Uma Pastoral
da Incredulidade (2)



BENTO DOMINGUES, O.P. ...........................................Público, Lisboa, 26.09.2004

1. Para alguns leitores, eu nunca devia ter dado, neste espaço, a palavra àquilo que o pastor luterano, Thorkild Grosboll, defende como pastoral da incredulidade para a Dinamarca, país que nada teria a oferecer de muito exemplar para o futuro do cristianismo na Europa. Urgente seria uma pastoral pura e dura da fé católica. Sem concessões. E quem tiver ouvidos para ouvir que oiça.

O documento do Conselho Pontifício da Cultura de 2004 - "Onde está o teu Deus?" - sobre a fé cristã perante a indiferença religiosa, não pretende saber a resposta antes de percorrer os meandros da pergunta, que é sempre a primeira oração do pensamento. Para esse estudo, os pastores da Igreja não podem deixar de responder às seguintes questões: Quem são os não-crentes? Qual é a sua cultura? Que nos dizem eles? Que podemos nós dizer a seu respeito? Que diálogo é possível estabelecer? Que fazer para despertar o seu interesse, suscitar interrogações, alimentar a sua reflexão? Como transmitir a fé às novas gerações, muitas vezes vítimas da indiferença religiosa veiculada pela cultura ambiente?

O Conselho Pontifício da Cultura, depois de um inquérito a nível mundial, verificou que a situação é complexa, está em contínua evolução, tem características diversificadas, mas já é possível extrair alguns dados significativos.

O ateísmo militante recuou. Não parece exercer influência decisiva na vida pública, salvo nos sistemas ou regimes políticos ateus no poder. Em muitos países, o inquérito notava, no entanto, nomeadamente nos meios de comunicação social, uma certa hostilidade cultural em relação às religiões - sobretudo em relação ao cristianismo e especialmente contra o catolicismo.

Por outro lado, o ateísmo e a não-crença mudaram de rosto. Apresentavam-se outrora como fenómenos masculinos, citadinos e entre pessoas de nível cultural acima da média. Hoje, o fenómeno está ligado a um certo estilo de vida. A distinção entre homens e mulheres já não é significativa.

O agnosticismo continua, mas é a indiferença religiosa ou o ateísmo prático que está em pleno crescimento. Uma porção significativa das sociedades secularizadas vive, de facto, sem referências às instâncias e aos valores religiosos. O chamado "homem indiferente sob o ponto de vista religioso" ("homo indifferens") é retratado de forma coloquial: "Talvez que Deus não exista, mas isso não tem importância; seja como for, também não sentimos a sua falta."

O bem-estar e a cultura da secularização - sobretudo do secularismo - provocam nas consciências um eclipse da necessidade e do desejo de tudo o que não seja imediato. As aspirações do homem para o transcendente são reduzidas a uma simples necessidade de espiritualidade subjectiva, de bem-estar material e de satisfação de pulsões sexuais.

No conjunto das sociedades secularizadas manifesta-se uma importante diminuição do número de pessoas que frequentam regularmente o Igreja. Isto não significa um aumento da não-crença enquanto tal. É sobretudo um "crer sem pertencer".

A chamada "desconfessionalização" do homem religioso ("homo religiosus") apresenta-se como a recusa de toda e qualquer forma de pertença que se julgue constrangedora. Em movimento contínuo é reconfigurado num universo religioso oscilante, com elementos de origem heterogénea. São pessoas religiosas sem pertencer a qualquer religião ou grupo confessional.

Além desse fenómeno, observa-se, de modo particular na América Latina e na África, um "êxodo silencioso" de numerosos católicos para as seitas e para os novos movimentos religiosos.

No mundo ocidental verifica-se também uma nova inquietação e uma nova busca, mais espiritual do que religiosa, mostrando que a ciência e a tecnologia modernas não suprimiram o sentido religioso, nem o conseguem substituir ou preencher. Talvez sejam novos modos de viver e de exprimir a religiosidade inerente ao coração humano. Na maior parte dos casos, este despertar espiritual e estas formas de religiosidade manifestam-se de uma forma autónoma e sem laços com o conteúdo da fé e da moral da Igreja.

Em suma: na aurora do novo milénio, nas culturas do Ocidente secularizado, nota-se uma desafeição tanto em relação ao ateísmo militante, como em relação à fé tradicional. Recusam-se ou abandonam-se as crenças tradicionais, quer no campo da prática religiosa, quer na adesão aos conteúdos doutrinais e morais. Aquilo que chamamos "homem indiferente" não abafou o "homem religioso", que procura uma nova religiosidade em perpétuo movimento.

A análise deste fenómeno manifesta uma situação caleidoscópica, onde tudo - e o seu contrário - pode acontecer. Existem os que crêem sem pertencer e os que pertencem sem, no entanto, crer em todo o conteúdo da fé e que, sobretudo, não procuram assumir a sua dimensão ética.

O referido documento do Conselho Pontifício para a Cultura não esquece que só Deus conhece o fundo dos corações. E aí a graça e a recusa da graça escapam a qualquer observação exterior.

O panorama geral revela-se complexo. Nos países de raízes cristãs é preciso identificar bem as causas antigas e novas da não crença e dos novos processos da crença. E não apenas da "má crença" combatida pelo pastor luterano. Voltarei ao tema.