A Igreja Católica

é só o Papa?

 

 

 

BENTO DOMINGUES, O.P. ....................................Público, Lisboa, 3.3.2005

1. No estado cada vez mais débil da saúde de João Paulo II - no momento em que escrevo já não pode falar e é alimentado por uma sonda nasogástrica - esta pergunta, tantas vezes repetida, é agora, pelo menos, de mau gosto. Decorre, porém, da própria lógica imposta pelos grandes meios de comunicação social. Reduziram a celebração da Semana Santa e da Páscoa - no vasto mundo de comunidades católicas - à repetitiva articulação do boletim clínico do Papa com pormenorizadas hipóteses da sua participação ou não nas cerimónias organizadas pelo Vaticano, acompanhada dos cenários possíveis da sua morte e da eleição de um novo sucessor na cátedra de S. Pedro.  

Os católicos estão certamente orgulhosos com o interesse que o seu líder suscita dentro e fora da Igreja. Nas últimas décadas - tirando alguns escândalos eclesiásticos e as ligações entre o Banco Ambrosiano e o Instituto para as Obras Religiosas (IOR) - a visibilidade da Igreja Católica esteve centrada nas suas viagens triunfais pelo mundo, nos atentados de que foi vítima na Praça de S. Pedro (a 13 de Maio de 1981) e de que foi alvo no Santuário de Fátima um ano depois, na sua participação na queda dos regimes comunistas dos países de Leste, na oposição à guerra contra o Iraque e, agora, nas imagens de espantosa coragem espiritual com que procura viver a sua degradação física.   Tudo isto indica que não é totalmente descabida a pergunta: esta visibilidade do Papa, no exercício da sua missão, revela ou esconde uma Igreja feita de Igrejas locais muito diferentes?  

2. Recuemos um pouco. João XXIII sonhou, no começo dos anos 60, um rosto novo de Igreja. Um rosto que espelhasse a conversão à simplicidade do Evangelho de Jesus Cristo e que tivesse os olhos bem abertos para as outras Igrejas cristãs, para as religiões não cristãs, para as esperanças e ameaças do mundo contemporâneo. Este Papa não queria impor nada a ninguém. Para ele, só um concílio ecuménico poderia abrir esse caminho. Convocou-o e entregou-o à liberdade do Espírito Santo e dos membros da assembleia conciliar.  

O Vaticano II foi o acontecimento cristão mais importante do séc. XX. Esta convicção chegou a ser consensual. A partir de certo momento, para alguns, o saldo do concílio foi julgado negativo. Como disse o cardeal Ratzinger, esperava-se uma nova unidade católica, um novo entusiasmo, um salto para a frente, mas o resultado foi o desânimo, a dissensão e o descrédito. A própria Igreja encontrou-se exposta a uma crítica radical - crítica que vinha de fora e de dentro.   Repetiu-se também que o séc. XX foi o século da Igreja. J. B. Metz lembrou, no começo dos anos 70, uma preocupante interrogação de R. Guardini: será que o século da Igreja vai acabar por se tornar um século de afastamento das Igrejas, em massa? Todas estas posições esquecem um aspecto bem realçado por Y. Congar: o Concílio viu-se acompanhado e sobretudo seguido por uma mutação sócio-cultural cuja amplitude, radicalidade, rapidez, de carácter global, não teve equivalente em nenhuma época da história.

Na fase pós-conciliar levantaram-se muitas questões que o Vaticano II não pôde prever: abandono maciço da Igreja por parte da juventude, secularização acelerada das sociedades mais avançadas da Europa, procura de libertação nos países do Terceiro Mundo, reivindicações da mulher, desenvolvimentos tecnológicos, armamento nuclear, destruição da natureza, etc..   Se para alguns a culpa dos males da Igreja vinha dos meios progressistas, nos anos 80, o grande teólogo jesuíta Karl Rahner fazia outra leitura: na Igreja actual reina um conservadorismo excessivo que não está de acordo com o espírito do Concílio. As autoridades eclesiásticas de Roma dão a impressão de favorecer um medroso regresso aos bons velhos tempos. Penso que estamos a viver o inverno da Igreja, dessa Igreja em que continuamos a escutar a palavra de Deus e a receber a sua graça.  

3. Aquilo que Karl Rahner lamentava já era um dos primeiros resultados do pontificado de João Paulo II. Este, ao chegar ao Vaticano - perante desafios muito novos - não convocou um novo concílio como tinha feito João XXIII, nem revitalizou o Sínodo dos Bispos. Quis ser ele a marcar o rumo a seguir. Eclipsou a liberdade no debate teológico, estabeleceu a boa doutrina e a boa disciplina. Colocou a ortodoxia sob a vigilância do cardeal Ratzinger, prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé. João Paulo II dedicou-se a levar a todo o mundo esta nova fisionomia da Igreja no seu rosto, nos seus gestos, nas suas atitudes e na sua palavra. Existem muitas biografias, e algumas de grande qualidade, que descrevem o estilo e o conteúdo da sua acção.   Não se deve esquecer o que se passa num palco. Quando a luz incide só numa figura o resto desaparece. João Paulo II foi adoptado nas horas de triunfo, de alegria e de sofrimento extremo. Quando se apagar a luz sobre o seu rosto, que Igreja iremos descobrir nos diversos continentes?  

Nas narrativas pascais, Cristo ressuscitado lança a caminhada da Igreja enviando as mulheres - as esquecidas do judaísmo do seu tempo - a evangelizar os apóstolos. Hoje, as mulheres, em alguns países de tradição católica, estão a seguir os homens no abandono da Igreja.  

Para enfrentar os desafios do presente e do futuro, o modelo de Igreja implantado pelas atitudes e doutrinas de João Paulo II parece insuficiente. A imaginação do Espírito Santo e dos cristãos - a Igreja não é só o Papa - vai certamente trazer-nos boas surpresas.