Na festa do
Pentecostes

Preparado por um longo processo de conversão e oração, o Pentecostes - a festa da grande reunião dos povos - tornou-se para sempre o símbolo da "Palavra e do Sopro" de Deus na diversidade de todas as línguas e culturas

 

BENTO DOMINGUES, O.P. ................................Público, Lisboa, 14.05.2005
 

1. Em 2005, a Igreja Católica encheu os grandes e pequenos meios de comunicação social. Neste caso, quando se diz "Igreja Católica", pensa-se quase só no Papa: no que morreu, João Paulo II, e naquele que lhe veio a suceder, Bento XVI. Pouco a pouco, como é normal, a memória de João Paulo II ir-se-á esbatendo. É tempo de esquecer também a figura do prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé e de enaltecer a bibliografia teológica do professor J. Ratzinger e os seus dons musicais, construir com Bento XVI a imagem do Papa para os próximos tempos.

Gosto da posição dos que, sem derrotismos, são modestos nas suas previsões do futuro. Como diz um provérbio africano, "ninguém conhece a história da próxima aurora". No final de um espantoso poema do Eclesiastes, Deus, embora conceda ao coração humano o sentido do tempo, não lhe dá a chave da história. Deus é discreto. As teologias - como as de Joaquim de Flora ou do padre António Vieira - e as filosofias da História tornaram-se delirantes. Um texto de Marx fica muito bem nesse mundo alucinado: "O comunismo é a verdadeira solução do antagonismo entre o homem e a natureza, entre o homem e o homem, a verdadeira solução entre essência e existência, entre a objectivação e afirmação do eu, entre a liberdade e a necessidade, entre o indivíduo e o género. O comunismo é o enigma resolvido da história, e reconhece-se a si mesmo como esta solução."

2. No momento presente da Igreja, entre os profetas da desgraça e os que vêem primaveras em todas as decisões do Vaticano, há espaço para o exercício da virtude teologal da esperança e para uma saudável distância crítica, pois como diz, de forma lapidar, Santo Irineu, "a coluna e o fundamento da Igreja são o Evangelho e o Espírito de vida". Preparado por um longo processo de conversão e oração, o Pentecostes - a festa da grande reunião dos povos - tornou-se para sempre o símbolo da "Palavra e do Sopro" de Deus na diversidade de todas as línguas e culturas. Os atributos da Igreja - una, santa, católica e apostólica - professados no "Credo" não devem ser confundidos com os de uma organização comandada por uma verdade definida de uma vez para sempre e com uma prática moral codificada para todas as situações. Yves Congar, um grande investigador da história doutrinal da eclesiologia, sofreu muito por ter denunciado essa confusão. Em 1979, no segundo volume da sua trilogia, Creio no Espírito Santo, escreveu, a propósito do atributo da santidade da Igreja: "... a Igreja é pesadamente "carnal". Valerá a pena dizê-lo? É sabido, mas não o confessa suficientemente. A massa dos seus pecados históricos e das suas insuficiências paralisam, em muitos homens, um movimento de confiança.

Esposa de Cristo doce e humilde de coração, a Igreja deu provas de orgulho e de muita dureza. Discípula daquele que não tinha onde reclinar a cabeça, gosta da riqueza e da instalação.

Tendo por alma o Espírito Santo, "o Desconhecido para além do Verbo", por vezes, ignorou os sinais dos tempos, mostrou-se apegada a práticas formalistas, a estruturas de poder e de imobilismo. Aquilo que S. Paulo diz sobre o ministério - não da letra, mas do Espírito (2 Co 3, 6) - que verdadeiramente nos designa (como cristãos), já quase nem nos atrevemos a reivindicá-lo, tal é a consciência de o trair constantemente" (1). Esta crítica foi, no entanto, bem acolhida por João Paulo II. Durante o Jubileu do ano 2000 integrou alguns dos seus aspectos no pedido de perdão pelos erros e pecados dos filhos da Igreja... Fez deste grande teólogo do ecumenismo e do Espírito Santo - perseguido pelo Santo Ofício - cardeal. Nas vésperas do Jubileu, Chr. Duquoc, num livro especialmente lúcido e corajoso - Creio na Igreja.

Precaridade institucional e Reino de Deus - pergunta a partir do mais íntimo da sua profissão de fé católica: donde veio a Inquisição? E responde: do zelo pela fé e pela verdade. O autor trabalha com a seguinte hipótese: "Pensar a violência institucional, a divisão das igrejas e o disfuncionamento presentes, não a partir das fraquezas humanas, pecaminosas ou não (e certamente que estas não são sem importância) - mas a partir da alta pretensão da Igreja a ser, na história, a testemunha da verdade e o sacramento da salvação. E é por isso que o estudo do seu ideal doutrinal, apresentado muitas vezes como justificação da sua prática histórica, é tão importante." (2) 3. Mas neste Pentecostes, além desses contributos teológicos, quero deixar aqui o testemunho espantoso de um padre operário, o padre Depierre:

"Obedeci à Igreja para me manter livre. Prefiro ser vítima dos velhos cardeais romanos do que tornar-me escravo do p. Depierre. Digo sim à Igreja e foi dentro dela que me bati por ela. Dez vezes, com alguns irmãos delegados dos outros padres operários, fomos a Roma para que as decisões tomadas contra nós fossem revistas. Durante seis anos fomos mal ou nem sequer recebidos. E, no entanto, nunca desesperei da Igreja. Ela é portadora de um tal capital de amor, de generosidade, de esperança, de humildade, de boa vontade e de fé no único mestre Jesus, que nenhuma das suas fraquezas pode prevalecer e barrar o caminho por muito tempo ao Espírito Santo. O capital de santidade acumulado ao longo do tempo e dos espaços por milhões de santos desconhecidos acabará certamente por abrir novos caminhos."

 

(1) Je crois en l"Esprit-Saint, 3 vol, Paris, Cerf, 1979

(2) Je crois en L"Eglise, Paris, Cerf, 1999.