1. Realizaram-se as eleições para o Parlamento Europeu. Em democracia, as
derrotas e as vitórias - sempre bastante precárias - dependem da contagem
dos votos. O resto fica entregue às tendências dos comentadores, às alegrias
ou agruras dos partidos e aos jogos de efeito dos grandes meios de
comunicação social.
Por mais significativa que possa ser a abstenção - sinal de indiferença, de
preguiça ou de contestação - ela não altera, em princípio, essa básica regra
de jogo.
No entanto, tendo em conta as particularidades do percurso cultural, social,
económico e político de cada país, uma abstenção elevada exige investigação.
Pode não ter por toda a parte o mesmo alcance. Mas fica já o alarme: quem se
habituou a pensar que o alargamento e a reunificação da Europa eram
irreversíveis tem de acordar enquanto é tempo.
Cinquenta anos de trabalhos para vencer as divisões que ensanguentaram a
Europa parece muito tempo. Mas o projecto europeu é ainda quase só uma
controvérsia. Os pais desta colossal aventura - que eram maioritariamente
católicos, protestantes e anglicanos - já morreram e velhos demónios
regressaram. Diz-se que muitos dos que foram eleitos para o Parlamento
Europeu são contra a União Europeia. Vários governos aceitam-na apenas como
um grande espaço de negócios, não como uma comunidade de povos e culturas a
descobrir e a desenvolver.
2. Terá sido apenas a falta de informação, o desencanto e o cepticismo que
afastaram os europeus das urnas? Ou será que a construção europeia se tornou
incompreensível porque tudo é feito para que ela seja incompreensível?
A democracia representativa morre no secretismo e desenvolve-se com formas
motivadoras de participação. Não adianta perorar sobre a abstenção nas
eleições, quando tudo parecia organizado para desmotivar os potenciais
eleitores.
Em Portugal, nos últimos anos, aconteceram várias coisas que tornaram
antipática a própria ideia da construção europeia.
Jacques Delors apresentava em 1999 a adesão de Portugal à União Europeia
como um caso de grande sucesso: entramos em 1986; o nosso nível de
desenvolvimento era 52 por cento da média europeia; em Dezembro de 1999, já
era de 75 por cento da média europeia que, entretanto, tinha aumentado 30
por cento...
A partir de determinada altura, tornou-se corrente repetir que os fundos
europeus que ajudaram outros países a dar saltos de desenvolvimento - como a
Espanha e a Irlanda - não foram apenas mal aproveitados entre nós, como
contribuíram, por exigências de Bruxelas, para perdermos a nossa agricultura
e pescas. Foi também por causa das exigências de Bruxelas, em nome da
redução do deficit, que o país, num contexto internacional difícil, entrou
em recessão económica.
Acompanhado dessas e outras confusões - e sem se saber para que serve o
Parlamento Europeu - o acto eleitoral realizou-se no quadro de quase meia
semana de férias, em tempo de praia, de histeria futebolística e com as
mesas de voto atadas a um horário de Inverno.
Em vez da montagem das condições e dos meios para motivar e facilitar a
participação activa na construção democrática da Europa, tudo parecia
organizado para mandar os cidadãos para a praia.
No momento em que escrevo, ainda não este concluído o acordo sobre a
Constituição europeia. Mas é estranho que o seu texto, nas versões que foi
assumindo ao longo de trinta meses, nunca tenha sido colocado ao alcance das
populações, nem apresentado e discutido nas escolas.
3. O debate sobre a identidade europeia não desarma. Como dizia um grande
militante europeu, H. Brugmans, "a Europa é o lugar onde nenhuma certeza é
aceite se não for continuamente descoberta".
Em Dezembro de 1999, M. Jacques Delors, antigo presidente da Comissão
Europeia, fez uma conferência na catedral de Estrasburgo subordinada ao tema "Espírito evangélico e construção europeia".
O convite foi-lhe dirigido pelo arcebispo J. Doré e motivado por uma
afirmação do próprio J. Delors: "Se em dez anos não conseguirmos dar uma
alma, uma espiritualidade, uma significação à Europa, perdemos a partida."
Esta declaração foi depois muito repetida. Por vezes, numa perspectiva de
espiritualismo desencarnado e intemporal, contrária do seu autor. Ao
procurar responder à pergunta - "Como encarnar na aventura comum da Europa
as exigências do espírito evangélico?" -, elaborou um roteiro para mostrar,
no traçado e nas tensões do projecto europeu, o corpo da espiritualidade que
cultiva e nos pilares que o sustentam os valores que promove.
Com Vaclav Havel destacou o seu alcance: "A missão da Europa já não é, e
nunca mais será, nem a de governar o mundo, nem a de espalhar pela força a
sua representação da felicidade e do bem, nem a de inculcar a sua cultura,
nem sequer a pretensão de lhe dar lições. A única missão pertinente que
poderia ser a sua no próximo século consiste em ser o melhor possível ela
própria, isto é, ressuscitar e projectar, na sua vida, as suas melhores
tradições espirituais, contribuindo assim para criar um novo modo de
coexistência a nível mundial."
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