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BENTO DOMINGUES, O.P. ...................................................O Público, Lisboa, 21 de Março de 2004 | |
1. Como diz o provérbio, "os loucos precipitam-se em terrenos que os anjos receiam pisar". A invasão do Iraque, em termos de combate ao terrorismo internacional e como início do roteiro para a paz no Médio Oriente, revelou-se um desastre. A resolução do conflito sangrento entre Israel e a Palestina - como sinal positivo para um relacionamento de cooperação económica, de segurança, de diálogo cultural e religioso com o mundo árabe e os países muçulmanos - deveria ser um pressuposto obrigatório e não um possível termo de cálculos fantasiosos. Por razões óbvias, seria na superação concreta do conflito israelo-palestiniano que os EUA - apoiados nas várias resoluções da ONU - podiam mostrar o que vale a sua diplomacia e a sua autoridade. Na mensagem para a Quaresma, o patriarca latino de Jerusalém, Michel Sabbath, verifica, desolado, que "os responsáveis da guerra neste país parecem agir como se planificassem uma guerra permanente. (...) A paz não pode ser restabelecida enquanto dura a opressão e a violência que dela decorre. Privar um povo da sua liberdade e da sua terra é uma opressão que nenhuma consciência pode aceitar, como também nenhuma consciência pode aceitar que se matem os inocentes para protestar contra a opressão. Somos duas vezes vítimas da guerra: vítimas da demolição material e vítimas do ódio que destrói a pessoa humana palestiniana ou israelita. Ninguém é melhor do que os outros quando se transforma em portador do ódio e da vingança". 2. A rota do petróleo e do império desenhada pela Administração Bush impôs outra lógica. Mas a extraordinária capacidade de despejar bombas pelo mundo não basta para fazer amigos. Cria um ambiente de ressentimento no qual os fundamentalistas se movimentam à vontade e onde podem recrutar cada vez mais suicidas. A Europa e sobretudo a Europa do Sul - embora sempre no âmbito do esforço da unidade europeia - deve mostrar-se mais atenta aos seus vizinhos mais chegados. Não para recomeçar as cruzadas contra o islão, mas, como escreveu na "Visão" Diogo Freitas do Amaral, "para nos defender do terrorismo dos fanáticos e abrir um diálogo fecundo com os árabes moderados - que os há, e muitos. Bin Laden anda à procura do 'inimigo cristão'; a Europa unida deve começar rapidamente à procura do 'amigo árabe'. É toda a diferença entre os terroristas e os democratas". O mundo tornou-se um pesadelo, um "mundo cão", como lhe chama Mário Soares na citada revista. No Génesis, a Bíblia apressou-se a declarar que a culpa não é de Deus. Ele criou o mundo como hino de alegria. Na ressurreição de Cristo, abriu o caminho para que o homem volte a sonhar com novos céus e nova terra, a viver a interminável história de Deus no mistério das criações humanas, a testemunhar a divina indignação perante o sangue inocente de Abel e a recusa da lógica da violência contra Caim, o assassino. Enquanto um ser humano não se puder sentir em casa em qualquer parte do mundo, continuaremos expulsos da terra, longe do céu, ameaçados por "habitantes de outros planetas" que teimamos em construir no espaço que nos foi dado para dele cuidarmos como jardim de todos, mas no qual o próprio nome de Deus é usado para derramar sangue de inocentes. É por aí que o diálogo inter-religioso deve começar. Não basta que os dirigentes destaquem a incompatibilidade dos princípios das respectivas religiões com a violência. Se elas não se tornarem escolas de paz e ambientes de transformação dos seus membros em apóstolos da reconciliação universal - não só por palavras e obras, mas por uma mudança interior operada na oração transfiguradora -, tudo acabará em exibições de folclore. 3. Precisamos de ir ao fundo que nos liga uns aos outros e a Deus, acolher as sabedorias que podem alumiar o caminho de todos. A política não é tudo. Miguel de Unamuno, vendo aquilo em que ela se pode tornar, confessou: "De dia para dia acredito menos na questão social, na questão política, na questão moral, e em todas as questões que as pessoas inventaram para não terem de enfrentar resolutamente a única questão real: a questão humana. Se a não enfrentarmos, tudo o que nos limitamos a fazer é produzir um tal ruído que simplesmente não a podemos ouvir." Mas a questão social, política e moral pode ser abordada numa perspectiva que não só nos convoque para essa interrogação central, sem subterfúgios nem mistificações, como fazer dela a nossa quotidiana tarefa espiritual. Nesta Quaresma, a Comissão Nacional de Justiça e Paz escreveu uma espantosa "Carta aos Cristãos", às suas comunidades, organizações e movimentos, mas que merece a leitura atenta de todos os homens de boa vontade. Pode ser procurada em htt://cnjp.ecclesia.pt. Não é mais uma opinião sobre a situação deprimente em que o país se encontra, aparentemente resignado a só discutir futebol e a dizer, nas sondagens, que o Governo não presta. Também não é só um olhar implacável sobre a situação do país aberto ao mundo, sector por sector, para mostrar que não nos podemos conformar com os modelos sociais, económicos e comportamentais que engendram desigualdades incríveis, fomentam a exclusão social e a degradação da vida pessoal e familiar. É sobretudo um grande texto de espiritualidade que rompe com a resignação pós-moderna perante várias formas de terrorismo económico e social. Um texto para tornar possível a esperança. |
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