Um estranho
humanista silencioso

 

 

 

 

BENTO DOMINGUES, O.P. .............................Público, Lisboa, Natal de 2005

1. Nada nos garante, antes pelo contrário, que o dia 25 de Dezembro do ano 748 da fundação de Roma seja a data histórica do nascimento de Jesus em Belém, na Judeia, embora isso não tenha qualquer importância para aquilo que mais interessa. O Dia de Natal (Dies Natalis ou Natalis Domini) foi fixado no 25 de Dezembro pela Igreja, com o Papa Libério, desde o século IV, a fim de substituir a festa pagã do deus Sol - Dies Natalis Invicti Solis, Dia do Natal do Sol Invicto - celebrada no solstício de Inverno.

Não se podiam afastar os cristãos dessas tão apelativas práticas idolátricas, sem ter algo que as superasse, integrando-as. Por outro lado, o culto cristão teve liberdade pública com o Édito de Milão, no ano 313. Em 336, já é celebrado, em Roma, o nascimento de Jesus, a verdadeira luz da inteligência e do coração, o Verbo de Deus na "carne", isto é, na fragilidade humana. Para obter consensos acerca deste imenso mistério, numa Igreja disseminada pelo Império romano, com diferentes áreas culturais, foram celebrados alguns concílios ecuménicos bem conhecidos: Niceia, Éfeso, Calcedónia e Constantinopla.

Foi sempre evidente, porém, que as cristologias especulativas nunca poderiam substituir as narrativas dos Evangelhos, mesmo dos chamados "Evangelhos da Infância", cuja sobriedade foi, depois, sobrecarregada pelos Apócrifos. Hoje, vive-se entre a alergia ao pitoresco dessa literatura e o fascínio pelos anos de que nada se sabe acerca da vida de Jesus em Nazaré. O pêndulo move-se entre a desconstrução histórica e o reencantamento do desconhecido. Só a grande música e a grande poesia superam a imaginação delirante ou a banalidade das cronologias.

2. Desde os finais do século XIX, o tema recorrente é o da relação entre o Jesus da história - aquilo que se pode saber através dos métodos históricos - e o Cristo da fé, as convicções que tecem as narrativas dos Evangelhos e que dizem, a quem tiver ouvidos para ouvir, que é sempre possível nascer de novo e aceder ao Reino de Deus no quotidiano. Apesar dos progressos, tanto no campo da história e das outras ciências humanas como no da reflexão cristológica, as tensões entre os dois tipos de abordagem não desapareceram.

Christian Duquoc, um célebre teólogo dominicano, introduziu a categoria da ficção para superar falsas oposições e libertar a imaginação cristã. Ficção não deve ser confundida com irrealidade, divagação ou delírio, mas como forma de captar a própria natureza das narrativas do Novo Testamento. Estas não são reportagens de faits-divers, susceptíveis de serem objecto de um relatório da polícia. São o resultado de uma elaboração literária que procura iluminar o sentido de factos, acontecimentos, gestos e palavras, que, se não fossem postos em cena, tenderiam a cair na banalidade, no mito ou no maravilhoso. A ficção permite ver, na singularidade de uma história e na particularidade de um acontecimento, o seu alcance universal. A partir daí, Duquoc está em condições de mostrar a correlação entre diferentes formas de fazer exegese bíblica e diversos modos de prática teológica. Fala-se sempre de Deus nas histórias da sua humanidade.

Jesus Cristo pode, assim, ser contado e figurado em contextos culturais muito diferentes: o Cristo da Ásia, da África, da América Latina, do Oriente e do Ocidente não tem a mesma expressão que o Cristo da Europa, mesmo quando foi da Europa que partiram muitas das suas representações. Jesus, o Cristo da fé, resiste a ficar prisioneiro de uma só experiência, de uma só história, de uma só cultura, de uma só religião.

3. No universo do pluralismo religioso, os cristãos vêem-se obrigados a perguntar pelo lugar de Jesus Cristo e, no diálogo inter-religioso, precisam de saber qual é a originalidade do cristianismo.
Há uma forma simplista de resolver estas questões: ou as religiões estão a mais ou, se valem alguma coisa, são todas iguais. Para já, elas são um dado, um dado plural que nenhum decreto pode abolir. Além disso, a religião é sempre uma referência humana ao Transcendente, (ao Absoluto), vivida numa incarnação cultural particular, necessariamente plural e relativa.

O papel de Jesus Cristo não é o de abolir ou substituir qualquer religião: "Não vim revogar, mas levar à plenitude" (Mt 5, 17). Ao não ter fundado nenhumas, o que importa é saber como é que ele foi religioso. Surge completamente descentrado para Deus, um Deus com quem tem uma relação filial e de quem recebe o Espírito que faz ver o mundo não com olhos de condenação, mas de transformação, "para que a alegria seja completa" (1Jo 1,4). Surge relacionado com todos os seres humanos a começar por aqueles que perderam todas as relações, gente só, gente condenada e pessoas com doenças físicas ou psicológicas.

No contexto da sua intervenção, esta atitude é uma crítica implacável à própria religião em que cresceu e foi educado. Não por ser religião, mas por não religar a causa de Deus e a causa dos pobres e excluídos. Diríamos, então, que Jesus é profundamente religioso e profundamente crítico da religião, seja ela qual for. Não pode tolerar o intolerável, o insuportável: que em nome de Deus se estrague a vida humana.

A diferença absoluta de Jesus consiste em ser absolutamente relativo: relação a Deus e relação aos outros. O amor incondicional cria, não apaga, as diferenças. Só está interessado em libertar a bondade e o sentido mais profundo de toda a realidade. Não pretende absorver a Deus nem o mundo. É o Caminho, a Verdade e a Vida que não substitui nenhum caminho, nenhuma verdade, nenhuma vida. Por isso, não há outro nome no qual possa ser salva a dignidade de todos (Act 4, 12).

Jesus não pertence nem ao mundo da indiferença nem ao da imposição: é o puro milagre de uma história humana curta, numa geografia muito limitada, com energia sobrenatural para atingir todo o tempo e lugar, como sustenta Tomás de Aquino.

É a promessa do renascimento do mundo. Como disse Jesus a Nicodemos: "Precisas de nascer de novo." Talvez precisemos todos! Bom Natal!