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O Público (Lisboa), 25 de Janeiro de 2004 | |
Tive, entretanto, de preparar uma conferência subordinada a uma pergunta cheia de armadilhas - "O que é a verdade para S. Tomás de Aquino?" - e encontrei-me com a homilia, muito bem tecida, de D. José Policarpo, patriarca de Lisboa, feita no dia 19 na missa de abertura do ano judicial. Traz uma proposta de cultura da justiça, de cultura da verdade, marcada pelo cultivo da dignidade da pessoa humana, pela cultura do amor, plenitude da justiça. Exige a cultura da liberdade que rima com responsabilidade. O bispo de Lisboa voltou a afirmar que "a laicidade dos Estados - que rigorosamente significa apenas a não confessionalidade dos Estados - acarretou a laicidade da sociedade e da cultura e esta tem-se mostrado incapaz de afirmar a síntese entre valores transcendentes, próprios da fé e das realidades terrestres, no seio das quais se situa a justiça". E acrescenta: "Não exigimos uma 'justiça religiosa', como ainda acontece noutros horizontes culturais da humanidade; mas acreditamos que a fé dos crentes, em diálogo sincero com todos, pode contribuir para o burilar contínuo de uma verdadeira cultura da justiça, que deve ser aberta à transcendência do homem e às exigências inultrapassáveis da dignidade humana". 2. Pode e deve. Mas como? Para já, aproveitando bem as ocasiões. O debate sobre a "despenalização do aborto" está de volta acompanhado de uma sondagem de opinião elaborada pela Universidade Católica. É possível e normal que católicos não tenham todos a mesma posição perante o problema. Mas para que possam dar um contributo que interpele a consciência dos portugueses seria importante que os próprios bispos fizessem desse debate uma "questão disputada" no interior das próprias comunidades católicas. As emoções que a declaração de D. Armindo, bispo do Porto, suscitou em Dezembro do ano passado podem querer dizer alguma coisa. Os sintomas de grandes viragens culturais e de mudanças na sensibilidade religiosa exigem a coragem de não deixar passar a hora de intervir, sem ir na onda e sem recorrer apenas às respostas congeladas e prontas para todas as situações. A interpretação dos "sinais dos tempos" é a arte de saber compreender o que se está a passar e o que se anuncia. Nada, porém, se faz automaticamente. O estado da cultura da justiça e da verdade, no seio das comunidades cristãs, também se avalia pela investigação e pelos debates que elas promovem para estarem prontas a dar razão da esperança que as move na sociedade. O diálogo entre católicos de várias tendências exige o enfrentamento de "questões disputadas". Os cristãos não estão todos no mesmo partido e nenhum partido se pode arvorar em herdeiro e representante da fé cristã. E nunca se ouviu no Movimento Ecuménico das Igrejas o "slogan": "Os cristãos unidos jamais serão vencidos." 3. Quando falo de "questões disputadas" tenho em mente as práticas lúcidas e corajosas de Tomás de Aquino, discípulo Alberto Magno, que o levaram, em 1277, à condenação, por E. Tempier, bispo de Paris, servido por uma comissão de dezasseis teólogos que o ajudaram na operação de barrar o caminho à emancipação da filosofia e às suas infiltrações no tecido teológico. Segundo o medievalista Alain de Libera, a arqueologia das ambiguidades da encíclica "Razão e Fé" de João Paulo II deve ser procurada nesse conflito (1). Seja como for, fala-se hoje de um "novo paradigma" teológico. Temos dele mais descrições do que práticas efectivas. Verifica-se sobretudo um grande acanhamento diante das posições do cardeal Ratzinger. Em nome da "Igreja de comunhão", evitam-se as "questões disputadas" destinadas a provocar a investigação da verdade presa na injustiça do mundo onde cresce o fosso entre ricos e pobres. S. Tomás de Aquino, um mendicante, conhecia muito bem e descreveu as múltiplas artes e géneros literários que vestem a Revelação divina ao longo dos tempos e o seu acolhimento na inteligência humana pela graça da fé, privilegiando sempre as formas simbólicas, parabólicas, narrativas e imperativas. Baseou-se no Novo Testamento para justificar o seu recurso à teologia argumentativa indispensável para testemunhar a verdade da fé cristã no novo contexto cultural. Na exposição da Sagrada Escritura, que muito cultivou, sabia que estavam consagrados quatro sentidos dos textos: o sentido histórico, o sentido moral, o sentido alegórico e o sentido místico (anagógico). Mas Tomás de Aquino destacava sempre o sentido literal para que a maravilhosa teologia simbólica não fosse utilizada para encobrir uma floresta de enganos. Para quem desejar seguir o percurso fascinante deste dominicano apaixonado da verdade de Deus e da verdade do mundo - que se despediu, aos 49 anos, do interior da sua noite mística, dizendo "depois do que vi, é só palha o que escrevi" - recomendo a obra de maior rigor histórico (2). Notas (1) Cf. Alain de Libera, "Raison et Foi. Archéologie d'une crise d'Albert le Grand à Jean-Paul II", Paris, Seuil, 2003. (2) Cf. Jean Pierre Torrel, "Iniciação a Santo Tomás de Aquino. Pessoa e obra", Ed. Loyola, São Paulo 1999. |
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