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BENTO DOMINGUES, O.P. .............................................O Público, Lisboa, 06 de Junho de 2004 |
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Quando se tenta desenhar o futuro, oscila-se sempre entre a confiança nas conquistas da ciência e nos avanços da tecnologia e o medo perante um mundo carregado de ameaças, perigoso. Isto é tanto assim que no Euro 2004, o primeiro desafio que Portugal tem de ganhar é o da segurança. O poder devastador de cargas explosivas e os atentados suicidas já povoam o imaginário colectivo, embora a droga futebolística também o possa compensar. Por isso mesmo, é tempo de voltar a página das guerras, encetar uma era de razoabilidade com o mundo muçulmano moderado e alterar radicalmente o relacionamento com a África. Espera-se que os EUA aprendam alguma coisa com o desastre do Iraque e com as demências do Estado de Israel. Mas é sobretudo importante que se compreenda, também em Portugal, que a tarefa de construir a União Europeia - como grande ensaio para o encontro fraterno de todos os povos - é a prioridade das prioridades. Deveria ser, pelo menos, a prioridade política dos cristãos. 2. O Cardeal Paul Poupard, presidente do Conselho Pontifício da Cultura, numa conferência notável - onde também se notam muitas ambiguidades - sobre as raízes cristãs da Europa, observa que por cima do mosaico de línguas, tradições e costumes diversos, há um elemento unificador em todo o continente: o cristianismo. Tendo em conta uma memória cultural tão evidente, Benedetto Croce - um grande pensador laico e filósofo da história - dizia que não podemos não nos chamar "cristãos". Diga-o ou não a futura Constituição da União Europeia, a Europa é cristã. Hoje, o que se discute é outra coisa: "esta herança constitui um fardo pesado que obstaculiza o caminho para o progresso ou, pelo contrário, é o melhor capital que a Europa possui?". Para uns, a Europa é o que é, graças ao cristianismo, e só poderá subsistir na fidelidade a esta herança. Para outros, a Europa é o que é, apesar do cristianismo e só na medida em que conseguir superar definitivamente essa etapa do passado conquistará a sua liberdade. Será possível procurar uma conciliação entre estas duas posições aparentemente irreconciliáveis? Para o Cardeal Poupard, esta foi a intenção dos fundadores da União Europeia, homens de profundas convicções cristãs: Schuman, Gasperi, Adenauer. Frente aos nacionalismos que causaram as duas grandes guerras, era necessário recuperar a herança comum, cultural, moral e religiosa da Europa, para configurar com ela a consciência dos seus povos. Sem negar a própria identidade nacional, era necessário superá-la como parte de uma comunidade dos povos. Era fundamental recuperar a história comum como força criadora de paz. Para os fundadores da Europa, era evidente que, nos seus traços essenciais, a herança cristã constituía o núcleo desta identidade histórica, muito para além dos estreitos limites confessionais. Uma "saeta" cantada na noite da semana santa sevilhana, a Paixão segundo S. Mateus de Bach ou os coros da liturgia ortodoxa são diferentes só na aparência. As catedrais e as igrejas - que são marcos em toda a Europa, desde Moscovo até Lisboa e desde Malta até à Islândia - são algo mais do que um mero símbolo exterior. São a expressão de uma determinada concepção do homem e da sua relação com Deus, da presença do sagrado no coração da cidade, da distinção entre o temporal e o espiritual, entre o que é de Deus e o que é de César. Não se julgue que o cardeal P. Poupard, ao referir-se à herança cristã, esteja a pensar em algo cristalizado, incapaz de inovações e de novos contributos. Dizer Europa deve significar um continente acolhedor e aberto ao universal. Como se vê por este resumo, a conferência é profundamente apologética e a memória, esperança do futuro, é muito selectiva. Termina com palavras de Jean Guitton. Para este filósofo, o futuro é favorável a um catolicismo autêntico, a religião mais universal e mais adequada a ser proposta tanto às elites como às massas. 3. Hoje é celebrada a festa da Santíssima Trindade. Para o judaísmo e o Islão, a fé na Trindade de Deus (Pai, Filho e Espírito Santo) é uma cedência ao politeísmo. A expressão trinitária da fé cristã levanta, desde há séculos, dificuldades - que não são intransponíveis - entre Roma e as Igrejas Ortodoxas. Para I. Kant, um grande filósofo da modernidade, "da doutrina da Trindade não se tira, definitivamente nada de importante para a prática". Em 1986, Leonardo Boff, um dos maiores autores da Teologia da Libertação, mostrou, numa obra notável, as espantosas virtualidades críticas e construtivas da fé na Trindade de Deus que escaparam totalmente a I. Kant (2). Os modelos de vida que temos ou esmagam as diferenças e a criatividade ou promovem a ganância, a rivalidade e as desigualdades. Deslumbrados ou irritados com a globalização financeira e a imposição de um só modelo cultural, preferimos continuar a ser imbecis, em vez de cultivar simultaneamente a unidade da família humana e as suas admiráveis diferenças. Se somos criados à imagem da Trindade, na qual coincide a máxima unidade como a máxima originalidade de cada pessoa, numa infinita comunhão, temos de dizer que a simbólica cristã está carregada de inspirações práticas. |
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(1) rev. Lumen, Janeiro-Fevereiro, 2004; (2) Leonardo Boff, "A Trindade, a Sociedade e a Libertação", Vozes,1986 |
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