Dez milhões
de estrelas

BENTO DOMINGUES, O.P. ...............................Público, Lisboa, Dezembro de 2004

1. A ideia de copiar a Bíblia à mão foi um sucesso. Podia ter sido o êxito de um arcaísmo: copiar à mão uma biblioteca inteira, quando a caneta já foi arrumada. Foi, sobretudo, uma bela astúcia: interessou, com este gesto insólito, os grandes meios de comunicação social por uma literatura que a maioria dos portugueses frequenta pouco e mal e que é uma das componentes mais antigas da nossa cultura.

A Bíblia é uma biblioteca que se foi formando ao longo dos séculos em contextos e com influências culturais muito diversas. No tempo de Jesus, não existia ainda uma lista dos livros sagrados. O cânone judaico foi encerrado mais tarde, no fim do século I, em parte por reacção contra os cristãos que aceitavam como Escrituras não só muitos dos seus próprios escritos, mas também um conjunto heterogéneo de livros judaicos, sem ter em conta a língua em que foram escritos, o facto de serem originais ou traduções e o lugar de origem. O corpo das Escrituras do judaísmo rabínico é habitualmente designado pelo termo Miqra' (literalmente, «leitura») ou pelo acrónimo TaNak (Lei), Nebi'îm (Profetas) e Ketubîm (Escritos).

Forjada pelos cristãos, a expressão Antigo Testamento está documentada pela primeira vez em S. Paulo (2Cor 3,14), referindo-se particularmente à Lei de Moisés ( Tora ). Mais tarde, a expressão tornou-se corrente para designar o conjunto das Escrituras que o cristianismo herdou do judaísmo. O Antigo Testamento contrapõe-se ao Novo. Este é constituído por escritos de origem cristã que o cristianismo não só reconhece como Escrituras sagradas, mas faz deles o ponto de convergências de todas as Escrituras (1).

2. Estamos no 2º Domingo do Advento. No passado Domingo, confrontamo-nos com um texto poético do profeta Isaías (2, 1-5), anunciando um tempo em que os instrumentos de guerra seriam transformados em instrumentos de paz e desenvolvimento.

Hoje, deparamos com outra passagem do mesmo profeta, não menos célebre (11, 1-10). É uma construção de grande beleza messiânica: «Naquele dia, sairá um ramo do tronco de Jessé e um rebento brotará das suas raízes. Sobre ele repousará o espírito do Senhor: espírito de sabedoria e de inteligência, espírito de conselho e de fortaleza, espírito de conhecimento e de temor de Deus. Animado assim do temor de Deus, não julgará segundo as aparências, nem decidirá pelo que ouvir dizer. Julgará os infelizes com justiça e com sentenças rectas os humildes do povo. Com o chicote da sua palavra atingirá o violento e com o sopro dos seus lábios exterminará o ímpio. A justiça será a faixa dos seus rins e a lealdade a cintura dos seus flancos. O lobo viverá com o cordeiro; o bezerro e o leãozinho andarão juntos e um menino os poderá conduzir. A vitela e a ursa pastarão juntamente, suas crias dormirão lado a lado; e o leão comerá feno como o boi. A criança de leite brincará junto ao ninho da cobra e o menino meterá a mão na toca da víbora».

Apresenta-se este texto como se fosse referido a um descendente do rei David. Ora, como diz Francolino Gonçalves, reparando bem, insinua o contrário: a dinastia davídica teria fracassado irremediavelmente. É, por isso, que se recorre a outra linha de descendência de Jessé (pai de David).

Esse descendente será perfeito no exercício da justiça. Os desfavorecidos serão os beneficiários. O poder real estende-se ao próprio cosmos e à natureza. O exercício ideal da realeza implicava a submissão das feras que punham em perigo a existência humana e a ordem social. Sonha-se com uma recriação do mundo. É preciso voltar ao tempo da harmonia cósmica, da justiça primordial, vitória sobre o caos. Este belo mito pressupõe que, no começo, os homens e os animais não eram carnívoros. Os homens comiam fruta e os animais comiam erva.  

3. Está na moda desconfiar das utopias. Trouxeram demasiados enganos e catástrofes. Alguns consolam-se a proclamar que o mundo não tem remédio. Outros, sem esperança de que as coisas possam mudar radicalmente, resignam-se a uma sociedade individualista.

Os cristãos não podem desesperar da construção de um futuro mais harmonioso a concretizar no tecido dos conflitos da nossa história. Se recorrem a estes velhos textos míticos, não é para descrever nem o passado nem o presente nem o futuro, mas para não se acomodarem à injustiça, para não desistir da paz., para não deixar o caminho livre ao terror.

Como diz Saëb Erakat , Ministro palestino encarregado das negociações, «a Paz é possível. Basta acabar com a ocupação. Se nada mudar, podeis nomear a Madre Teresa presidente da Autoridade Palestina, Nelson Mandela como Primeiro Ministro e nomear Gandi para o meu lugar... Em alguns anos, ides reencontrá-los todos convertidos ao terrorismo».

A Cáritas Portuguesa propõe-nos, para a noite de Natal, independentemente das nossas convicções religiosas ou políticas, um gesto pela paz: 10 milhões de estrelas, 10 milhões de velas, 10 milhões de portugueses unidos no desejo de globalizar a solidariedade, de acender a esperança da paz.

 

Francolino J. Gonçalves, Jesus de Nazaré e as Escrituras, em Cadernos do ISTA 12 (2001), p.8. Em linha no TriploV.