BENTO DOMINGUES, O.P. ..........................................Público, Lisboa, 14.11.2004 | |
1. Creio que ninguém espera que ao fim destas linhas fique com a resposta na mão. Mas talvez possa ficar com a direcção da porta ou das portas a que vale a pena bater. A bela narrativa, O Evangelho segundo Jesus Cristo, de J. Saramago, não é a única obra que vale a pena ler sobre o profeta galileu. Há 142 anos, o ministro da Instrução Pública de França afastou o célebre Ernest Renan da sua cátedra de hebraico no Collège de France porque ele tinha dado a entender que a admiração, e até a veneração, que nutria pela figura de Jesus não ia ao ponto de reconhecer a sua divindade. A famosíssima Vida de Jesus de E. Renan foi publicada em Portugal em 1864. Mas o caminho da resposta à pergunta do meu texto não começou com Renan. A problemática do Jesus da história, face ao Cristo da fé, nasceu, de forma brutal, na Alemanha, em 1778. O pai da ideia foi Hermann Samuel Reimarus. Num fragmento publicado depois da sua morte – “O desígnio de Jesus e dos seus discípulos” – procurou tornar evidente que o Jesus da história e o Cristo anunciado pelos Evangelhos e pela Igreja não coincidiam. Era preciso saber distinguir entre o desígnio de Jesus, isto é, o objectivo que ele prosseguia, e o desígnio dos seus discípulos. Para compreender o objectivo de Jesus era necessário partir do seu grito na Cruz. Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste? Com este grito, mostrava, por um lado, que era um messias político judeu: pretendia erguer um reino terrestre e libertar os judeus da dominação estrangeira. Mas, por outro, confessava que tinha fracassado rotundamente. Perante esta derrocada, os discípulos roubaram o corpo de Jesus, inventaram a ideia da sua ressurreição e do seu retorno iminente. E tiveram êxito. Construíram o Cristo narrado pelos Evangelhos e pregado pela Igreja. 2. Hoje, já não se consegue imaginar o choque que este panfleto provocou. Teve, no entanto, o grande mérito de reconhecer, pela primeira vez, um dado decisivo: Jesus conhecido pela história e o Cristo conhecido e pregado pela Igreja não coincidem em tudo. A palavra de ordem que mais se fez ouvir, em certos meios, era bastante ingénua: regressemos ao Jesus da história, à sua personalidade, à sua religião, ao seu projecto! Perante as reconstituições realizadas com essa febre, os investigadores de hoje sorriem. Parece que cada escritor ou grupo cultural, social e político projectou sobre Jesus aquilo que desejava que ele tivesse sido e continuado a ser. As chamadas “vidas de Jesus” tinham fracas pernas para andar. Com o tempo, o acesso ao Jesus histórico parecia não só irrealizável como estéril para o conhecimento da originalidade cristã. O famoso exegeta protestante Rudolf Bultmann (1884-1976) chegou a confessar que Jesus pertence à história do judaísmo, não à do cristianismo, pois este só teria começado na Páscoa. Em rigor, pela História, saberíamos apenas que Jesus morreu. Não era pouco perante aqueles que diziam que Jesus nunca tinha existido, que não passava de uma figura lendária. 3. O radicalismo de R. Bultmann teve o merecimento de provocar debates e investigações. Muita água passou, entretanto, sob as pontes. O método histórico-crítico afinou-se e outros métodos manifestaram as suas virtualidades. Nada ficou parado. A pergunta que tinha nascido com a modernidade – “que podemos nós saber hoje de Jesus através da investigação histórica?” – já não esbarra com o cepticismo de outros tempos. Entre muitos outros grandes contributos para vencer o negativismo, destaco apenas dois norte-americanos. John P. Meyer afirmou-se com uma obra grandiosa – Um Judeu Marginal – traduzida e publicada no Rio de Janeiro, nas ed. Imago, em 1991, e que já apresentei nestas crónicas. Continua a ser uma grave lacuna no panorama cultural português. Em 1993 surgiu The Historical Figure of Jesus de E.P. Sanders. Vem na linha de uma longa série de estudos recentes que recebem o nome de “terceira investigação” sobre Jesus histórico no quadro do judaísmo, embora com o risco de fixar apenas o explicável por esse contexto reconstruído. Todos os que gostam de ver divulgadas em Portugal obras de grande qualidade sobre o itinerário de Jesus não podem deixar de estar agradecidos à Editoral Notícias pela publicação deste livro notabilíssimo, de modestas dimensões, servido pela bela tradução de Teresa M. Toldy e Marian Toldy. Os editores tiveram o cuidado de apresentar o autor aureolado com os seus muitos títulos académicos e literários, com os prémios recebidos pela sua vasta obra de investigação histórica no campo do judaísmo e do cristianismo no mundo greco-romano e acompanhado dos mais rasgados elogios de grandes investigadores. Se aos produtos alimentares são hoje exigidos títulos de garantia, para não se comer gato por lebre, muito mais atenção se deve pedir aos produtos culturais sobre figuras e temas que tocam com a Religião. A ignorância atrevida e o esoterismo bacoco tomaram conta do mercado. Mas talvez não fosse preciso que este livro fundamental fosse apresentado na capa da edição portuguesa como A verdadeira História de Jesus com «Tudo o que se pode, com rigor histórico, saber sobre Jesus». O rigor histórico exige contenção e modéstia. A investigação continua. Mas, caro leitor, não deixe de saborear este grande presente de Natal. |
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