SANTOS
E ASSASSINOS

 

 


BENTO DOMINGUES, O.P. ...........................................Público, Lisboa, 31.10.2004

 

 

1. Amanhã é a festa de Todos os Santos. Santos inocentes e convertidos, cristãos e pagãos, casados e solteiros, crianças e adultos, canonizados ou apenas reconhecidos pela aclamação popular.

Santos amados por todos, como S. Francisco de Assis, e santos que só Deus conhece. Podem surgir em todos os tempos e lugares, dentro e fora das religiões. São apresentados como obras de arte divina na fragilidade humana. Tornaram-se os seres mais bem-sucedidos, mesmo quando tudo lhes correu mal. Agora, na Igreja Católica, são levados aos altares apenas os seleccionados pelo Vaticano. Mas todos os que fazem da vida um dom de pura gratuidade são a alma do mundo. Não são o resultado do progresso, nem acasos da evolução. São frutos da graça e da liberdade que encontraram a sua morada na alegria de Deus. Como diz Immanuel Kant (1724-1804), essa «é uma felicidade que a razão nem sequer ousaria desejar, mas que a revelação nos ensina a esperar firmemente confiantes» (1).

Foi em dois poetas que o grande filósofo encontrou a linguagem para a evocar: «Quando este mundo estiver mergulhado num segundo vazio; / Quando do próprio Universo apenas restar o lugar; / Quando ainda muitos céus, iluminados por outras estrelas, / Tiverem terminado o seu percurso; / Tu permanecerás tão jovem como agora, também distante da tua morte. / Também para todo o sempre, como hoje» (Von Haller). «Quando a natureza faltar, e o dia e a noite / Deixarem de partilhar a Tua Obra, / O meu coração eternamente agradecido, Senhor, / A Tua bondade adorará por toda a eternidade, a Ti / Elevarei um canto rejubilante, / Porque a eternidade é demasiado curta / Para exaltar as tuas glórias» (Addison).

2. Os santos sabem que o corpo é o lugar do prazer, do sofrimento e da salvação. Não é por acaso que o culto dos santos surgiu no séc. II, a partir do culto dos mártires. Celebrava-se o seu nascimento eterno com o banquete eucarístico sobre as sepulturas dos que tinham preferido «perder o corpo a perder a alma», ser mortos a matar.

A Igreja Anglicana colocou as imagens de alguns "mártires" do séc. XX na famosa Abadia de Westminster em Londres. Figuram, entre eles, o bispo católico D. Romero, o pastor afro-americano Luther King e o protestante alemão Dietrich Bonhoffer. São figuras conhecidas. Mas Andrea Riccardi, especialista de História Contemporânea na Universidade de Roma e presidente da Comunidade de Sant'Egídio, escreveu um livro inesperado sobre os extermínios colectivos e o martírio individual dos cristãos do séc. XX (2). Ele próprio confessou o seu espanto:

Entrei no grande arquivo da Comissão dos Novos Mártires, onde foram reunidas cartas, comunicações, memórias, que, nestes últimos anos, chegaram a Roma vindas de todas as partes do mundo. Comecei a folheá-las. São cartas, testemunhos, relatórios das conferências episcopais. Mas são também memórias de congregações religiosas.

Li-as apaixonadamente. Existiam milhares de histórias de homens e mulheres contemporâneos: cristãos mortos só por serem cristãos. Sob os meus olhos, desfilavam as páginas da perseguição religiosa na Rússia, em 1917, as histórias das vítimas do nazismo, aquelas outras de inúmeros missionários, os acontecimentos da vida dos cristãos mortos em todas as partes do mundo. Alguns são conhecidos, como é o caso de monsenhor Romero, arcebispo de S. Salvador, morto em 1980. A maior parte é desconhecida.

Parecia-me que não conhecia bem este aspecto da vida da Igreja do século XX. Não podia dizer que ignorava a história de tantas perseguições e sofrimentos, mas não me tinha dado conta de quanto era extensa e profunda. Não me tinha apercebido da amplitude e da complexidade das suas vicissitudes. Não é apenas a história de um qualquer cristão corajoso. O número de cristãos mortos, ao longo do nosso século, é da ordem das centenas de milhares.

3. Olivier Clément - teólogo fiel às Igrejas do Oriente Ortodoxo - no guião que escreveu para a "Via Sacra" do Coliseu de Roma, em 1998, acaba por nos implicar na história da violência: «Seja crucificado! Este grito, multiplicado pela cegueira da multidão - estranha liturgia de morte - ressoa ao longo da história, ressoa ao longo do século que acaba: cinzas de Auschwitz e gelo do Gulag, água e sangue dos arrozais da Ásia, dos lagos de África, paraísos massacrados. Tantas crianças rejeitadas, prostituídas, mutiladas. Ó não, não o povo hebraico por nós durante tanto tempo crucificado, não a multidão, que prefere sempre Barrabás, aquele que retribui o mal com o mal; não eles, mas nós, todos nós, porque somos todos assassinos do amor».