A Luta |
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BENTO DOMINGUES, O.P. ...........................O Público, Lisboa, 30 de Maio de 2004 |
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Os Estados Unidos da América estão em condições de bater seja em quem for e em qualquer parte do mundo. Este é o resumo de muitas declarações da Administração Bush antes da invasão do Iraque. E pode ser que seja verdade. Dispõe de uma tecnologia bélica em renovação contínua a que ninguém pode resistir. Se não tivessem sido enganados por alguns informadores e conselheiros levianamente escolhidos - garantindo que os invasores do Iraque seriam recebidos de braços abertos - os estrategos norte-americanos teriam despejado bombas suficientes e certeiras para não terem que andar agora, de porta em porta, como na pré-história da guerrilha urbana e para a qual militares tão sofisticados mostram pouca paciência. O recurso a velhas formas de tortura - que tanto indignaram a opinião pública - faz parte dessa falta de pachorra para lidar com seres humanos, olhos nos olhos, donde poderia saltar, de repente, um aterrador sobressalto ético. Diz-se que para uma guerra bem-sucedida é preciso fazer de conta que se entrou num interregno da humanidade, num período que suspende as preocupações éticas e durante o qual os outros estão a mais neste mundo. Enquanto existirem pessoas preocupadas com a dignidade humana, há sempre a hipótese de surgirem algumas com a mania de que há coisas que não se podem desejar nem fazer, mesmo ao maior inimigo. 2. Os "taliban" e os membros da Al-Qaeda - e não foram os primeiros que tiveram essa ideia - fabricaram um deus que só considera seres humanos dignos do céu os que promoverem o islão e o seu domínio absoluto. Fora desse quadro, não há salvação, nem sujeitos de direitos e deveres no seio da comunidade humana. Liquidá-los - sejam quais forem as técnicas a utilizar - é como limpar a terra de lixo ameaçador. Atirar-se com aviões contra as Torres Gémeas, onde morreram milhares de pessoas, é visto como um feito redentor. A ideia de uma ética universal não lhes passa pela cabeça. A regra de ouro, tanto na sua forma negativa - "não faças aos outros o que não gostas que te façam a ti" -, como na versão positiva - "faz aos outros o que gostarias que os outros te fizessem" - é horizonte de várias religiões e sabedorias que se apaga diante da "guerra santa" ou da "retaliação". O amor e o perdão aos inimigos torna-se uma linguagem absurda e inacreditável. Não há interesse em lembrar a convicção bíblica de que o ser humano foi criado à imagem de Deus, de um Deus que faz a pergunta mais importante na história da humanidade e dos humanismos: "Que fizeste do teu irmão?" O sangue dele brada aos céus. Este Deus vigia pela paz, pela ética da solidariedade, pela dignidade humana. 3. Mas "Deus morreu". Para uns, esta declaração significou o fim da opressão religiosa e a possibilidade de uma ética humana autónoma. Para outros, representa o fim de todos os valores, o advento do "niilismo" absoluto, tal como o formulou Nietzsche num texto de 10 de Junho de 1887: "O Niilismo Europeu" (1). Nietzsche começou por destacar as vantagens da hipótese moral cristã: "Ela conferiu ao homem um valor absoluto, por oposição à sua pequenez, contingência no fluxo do vir-a-ser e do deixar-de-ser. (...) Ela impediu que o homem se desprezasse enquanto homem, que ele tomasse partido contra a vida, que ele desesperasse do conhecimento (...) A moral era o grande 'antídoto' contra o 'niilismo' prático e teórico." Tudo desabou e Nietzsche nunca conseguiu uma entusiasmante superação filosófica da crise aberta pelo que ele chamou o "niilismo europeu". Também não existe uma boa definição do ser humano. Ele só existe na cultura que é uma condição sem limites históricos quanto a experiências religiosas, criatividade estética, investigação científica, transformações tecnológicas, formas de organização social, exigências éticas. Mas parece que agora estamos perante algo muito novo. Vamo-nos aproximando, com espantosa velocidade, de uma época em que a biotecnologia poderá realizar entidades superiores que talvez não partilhem com os actuais seres humanos a base que permite falar, embora com toda a sua plasticidade, em "natureza humana". Talvez seja verdade que a ética se vai elaborando indutivamente como a ciência. Na luta pela dignidade humana, podemos destacar alguns segmentos do devir histórico como uma grande e progressiva argumentação ética. Milhões de intentos, de rejeições, de críticas, de ajustamentos, debates e vítimas fazem emergir modos de vida mais razoáveis na descoberta da dignidade humana (2). Esse optimismo ético tende a esquecer as vítimas, em nome do progresso global da humanidade. Os católicos celebram hoje o Espírito do Pentecostes, dom de um judeu - Jesus Cristo - vítima da política de Israel e do Império Romano. Não é um Espírito de conquista e de imposição. Segundo os Actos dos Apóstolos, inspira um caminho de permanentes descobertas e um método democrático de gerar consensos. É nesse processo indutivo que os apóstolos descobrem virtualidades essenciais da mensagem cristã nas quais nunca tinham pensado antes: a mesma dignidade humana e divina de todas as pessoas e de todos os povos e culturas. |
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(1) Cf. Nuno Nabais, "Metafísica do Trágico", Relógio d'Água, 1997, p. |
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