Milagre Segundo

Salomé

 

 

BENTO DOMINGUES, O.P. ......................... O Público, Lisboa, 16.05.2004
 

1. No passado dia 12, J. Manuel Vilas Boas veio-me buscar para ir ver o "Milagre segundo Salomé" - com estreia marcada para o dia 13 - no intuito de gravar um debate na TSF com a participação da dr.ª Maria Barroso e de Francisco Perestrelo.

Entrei para a sala de cinema cheio de curiosidade e com razões para supor mau tempo para os lados da Cova da Iria.

Pelo que me tinha sido dito, o filme, fruto de dois incréus declarados, roçava de forma atrevida a questão de Fátima. Inspirava-se num romance anticlerical de José Rodrigues Miguéis (1901-1980) e constituía a primeira longa-metragem de Mário Barroso, reputado director de fotografia, mas ateu. De tais raízes não seria de esperar uma azinheira acolhedora do Céu.

Fátima é a maior peregrinação do Ocidente. O seu universo religioso atrai milhões de pessoas. Pode ser estudado sob vários ângulos, mas a forma católica da fé não depende de Fátima.

As aparições na Cova da Iria não estão narradas em nenhum texto do Novo Testamento, não foram declaradas um dogma de fé em nenhum Concílio ecuménico e não se pergunta a ninguém se acredita ou não em Fátima para ser baptizado na fé da Igreja. Nunca os bispos ou o Papa poderão dizer: se não acreditas no que os pastorinhos disseram e nas Memórias da irmã Lúcia não podes ser católico.

As peregrinações dos Papas a Fátima são espectacularmente públicas, mas nunca podem exceder o estatuto de devoções pessoais, nem são propostas ou exigidas aos católicos como as peregrinações a Meca são exigidas aos muçulmanos com posses.

2. Não sou crítico de cinema e não fui ver o "Milagre segundo Salomé" por preocupações estéticas, embora por causa delas já tenha abandonado alguns filmes a meio. Deste gostei muito, embora destaque um aspecto que formularia desta maneira: com este filme, Mário Barroso superou a Fátima da "guerra fria" e do Estado Novo.

Pode parecer um tiro num morto: o muro de Berlim caiu, o comunismo já não é uma sedução, o regime de Salazar pertence ao campo da investigação histórica. Fátima, pelo contrário, não dá sinais de ter esgotado a sua capacidade religiosa.

O romance de José Rodrigues Miguéis ligava a denúncia de Fátima ao advento do fascismo em Portugal. O que parece, a Mário Barroso, um bocado abusivo porque o milagre é de 1917, o golpe militar é de 1926 e só a partir dos anos 30 é que o Estado Novo em Portugal começa a utilizar o milagre em seu proveito.

Como diz numa importante entrevista a Rodrigues da Silva para o "Jornal de Letras (12-5-2004): "Eu sou ateu e anti-Fátima, mas custava-me fazer um filme pelo qual se concluísse que o milagre não existira, opondo-lhe algo como a minha verdade (ou a de Rodrigues Miguéis). Por desatenção cometi um erro: devia ter dito que o filme era livremente inspirado no romance."

E esclarece imediatamente os princípios que animaram o seu trabalho: "Ninguém tem o direito de impedir os outros de acreditarem, nem o inverso. Desejaria que quer os que não acreditam quer os que acreditam em Fátima possam ver o filme. Não sei, aliás, se se percebe o ligeiro sorriso da santa no último plano. Quis dar com isso uma certa ironia, de modo discreto, um sorriso quase à Gioconda."

Não se trata de uma mera declaração de intenções: é a própria voz do filme na boca de Salomé, a santa prostituta, que declara perante a negação racionalista do seu amado companheiro: "Era eu, era o meu corpo que lá estava, mas era ela (a Virgem) que eles (pastorinhos) viram."

Ela acredita inteiramente que a Virgem a utilizou, ela que tinha sido tão mal utilizada ao longo da vida.

De formas diferentes, tanto o estatuto da arte como o da fé consistem em ver o invisível no visível. A arte não se rende ao real utilitarista nem o copia. Transfigura-se para entrar no mistério do real. A fé não pode viver sem figurações religiosas singulares como aparições do divino, sabendo que este as excede, doutro modo degrada-se na idolatria.

3. Fátima tem-se aberto, pouco a pouco, ao diálogo inter-religioso. Consta que já é um lugar de peregrinações muçulmanas. Os budistas - a começar pelo Dalai-Lama - e os hindus foram recebidos na Capelinha das Aparições pelos responsáveis católicos do Santuário. Para vários outros grupos, a Cova da Iria é também um lugar privilegiado da experiência do Sagrado. Sei que há católicos que não suportam esta abertura realizada pelo próprio João Paulo II em Assis.

Mas, no meu entender, é urgente e é possível ir muito mais longe - não faltam meios ao Santuário! - para superar as tentações da religiosidade individualista e intimista. Não basta que Fátima se torne o lugar onde se figura um mundo sem guerra e onde se reza continuamente pela paz. Pode e deve ser o espaço espiritual onde se elabora e difunde uma cultura activa da paz. Esta constrói-se enfrentando as componentes materiais e económicas dos conflitos culturais, pondo a nu exigências da solidariedade e da luta contra a pobreza, elaborando e difundido para este objectivo consensos entre religiosos e ateus.

Não temos que ficar intimidados com um filme onde uma prostituta sente que serviu para a transmissão de uma mensagem divina. Segundo Jesus Cristo, as prostitutas precedem os fariseus, de todos os tempos, no Reino de Deus.