O NASCIMENTO
DE DEUS

BENTO DOMINGUES, O.P. ..........................................Público, Lisboa, 19.12.2004

A correspondência entre dois grandes vultos da cultura portuguesa do séc. XX, António José Saraiva e Óscar Lopes, alimentada por uma amizade pura e dura, encontra-se agora ao dispor da curiosidade de todos. (1)

Na carta de 19 de Dezembro de 1992, Óscar Lopes confessa que, desde há meio século, a sua mensagem é sempre uma variante da mesma: "Uma releitura da teoria das três virtudes teologais, Fé, Esperança e Caridade." Na carta de 28 do mesmo mês, retoma uma convicção que já lhe ouvi noutras ocasiões: "Graças ao dogma da Incarnação, o cristianismo foi a primeira religião materialista. A ressurreição resulta disso como corolário."

Não pretende ser o pai da ideia: "Isto está em Unamuno. Vem dos profetas, do Apocalipse e de Santo Agostinho. Para Walter Benjamim, que era ao mesmo tempo (e num certo sentido) cabalista e marxista, o Anjo da História não olha para o futuro, olha para todo o sofrimento irresgatado do passado, e responsabiliza o revolucionário pelo sangue universal da dor. Teillard de Chardin e João XXII não deviam estar longe desta convicção."

Uma tal referência ao cristianismo como "religião materialista" talvez seja recebida com estranheza e pode suscitar equívocos. Mas quem esteja ao corrente do que foram as tentações gnósticas e as opções dos concílios cristológicos dos séc. IV e V sabe que a Igreja teve de cortar com as doutrinas que consideravam a matéria como obra do mal e exigiam o seu abandono para aceder salvação. Essas correntes punham em causa os inseparáveis mistérios da Criação e da Incarnação, fundamentos da originalidade cristã.

Em Portugal, cultivamos expressões da fé muito antigas, muito atrevidas e muito saudáveis - "Deus humanado", "Corpo de Deus", "Mãe de Deus", etc. - que testemunham o nascimento humano de Deus, a máxima transcendência no íntimo da mais extrema imanência.

Na referida missiva sobre as três virtudes teologais - e que Óscar Lopes considerava o seu testamento "espiritual" - assume também a observação de Thomas Mann ao receber o Prémio Nobel: só um materialista é capaz de professar o espiritualismo mais consequente. Quem tem ouvidos para ouvir, oiça.

2. As narrativas dos Evangelhos acerca da festa do Natal são, para alguns, surpreendentes e escusadas. O Evangelho de S. Marcos não se ocupa nem do nascimento de Jesus nem da sua infância. Conta uma história tecida de conflitos, para revelar que Jesus de Nazaré, o blasfemo condenado e crucificado, é o verdadeiro Messias, o Filho de Deus.

S. Paulo - que nos deixou o primeiro testemunho literário do Novo Testamento - também não se perdeu em muitos pormenores. Na carta aos Romanos, informa que Jesus "nasceu da descendência de David segundo a carne e foi constituído Filho de Deus em poder segundo o Espírito santificador pela ressurreição de entre os mortos". Na carta aos Gálatas não vai muito mais longe: "Deus enviou o seu filho, nascido da mulher, nascido sob o domínio da Lei, a fim de recebermos a adopção de filhos."

Mas uma ou duas dezenas de anos mais tarde, o panorama mudou: S. Mateus e S. Lucas, sem se conhecerem, escreveram duas belas narrativas, ainda que bastante diferentes, sobre o nascimento e a infância de Jesus.

Segundo os nossos critérios actuais, não são biografias nem tratados de história científica. Quando falam da virgindade de Maria e do papel de S. José - motivos de frequentes anedotas - também não pretendem dar lições de biologia. Escrevem teologias narrativas. Os acontecimentos históricos, as lendas, o jogo simbólico e poético desses contos fantásticos, cheios de maravilhoso e de conflitualidade, antecipam o sentido transcendente da pessoa e do itinerário de Jesus, mediante a luz indirecta da Páscoa projectada sobre a sua concepção e o seu nascimento. Cristo não é fruto do acaso ou de cálculos humanos, ou uma vocação especial, como João Baptista, dentro do vasto desígnio de Deus. O filho de Maria, uma criança inteiramente humana como as outras, é o Filho de Deus até às profundidades do seu ser. É o "Logos" eterno no tempo, o Infinito na atribulada finitude humana, o Emmnanuel que significa "Deus está connosco", mesmo quando nos sentimos no completo abandono.

As perspectivas de S. Mateus e de S. Lucas acerca da significação do nascimento de Jesus Cristo não coincidem. Interessa a S. Mateus mostrar que toda a história de Israel, com seus altos e baixos, converge para Cristo. S. Lucas inscreve Jesus numa genealogia que envolve toda a humanidade. Nasce de Adão e de Deus, é o filho da Terra e do Céu.

3. Na época do Natal, multiplicam-se as iniciativas para levar algum sonho e consolo às crianças mais abandonadas. Não podem ser gestos que sirvam para anestesiar a nossa sensibilidade perante o relatório anual da Organização para a Agricultura e Alimentação das Nações Unidas (FAO). É o relatório de um escândalo: todos os anos morrem de fome cinco milhões de crianças.

Não é só na época natalícia que as crianças precisam de comida e carinho. Se não estivermos dispostos a lutar, ao longo de todo o ano, por uma nova consciência perante o mundo da pobreza, da injustiça e da guerra, inventaremos más ficções para ocultar a dimensão subversiva e política inscrita nas histórias cristãs do Natal, revelações da humanidade de Deus e da nossa desumanidade.

(1) Leonor Curado Neves, "António José Saraiva e Óscar Lopes; Correspondência", Lisboa, Gradiva, 2004