Como Lidar com
Os Dogmas Católicos  
 


 

 

 

 

BENTO DOMINGUES, O.P. ..................................Público, Lisboa, 16.1.2005

 

1. Já estamos em 2005 e algumas realizações culturais relevantes na área religiosa não foram nomeadas nestas crónicas. Aconteceu isto, em 2003, com o Colóquio Internacional Lacordaire e a Questão Religiosa. Sucedeu o mesmo, em 2004, com o Congresso Internacional sobre a Inquisição Portuguesa e com o Colóquio Internacional Frei Luís de Granada. Espero poder abordar o alcance destas iniciativas do Instituto
S. Tomás de Aquino - em colaboração com outras instituições académicas - quando as respectivas actas forem publicadas.

Passou também, em 2004, o centenário do nascimento de um grande amigo dominicano, Yves Congar, um dos teólogos ecuménicos mais perseguidos e influentes na Igreja da segunda metade do séc. XX. Mas de Y. Congar, de quem recebi grandes provas de amizade, já falei em outros espaços e ocasiões.

Hoje, quero celebrar o centenário do nascimento de um teólogo jesuíta, Karl Rahner, um mestre que fui visitar a Innsbruck em 1962 e onde encontrei também o seu irmão Hugo - um grande investigador da patrística - e o liturgista J. A. Jungmann. Aí testemunhei a oposição radical de Karl Rahner à "teologia kerigmática", que, em nome da pastoral, se desligava das exigências da teologia científica e universitária.

Mas K. Rahner nada tinha de arrogante nem gostava de se demorar com a sua própria biografia: "Se eu disser que nasci a 5 de Março de 1904 em Friburgo, filho de um professor primário, e que cresci numa família cristã, católica convicta, à qual uma mãe de sete filhos imprimiu carácter, que fiz os estudos normais até acabar os estudos secundários em 1922, com bons resultados, absolutamente normais... que sei eu dos meus começos? Pouco, e este pouco desaparece cada vez mais num passado silencioso coberto pelo esforço quotidiano. Em 1922 entrei na ordem dos jesuítas.

Passados 44 anos, acerca deste começo sabe-se que foi bom, que me foi fiel e que também lhe posso ser fiel. E pouco mais."

Acabados os estudos teológicos - e destinado a ensinar História da Filosofia -, K. Rahner foi enviado para a sua cidade natal. Teve como professor M. Heidegger, um dos mais famosos filósofos do séc. XX. Confessará mais tarde que lhe deve o pouco de filosofia que a sua teologia possa ter, demarcando-se, porém, do admirado mestre:

"Heidegger estava convencido de que a filosofia depois dos pré-socráticos, desde Platão até ao idealismo alemão, assentava num contra-senso a respeito do ser. Eu não posso partilhar esse ponto de vista. Considero-o falso." 

K. Rahner, sem nunca esconder o que devia a Heidegger, fez outra opção: "Com S. Tomás de Aquino, sinto-me perfeitamente em casa." Foram sobretudo os jesuítas belgas que lhe abriram essa porta e, de modo especial, Joseph Marechal (m.1944). A fecundação recíproca da filosofia moderna e da herança tomista foi o clima cultural que lhe permitiu o desenvolvimento da dimensão antropocêntrica da sua reflexão
teológica, que, de modo muito simplificado, se poderia sintetizar assim: não é possível falar de Deus sem falar do homem, nem se pode sondar a profundidade da natureza humana sem encontrar o seu movimento transcendental para o inabarcável mistério de Deus.

2. Mas em vez de ceder a perigosos esquematismos impostos por este espaço, julgo preferível dar a palavra ao próprio K. Rahner acerca da forma como lidava com os dogmas e posições do magistério eclesiástico em questões que levaram muitos católicos militantes a abandonar a Igreja. Não só em Portugal.

"Uma identificação última com a essência fundamental da Igreja não significa, de modo nenhum, que estejamos de acordo com todas e cada uma das coisas que se fazem na Igreja. Nem com tudo o que a hierarquia ou o Papa realizam, nem mesmo com todas e cada uma das coisas que o ensino oficial da Igreja apresenta.

"O autêntico dogma da Igreja constitui algo que me obriga absolutamente. Como cristão e como teólogo, com certa ansiedade de espírito e coração, devo perguntar-me - com não pouca frequência - qual é o verdadeiro sentido de uma afirmação que o magistério da Igreja mantém como dogma, para lhe dar o meu assentimento de modo honesto e tranquilo.

"Ao longo da minha vida nunca senti que isso fosse impossível. Em relação a esses dogmas, dei-me conta, claramente, que só podem ser bem entendidos quando se torna patente o seu sentido na linha da abertura ao mistério de Deus, sabendo, por outro lado, que foram formulados em condicionamentos históricos determinados. Esses dogmas encontram-se inevitavelmente numa espécie de amálgama que, de facto, não pertence ao conteúdo da declaração dogmática e que pode mesmo levar a que esse conteúdo seja mal interpretado. Isto acontece também porque esses dogmas estão formulados como regulações linguísticas que, para serem fiéis à realidade a que aludem, não deveriam permanecer sempre iguais, nem com as mesmas palavras com que foram formulados.

"As coisas são diferentes quando se trata deste ou daquele ensino mantido pelo magistério como oficial, apresentado como vinculante, mesmo que não tenha sido 'definido'. Julgo que, por exemplo, nem a argumentação básica nem a autoridade de ensino da Igreja a que, de facto, se recorre oferecem um fundamento convincente e obrigatório para aceitar a discutida doutrina de Paulo VI na 'Humanas Vitae'. O mesmo se diga acerca da declaração feita pela Congregação da Doutrina da Fé que pretende excluir, por princípio, a ordenação de mulheres, como algo a aplicar em todos os tempos e culturas" (cf. "Scriften" XIV, 1980).