PERPLEXIDADES
E MISSÃO DA
EUROPA

 

 

 

BENTO DOMINGUES, O.P. ..................................Público, Lisboa, 20.06.2004

 

1. Realizaram-se as eleições para o Parlamento Europeu. Em democracia, as derrotas e as vitórias - sempre bastante precárias - dependem da contagem dos votos. O resto fica entregue às tendências dos comentadores, às alegrias ou agruras dos partidos e aos jogos de efeito dos grandes meios de comunicação social.

Por mais significativa que possa ser a abstenção - sinal de indiferença, de preguiça ou de contestação - ela não altera, em princípio, essa básica regra de jogo.

No entanto, tendo em conta as particularidades do percurso cultural, social, económico e político de cada país, uma abstenção elevada exige investigação. Pode não ter por toda a parte o mesmo alcance. Mas fica já o alarme: quem se habituou a pensar que o alargamento e a reunificação da Europa eram irreversíveis tem de acordar enquanto é tempo.

Cinquenta anos de trabalhos para vencer as divisões que ensanguentaram a Europa parece muito tempo. Mas o projecto europeu é ainda quase só uma controvérsia. Os pais desta colossal aventura - que eram maioritariamente católicos, protestantes e anglicanos - já morreram e velhos demónios regressaram. Diz-se que muitos dos que foram eleitos para o Parlamento Europeu são contra a União Europeia. Vários governos aceitam-na apenas como um grande espaço de negócios, não como uma comunidade de povos e culturas a descobrir e a desenvolver.

2. Terá sido apenas a falta de informação, o desencanto e o cepticismo que afastaram os europeus das urnas? Ou será que a construção europeia se tornou incompreensível porque tudo é feito para que ela seja incompreensível?

A democracia representativa morre no secretismo e desenvolve-se com formas motivadoras de participação. Não adianta perorar sobre a abstenção nas eleições, quando tudo parecia organizado para desmotivar os potenciais eleitores.

Em Portugal, nos últimos anos, aconteceram várias coisas que tornaram antipática a própria ideia da construção europeia.

Jacques Delors apresentava em 1999 a adesão de Portugal à União Europeia como um caso de grande sucesso: entramos em 1986; o nosso nível de desenvolvimento era 52 por cento da média europeia; em Dezembro de 1999, já era de 75 por cento da média europeia que, entretanto, tinha aumentado 30 por cento...

A partir de determinada altura, tornou-se corrente repetir que os fundos europeus que ajudaram outros países a dar saltos de desenvolvimento - como a Espanha e a Irlanda - não foram apenas mal aproveitados entre nós, como contribuíram, por exigências de Bruxelas, para perdermos a nossa agricultura e pescas. Foi também por causa das exigências de Bruxelas, em nome da redução do deficit, que o país, num contexto internacional difícil, entrou em recessão económica.

Acompanhado dessas e outras confusões - e sem se saber para que serve o Parlamento Europeu - o acto eleitoral realizou-se no quadro de quase meia semana de férias, em tempo de praia, de histeria futebolística e com as mesas de voto atadas a um horário de Inverno.

Em vez da montagem das condições e dos meios para motivar e facilitar a participação activa na construção democrática da Europa, tudo parecia organizado para mandar os cidadãos para a praia.

No momento em que escrevo, ainda não este concluído o acordo sobre a Constituição europeia. Mas é estranho que o seu texto, nas versões que foi assumindo ao longo de trinta meses, nunca tenha sido colocado ao alcance das populações, nem apresentado e discutido nas escolas.

3. O debate sobre a identidade europeia não desarma. Como dizia um grande militante europeu, H. Brugmans, "a Europa é o lugar onde nenhuma certeza é aceite se não for continuamente descoberta".

Em Dezembro de 1999, M. Jacques Delors, antigo presidente da Comissão Europeia, fez uma conferência na catedral de Estrasburgo subordinada ao tema "Espírito evangélico e construção europeia".

O convite foi-lhe dirigido pelo arcebispo J. Doré e motivado por uma afirmação do próprio J. Delors: "Se em dez anos não conseguirmos dar uma alma, uma espiritualidade, uma significação à Europa, perdemos a partida."

Esta declaração foi depois muito repetida. Por vezes, numa perspectiva de espiritualismo desencarnado e intemporal, contrária do seu autor. Ao procurar responder à pergunta - "Como encarnar na aventura comum da Europa as exigências do espírito evangélico?" -, elaborou um roteiro para mostrar, no traçado e nas tensões do projecto europeu, o corpo da espiritualidade que cultiva e nos pilares que o sustentam os valores que promove.

Com Vaclav Havel destacou o seu alcance: "A missão da Europa já não é, e nunca mais será, nem a de governar o mundo, nem a de espalhar pela força a sua representação da felicidade e do bem, nem a de inculcar a sua cultura, nem sequer a pretensão de lhe dar lições. A única missão pertinente que poderia ser a sua no próximo século consiste em ser o melhor possível ela própria, isto é, ressuscitar e projectar, na sua vida, as suas melhores tradições espirituais, contribuindo assim para criar um novo modo de coexistência a nível mundial."