgação do relatório da Global Witness sobre as contas do Presidente de Angola, José Eduardo dos Santos, e seus "protegidos" - contas que podem afectar o nome de Portugal -, mostrou que a imprensa pode recusar a pouca-vergonha.