A Morte da Irmã Lúcia
na Televisão

BENTO DOMINGUES, O.P. ..................................Público, Lisboa, 20.02.2005
1. Vivemos numa sociedade do espectáculo. Fátima nunca se deu mal com ela. As aparições aconteceram a céu aberto. Na última, a 13 de Outubro de 1917 - como ficou registado por Avelino de Almeida, enviado especial do extinto jornal "O Século" -, até o sol dançou.

A Senhora de Fátima nunca se contentou com o palco da Cova da Iria. A sua imagem percorreu o mundo. Fátima teve mesmo uma reedição particular no Vaticano - Pio XX viu o milagre do Sol nos seus jardins - e acabou por ensinar aos Papas o caminho da Capelinha das Aparições. Não estou a inventar. Basta referir as palavras do próprio cardeal Tedeschini, legado do Papa, em 1951, ao encerramento do Ano Santo: "Não é isto Fátima trasladada para o Vaticano? Não é isto o Vaticano transformado em Fátima?"

A influência das visões dos pastorinhos vão muito para além dos limites do cristianismo: muçulmanos, hindus e budissSerra d'Aire.

2. No passado domingo morreu, no Carmelo de Coimbra, a irmã Lúcia, a última memória privilegiada dos acontecimentos de 1917. As televisões, num espectáculo contínuo, vingaram-se do ocultamento da carmelita durante a vida. Se, como disse D. Manuel Gonçalves Cerejeira, "não foi a Igreja que impôs Fátima, mas Fátima que se impôs à Igreja", também agora não foi a Igreja que impôs o funeral da irmã Lúcia às televisões. Foram estas, o Governo e os partidos da direita que o impuseram ao país de forma saturante.

D. Manuel Martins e D. Januário Torgal denunciaram as tácticas de aproveitamento governamental e partidário. Paulo Portas infiltrou-se no Carmelo, às escondidas, para que falassem da sua habilidade o dia inteiro.

Sem exibicionismo, a hierarquia da Igreja em Portugal e o cardeal Bertone, enviado de João Paulo II, mantiveram uma atitude sóbria, inteiramente adequada ás celebrações da fé católica.

Surgiu nas televisões a pergunta: que vai ser agora de Fátima e da Igreja em Portugal com o desaparecimento da irmã Lúcia?

Não há dúvida de que o fenómeno de Fátima - seja qual for a opinião que se possa ter acerca dele - desempenhou um papel importantíssimo no despertar religioso e católico do país, durante a República anticlerical e durante o Estado Novo.

Não morreu com o regime nem com o desaparecimento do mundo rural, como alguns analistas supunham, embora se diga que no ano passado diminuiu significativamente o número de peregrinos. Um indicador estatístico de curto período não permite nenhuma ilação para o futuro. Creio até que a religiosidade pós-moderna - habituada a seleccionar os seus ingredientes de forma bastante livre - estará mais à-vontade em Fátima do que uma religião habitada pelas duras exigências da razão. Cada peregrino constrói, dentro de si, o santuário das aparições de que precisa.

Por tudo isso e muito mais, seria um erro grave identificar a crença em Fátima com a fé católica. Fátima nunca poderá ser o critério supremo de fé da Igreja. Conheço católicos fervorosos que são alérgicos a algumas formas religiosas de Fátima e já contactei com pessoas muito devotas de Fátima - algumas nem foram baptizadas - que são alérgicas a várias expressões da Igreja Católica. (1)

Desejo ardentemente que Fátima seja, cada vez mais, um foco da "nova evangelização" do país e um espaço de diálogo inter-religioso que ajude todas as religiões, depositárias de uma grande energia simbólico-religiosa, a oferecerem o que têm de melhor às novas experiências e sensibilidades espirituais.

3. No longo e omnipresente espectáculo televisivo em torno das exéquias da irmã Lúcia, a preocupação com marcar a data da sua canonização fez do caixão um altar, quase anulou a sua morte, sem poder evitar o seu enterro. E por aí reapareceram algumas das debilidades do Ritual dos Defuntos.

A morte humana é um puro mistério. Deixa o pensamento perante o vazio. Ninguém sabe o que é morrer: "Que instante é o da morte, mediante o qual se deixa de pertencer ao mundo e ao tempo?", pergunta Anselmo Borges. Mesmo quando assistimos à morte de alguém é sempre de fora que o fazemos e quem o viveu por dentro - e que pode isso significar? - emudeceu para sempre. A morte surge como ruptura de toda a comunicarão recíproca. O fenómeno da morte, como diz A. T. Queiruga, é a negação de todo o fenómeno.

Segundo a esperança cristã, "a vida não acaba, apenas se transforma". Podemos dizer, de modo positivo: pela morte, cada ser humano é acolhido e transfigurado pelo misterioso e purificador amor de Deus. É Ele o novo céu e a nova terra, a jubilação dos que passaram da morte à vida. A oração é a nossa maneira de estar presentes juntos àqueles que agora estão sempre connosco sem os podermos ver e sentir. A esperança não suprime o sofrimento.

Precisamos urgentemente de uma reforma do Ritual dos Defuntos, que, perante a dor da morte, desperte, pela beleza do silêncio, da oração e do canto, a graça da fé na ressurreição.


(1) Cf. Alfredo Teixeira, "Entre a Exigência e a Ternura. Uma antropologia do habitat institucional católico", Paulinas, Lisboa, 2004. Não existe no panorama português obra tão original, poderosa e estimulante sobre a nova recomposição do fenómeno religioso, observada a partir do lugar e da função da paróquia no tecido urbano. Um livro incontornável lançado na passada quinta-feira na Universidade Católica.