Libertar a verdade

 

 

BENTO DOMINGUES, O.P. .................................Público, Lisboa, 01.01.2006

1. Ao contrário do que piedosamente se repetia, Joseph Ratzinger declarou, em 1978, que "não é o Espírito Santo que dita aos cardeais o nome do novo Papa". Não se percebe, por isso, a crítica à inconfidência arriscada de um cardeal brasileiro ao diário O Globo: o prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, antes do conclave que fez dele Bento XVI, desenvolveu uma intensa campanha à escala mundial para ser eleito Papa. Se ele julgava que era o pontífice de que, neste momento, a Igreja precisava, tinha o dever de ajudar o Espírito Santo.

E, se isto for verdade, que interesse há em ocultá-la? Tanto mais que "o tema de reflexão deste ano - Na verdade, a paz - exprime esta convicção: sempre que o homem se deixa iluminar pelo esplendor da verdade, empreende quase naturalmente o caminho da paz".

Bento XVI não se atribui glórias que não lhe pertencem. Foi Paulo VI que, em 1968, teve a iniciativa de fazer do primeiro dia do ano o Dia Mundial da Paz. Mas já na Constituição, Gaudium et Spes, do Vaticano II, concluída há 40 anos, se dizia que a humanidade não conseguirá "construir um mundo mais humano para todos os homens, a não ser que todos se orientem com espírito renovado para a verdade da paz". Quando esta é profunda, começa dentro de nós.

É certo que o tema escolhido, para este ano, não se revela muito mobilizador. Pilatos não foi o primeiro a perguntar: "O que é a verdade?" Para L. B. Puntel "a essência da história é a mudança da essência da verdade".

Sem entrar agora por esse labirinto, é urgente destapar os motivos e os interesses que impedem os povos de viver em paz. E para quando a verdade sobre a guerra no Iraque? Não é acumulando mentiras e meias verdades que será possível construir um futuro para aquele país nem para o Médio Oriente. Quando os mais poderosos tomam decisões de consequências terríveis e irreversíveis, e as acompanham com a permanente orquestração de falsidades, envenenam o clima moral da humanidade. A mentira sobre a guerra, as despesas militares e o negócio das armas roubam recursos à educação, à saúde e ao desenvolvimento dos países emergentes. Mas roubam sobretudo a dignidade às declarações de política internacional. A indignação perante a perspectiva de armamento nuclear no Irão, sem questionar as razões dos países que já o possuem, não exibe razões éticas, mas a defesa de monopólios ameaçadores.

Existem recursos e técnicas para vencer a fome e a extrema pobreza a nível mundial. Então, por que será que a fome e certas doenças, absolutamente erradicáveis, continuam a matar em série?

2. O Natal esteve sempre carregado de histórias a puxar ao sentimento. E nesta quadra a África é especialmente humilhada com manifestações de pseudo-solidariedade. O jornal El País (27.12.2005) publica um notável artigo do escritor americano, Paul Theroux, que trabalhou vários anos no Malawi. Para ele, "o destino de África parece ser o de um cenário de palavras ocas e gestos públicos. O que mais se destaca nas pessoas famosas dedicadas a melhorar a África é a necessidade que têm em melhorar a sua própria imagem". Neste caso, está a pensar no cantor Paul Hewson, que a si mesmo se chama Bono, e em Bill Gates, que quer encher a África de computadores, quando ainda carece de lápis e papel. África atrai os mitómanos, as pessoas que desejam convencer o mundo daquilo que valem. "Os que procuram consertar a África precisam muito mais de conserto do que o próprio continente. A ideia de que a África padece de problemas insolúveis e só pode ser salva graças aos famosos e aos seus dons é uma noção destrutiva e enganosa."

Esta crítica não se refere à ajuda humanitária, aos trabalhos de auxílio nas catástrofes, à educação contra a sida, nem em tornar os medicamentos acessíveis. Também não invalida os esforços de pequena escala e que são objecto de um acompanhamento minucioso.

3. O referido artigo é muito certeiro contra os que desgraçam a África, passando por poderosos benfeitores. Não lhe competia destacar aqueles que foram para África e lá vivem, apenas, para serem irmãos e colaboradores dos africanos sem qualquer outro objectivo.

Foi com alegria que vi (em www. angonoticias.com) uma longa recolha de testemunhos sobre a intervenção de frei João Domingos, da Ordem Dominicana, em Angola, onde vive e trabalha desde 1982. Tem fama de fazer parar muitos lares, aos domingos de manhã, para ouvirem as suas pregações transmitidas em directo pela TPA e pela Rádio Ecclesia. Todos os testemunhos sublinham que não é um adulador. Não poupa críticas ao mau desempenho de certos gestores públicos e governantes angolanos. Quem se remetesse, porém, só para esse coro de elogios julgaria que esta grande figura da Igreja católica angolana foi construída pelos meios de comunicação social. Seria esquecer que frei João Domingos, de 72 anos, foi para a missão do Waku Kungo (Angola) com frei Gil da Conceição Filipe e frei José Nunes, actual provincial dos dominicanos de Portugal e de Angola.

Este pequeno grupo viveu no meio de populações dominadas, ora pelo MPLA, ora pela UNITA. Em 1985, Waku Kungo soube acolher, por meio de uma mobilização geral dos cristãos, cerca de 60.000 refugiados. Apesar da guerra, este grupinho de dominicanos participou na criação de comunidades espantosamente vivas sem dependência de donativos vindos de fora. Partilhavam o que sabiam e aprendiam a ser cristãos com as comunidades que ajudavam a formar.

Frei João veio, depois, para Luanda como pároco da Igreja do Carmo e como director do Instituto de Ciências Religiosas de Angola (ICRA). A seguir, colaborou na fundação do Centro Cultural Mosaiko, junto de Luanda, que hoje é a grande referência da defesa dos direitos humanos.

O lema dos dominicanos é a investigação e a proclamação da verdade de Deus e do mundo. Frei João Domingos é o porta-voz da verdade investigada e libertada pelas três comunidades dominicanas em Angola no meio das mentiras da guerra e da falsa paz.

"A verdade vos libertará", disse Jesus Cristo, mas hoje também é preciso libertar a verdade. Bom Ano!