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BENTO DOMINGUES, O.P. ......................O PÚBLICO, Lisboa, 2 de Maio de 2004 |
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1. Na abertura da festa do livro em Barcelona, José Saramago mostrou-se pessimista: "Não sei se a espécie humana tem solução. Começo a pensar que não." A mim parece-me que o pior de tudo seria precisamente que a espécie humana tivesse solução. Quem pensa que tem a fórmula perfeita para resolver os problemas de um país, de um povo ou da humanidade prepara o desastre. Os grandes criminosos da história do séc. XX - Hitler, Lenine, Estaline, Mao, Pol Pot, etc. - julgavam-se ao serviço libertação da humanidade e, por isso, legitimados para destruir os seus inimigos. Daí que seja um imperativo ético procurar dissolver as ideologias religiosas ou laicas que se julgam depositárias da salvação universal. Chegamos agora ao delírio de "impor a guerra para impor a democracia". Significa que nos deixamos vencer pela lógica do terrorismo. No terrorismo contra o terrorismo celebra-se o eclipse da ética e da política. É preciso denunciar o mito da eficácia da violência para fazer a paz. Há, por vezes, urgência em intervir para separar beligerantes ou para impedir genocídios. Sem esquecer o aviso de Péguy: até na declaração dos direitos do homem há matéria para fazer a guerra a todo o mundo durante todo o tempo. O verdadeiro crime contra a humanidade está em acção por todo o lado. Não só nos teatros de guerra. Hannah Arendt foi ao fundo da questão: as sociedades contemporâneas tendem a tornar os seres humanos supérfluos como seres humanos. 2. Nas suas notas de 1940, M. Heidegger - o filósofo mais estudado e comentado do séc. XX - escreveu: "Sendo o homem a mais importante das matérias-primas, pode-se supor que um dia sobre a base das investigações dos químicos contemporâneos serão construídas fábricas para a produção desta matéria-prima." É esta a solução preparada para a espécie humana? Em 1996, M. Heidegger, no decurso de uma entrevista televisiva, deixou cair uma frase enigmática: "Só um Deus nos pode ainda salvar." Serviu de título à entrevista publicada no jornal "Der Spiegel", dez anos mais tarde. Espantou muitos devotos do grande filósofo: então passou a vida a filosofar da forma mais rigorosa, a dialogar com os maiores filósofos, a comentar a sentença fúnebre de Nietzsche - "Deus morreu"-, a combater aquilo a que chamou "ontoteologia", para acabar mergulhado em piedosos pensamentos como os de qualquer "beato"? Bernard Sichère (1), filósofo e romancista, observa que esta declaração de Heidegger é um horror para nietzscheanos, espanta os ateus, irrita os anticlericais, torna nervosos os racionalistas impenitentes, enfurece os fenomenólogos, deixa indiferentes os antimísticos e os menos hostis procuram passar em silêncio este final inquietante. Diante de tanta unanimidade interessada em dar a entender que a frase - "Só um Deus nos pode ainda salvar" - do último Heidegger é absurda e senil, Bernard Sichère procurou mostrar que ela é, pelo contrário, a chave de todo o seu itinerário libertado pela poesia de Hölderlin, uma vitória sobre o niilismo: "O que permanece os poetas o fundam." A poesia surge como a preparação da "disponibilidade para a manifestação de Deus ou para a ausência de Deus em nosso declínio". 3. Mas quem é esse Deus que nos pode ainda salvar? Deixo, por agora, em suspenso o que deve permanecer indeterminado para não ser manipulado em poucas linhas. Volto-me para outro filósofo, para Ludwig Wittgenstein, que nos avisa: "O modo como usas a palavra 'Deus' não mostra a quem te referes - mas antes aquilo a que te referes." Para ele, a fé é uma paixão e o cristianismo é a descrição de algo que ocorre na vida humana. E pergunta: "O que é que me faz até sentir inclinação para acreditar na Ressurreição de Cristo? É como se eu brincasse com o pensamento. Se ele não tivesse ressuscitado, então ter-se-ia decomposto no túmulo como qualquer outro homem. Está morto e decomposto. Nesse caso, é um professor como outro qualquer e já não pode ajudar, e, de novo, somos órfãos e nos encontramos sós. Temos assim de nos contentar com a sabedoria e a especulação. Estamos numa espécie de inferno onde não podemos fazer mais do que sonhar, cobertos por um telhado e separados do céu. "Mas, se vou ser realmente salvo, necessito de uma certeza, não de sabedoria, de sonho ou de especulação - e esta certeza é a fé. E a fé é a fé naquilo de que necessita o meu coração, a minha alma, e não a minha inteligência especulativa. Pois é a minha alma que tem de ser salva e não a minha razão abstracta. Talvez possamos dizer: só o amor pode acreditar na Ressurreição. Ou: é o amor que acredita na Ressurreição. Poderíamos dizer: o amor redentor acredita até na Ressurreição." (2) E só o amor pode ressuscitar em nós o sentido da vida humana. Dizer que a vida humana tem sentido é acreditar em Deus. |
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(1) "Seul um Dieu peut encore nous sauver" Paris, Desclée de Brouwer, 2002 |
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