A MULHER
DE SAMARIA

BENTO DOMINGUES, O.P. ...............................Público, Lisboa, 27.02.2005

1.Nunca saberemos o nome da mulher de Samaria que se encontrou com Jesus Cristo junto ao antigo poço de Jacob e que inspirou uma das passagens mais belas do Evangelho de S. João. Fala de uma mulher perto de tudo e longe do essencial, que descobriu a Fonte no centro da alma. É lida hoje na Missa do III domingo da Quaresma (Jo. 4, 5-42).

Os Evangelhos não estão preocupados com aquilo a que hoje chamamos, por miopia espiritual, exactidão histórica. Essas narrativas entregam-nos quatro retratos de Jesus. São desenhados por discípulos, admiradores e amigos. A partir de pontos de vista e preocupações diferentes, olham em todas as direcções. Procuram a inesgotável significação da história de Cristo, o Jesus de Nazaré de há dois mil anos, mas contemporâneo de todas as épocas e que pode renascer nas vozes de todas as culturas.

André Chouraqui, sábio judeu, tem razão quando escreve que "não existe na Bíblia nem na literatura universal livro comparável ao Quarto Evangelho". É neste que vem o diálogo de Jesus com a Samaritana junto ao célebre poço de Jacob. Um diálogo semeado de divina ironia e que se julgaria impossível.

Aos olhos dos judeus, os samaritanos eram uns horrorosos "cismáticos". No regresso do exílio não aceitaram os rigores da reforma judaica e acabaram por romper a unidade política e religiosa. A oposição entre os dois grupos era intransponível. Um judeu devia evitar qualquer contacto com esses impuros e sobretudo abster-se de lhes pedir qualquer favor e, muito menos, alimentos.

2. Essa situação marca o início de uma estranha conversa que se move sempre entre o realismo mais rasteiro e os saltos mais ousados da simbólica bíblica. A iniciativa é atribuída a um estranho judeu que praticava o amor dos inimigos. Só poderei transcrever um pequeno fragmento desse diálogo esquisito:

"Jesus deixou a Judeia e retornou à Galileia. Era preciso passar por Samaria. Chegou, então, a uma cidade de Samaria, chamada Sicar, junto da propriedade que Jacob tinha dado a seu filho José, onde se encontrava o poço de Jacob.

Jesus, cansado da caminhada, sentou-se à beira do poço. Era por volta do meio-dia. Veio uma mulher de Samaria para tirar água do poço. Disse-lhe Jesus: dá-me de beber. Os discípulos tinham ido à cidade comprar alimentos.

Respondeu-lhe a samaritana: como é que tu, sendo judeu, me pedes de beber, sendo eu samaritana? De facto, os judeus não se dão com os samaritanos.

Disse-lhe Jesus: se conhecesses o dom de Deus e quem é aquele que te diz: dá-me de beber, tu é que lhe pedirias e ele te daria da água viva. Respondeu-lhe a mulher: Senhor, tu nem sequer tens um balde e o poço é fundo: donde te vem a água viva? Serás tu maior do que o nosso pai Jacob, que nos deu este poço, do qual ele mesmo bebeu, com seus filhos e seus rebanhos?

Disse-lhe Jesus: todo aquele que bebe desta água voltará a ter sede. Mas aquele que beber da água que eu lhe der nunca mais terá sede: a água que eu lhe der tornar-se-á nele uma nascente que jorra para a vida eterna. Senhor - suplicou-lhe a mulher - dá-me sempre dessa água, para que eu não tenha de vir aqui buscá-la. Disse-lhe Jesus: Vai buscar o teu marido e volta aqui. Respondeu-lhe a mulher: Não tenho marido. Jesus replicou: disseste bem que não tens marido pois tiveste cinco, e aquele que tens agora não é teu marido. Disse-lhe a mulher: Senhor, vejo que és profeta."

3. A partir deste ponto, o diálogo tomou um rumo global. A face mais visível da oposição entre judeus e samaritanos situava-se na rivalidade entre os respectivos lugares de culto, entre o templo de Jerusalém e o do monte Garizim, em Samaria. Jesus anuncia-lhe o começo de uma nova era: "Vai chegar a hora - e já chegou - em que os adoradores hão-de adorar o Pai em espírito e verdade, pois são esses os adoradores que o Pai deseja. Deus é espírito, e os seus adoradores devem adorá-1"O em espírito e verdade."

Ernesto Renas (1823-1892), autor da famosíssima "Vida de Jesus", viu, como poucos, o alcance desta passagem: "No dia em que Jesus pronunciou esta palavra, foi verdadeiramente filho de Deus. Nomeou pela primeira vez o edifício sobre o qual repousará a religião eterna. Fundou o culto puro, sem data, sem pátria, aquele que será praticado pelas almas elevadas até ao fim dos tempos. A sua religião não foi apenas nesse dia a boa religião da humanidade: foi a religião absoluta. E se outros planetas têm habitantes dotados de razão e de moralidade, a sua religião não pode ser diferente daquela que Jesus proclamou junto do poço de Jacob."

4. Creio que foi Reno Char que disse: "Quem veio ao mundo para não perturbar nada não merece consideração nem paciência." Segundo a narrativa, Jesus agitou a tal ponto a vida da Samaritana que ela deixou tudo e foi perturbar os preconceitos dos seus conterrâneos. Não descansou enquanto eles não se encontraram com esse estranho judeu. Mas Jesus também mudou. Para espanto dos discípulos, perdeu toda a vontade de comer. Disse-lhes que o alimento da sua missão consiste em fazer a vontade do Pai, isto é, abater os muros que, em nome de Deus, se levantam entre os povos e ajudar cada ser humano a encontrar a fonte que, no fundo da existência, brota e corre para a eternidade. Não somos feitos para a morte, mas para depois da morte.