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BENTO DOMINGUES, O.P. ..................................Público, Lisboa, 6.2.2005 | |
1. Hoje é Domingo Gordo em tempo de vacas magras. Se o divertimento, o humor e a festa não podem esperar pela era da abundância, este ano deve ser fácil dispensar o Carnaval. Tudo o que nesse aspecto se acrescentasse aos últimos meses da via nacional seria redundante. Agora talvez seja preferível preparar as condições para uma democracia decente.
Para os bispos portugueses, ela é o quadro político da liberdade, mas também da responsabilidade de todos os cidadãos e não só dos chamados "políticos profissionais". Como repete João Paulo II, todos devem estar implicados na procura do bem comum. São declarações muito razoáveis. Mas para se tornaram eficazes devem ser precedidas de uma pergunta simples que as faça aterrar em Portugal: como se explica que os últimos anos - aqueles em que mais apertaram o cinto aos pobres - tenham sido também aqueles que mais alargaram os negócios dos carros e das casas de maior luxo? Cresce em Portugal o abismo entre ricos e pobres. Os católicos, que, na quadra eleitoral, carregam com graves questões de consciência, não deveriam desviar os olhos deste quadro escandaloso. 2. Estará irremediavelmente perdida a luta contra a pobreza imposta? O Fórum Social Mundial de Porto Alegre (Brasil) - com as suas saudáveis componentes utópicas e folclóricas - teve o mérito, para além de muitos outros, de criar um ambiente que levou o retórico Fórum Económico Mundial de Davos (Suíça) a descer das vagas e adiadas promessas de sempre para o confronto com uma questão prática: "Como financiar a guerra contra a pobreza?" Foi este, aliás, o tema escolhido por 64 por cento dos líderes económicos ali reunidos. Desde 1970, os países ricos têm-se mostrado tão generosos em promessas como rápidos em esquecê-las. Em 2003, Lula lançou, em Davos, uma campanha contra a pobreza. Conseguiu o apoio de Chirac, que levou Lula à cimeira do G8 (EUA, Alemanha, Japão, Reino Unido, França, Itália, Canadá, Rússia). Lula acaba de conquistar também o apoio de Schroeder e Zapatero para a sua causa. Tony Blair manifestou aos EUA como era absurdo optar entre uma luta global contra o terrorismo e a luta contra a pobreza, como se fosse possível dissociá-las. E disse mais: Washington não conseguirá conquistar os outros países para os seus próprios objectivos, enquanto não se implicar naqueles que preocupam uma grande parte da humanidade. Corno observou o editorial de "El Pais" de terça-feira passada, não haverá alívio sério da miséria sem a participação dos EUA, ainda que a sua trajectória recente não se mostre muito encorajadora. Há três anos, no "desafio do milénio", Bush assumiu o compromisso de entregar milhares de milhões de dólares para promover o desenvolvimento dos países mais carenciados. Mas continua a mostrar que está sem pressa. Entretanto, o fosso entre ricos e pobres é cada vez mais assustador: a diferença de rendimento "per capita" entre os países menos desenvolvidos e os da OCDE era, em 1980, de 1 para 30. Agora é de 1 para 80. As assembleias do narcisismo capitalista persistem na cegueira. Mas a agenda global de 2005 estará dominada pela insegurança física, económica e social. Não basta o gesto e o charme da actriz Sharon Stone ou o donativo de Bill Gates para as vacinas contra as doenças mais assassinas para vencer a desesperança da África. Lula está muito longe de atingir a meta da "fome zero" no Brasil. Mas o seu maior desejo ainda não morreu: que nenhum cidadão brasileiro fique sem pequeno-almoço, almoço e jantar. "Quando tiver realizado este sonho, poderei morrer em paz." 3. No domingo passado, os católicos ouviram proclamar as bem-aventuranças segundo S. Mateus. Hoje, a mesma narrativa sublinha que só elas podem dar sabor e luz à vida dos discípulos de Cristo: "Vós sois o sal da terra e a luz do mundo"( Mt 5,1-16). Sei que as bem-aventuranças foram muitas vezes entendidas como uma apologia da resignação na terra compensada com promessas de felicidade no céu. Cristo era incapaz de tão sórdido negócio. O sermão de Jesus é, pelo contrário, o manifesto do reino de Deus enquanto caminho e programa de felicidade humana, a partir deste mundo, em luta contra o mundanismo. As bem-aventuranças são uma proposta paradoxal de sabedoria que implica um processo de libertação, cujo eixo é a progressiva conversão do desejo, cura do narcisismo capitalista - presente em ricos e pobres -, tornando as pessoas atentas ao que há de melhor em cada uma e disponíveis para cuidar dos outros. Sem pieguice. Quando Jesus Cristo diz aos seus discípulos: "Felizes os pobres de espírito porque deles é o Reino dos Céus", está a fazer a apologia daqueles que não têm o espírito poluído por ambições de dominação e por apetites de acumulação de riquezas. Os espíritos livres, aqueles que fizeram de Deus o único absoluto - e que estabeleceram a partir daí uma hierarquia de valores - ficam disponíveis para serem irmãos e cuidar da terra de todos. Aqueles que não andam cegos e drogados pelas pompas deste mundo - a elas renunciaram no baptismo cristão! - podem descobrir que o reino dos céus está dentro deles como um fermento de vida autêntica e profunda. Podem tornar-se o sal da terra e luz do renascimento do mundo. |
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