O Cristianismo
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BENTO DOMINGUES, O.P. ............................................Público, Lisboa, 27.06.2004 | |
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No preâmbulo do Tratado Constitucional da União Europeia ficou assumida "a herança cultural, religiosa e humanista da Europa". Muitos cristãos, a começar por João Paulo II, ficaram desapontados com o carácter desta referência. Além de muitas ONG, um milhão e 66 mil cidadãos europeus - entre os quais 75 mil portugueses - tinham assinado uma petição para que nesse texto figurasse o reconhecimento expresso da "herança cristã". Há quem lamente o número tão limitado de assinaturas da petição. Seria ridículo, no entanto, considerar o texto do referido preâmbulo como uma derrota do cristianismo. Um enigmático trecho do Evangelho de S. Lucas, lido na Eucaristia do domingo passado, levantou-me uma questão muito elementar: que entendem por"herança cristã" quer os apoiantes quer os adversários da sua inclusão no tratado constitucional europeu? Conta o citado evangelista que um dia Jesus, depois de se ter isolado para orar, para mergulhar no infinito mistério em que vivemos, existimos e nos movemos, voltou-se para os discípulos e perguntou-lhes: "Quem dizem as multidões que eu sou?" Ficou a saber que para uns, ele era João Baptista, para outros, Elias ou um dos antigos profetas ressuscitado. Isto significava que, embora tivesse sido identificado com a corrente mais crítica da herança de Israel, Jesus não representava nada de muito novo. A resposta reflectia a essência de uma cultura tradicional: reduz tudo aos modelos já conhecidos. O futuro só pode ser o retorno do passado. Dentro desse horizonte, percebe-se o escândalo que Jesus irá provocar quando as suas atitudes e palavras - "disseram-vos, mas eu digo-vos"... - se tornarem irreconciliáveis com aquilo que se julgava ser a verdadeira herança de Israel e soarem a ruptura, a traição, a escândalo. A partir daí, segundo a polémica do Novo Testamento, Jesus passará a ser considerado um agente do diabo que é preciso eliminar. Para a narrativa de S. Lucas, o mais estranho estava ainda por acontecer. Jesus, de repente, vira-se para os discípulos e dispara: "E vós, quem dizeis que eu sou?" Pedro apressou-se a responder por todos: "Tu és o Messias de Deus." A palavra "messias" vem do hebraico "masiah" (e do aramaico "mesiah"). Significa ungido (consagrado), que, em grego, se diz "christós". A nossa língua adoptou tanto a palavra hebraica como a tradução grega: Messias e Cristo. Por que será que Jesus não mostrou nenhum entusiasmo quando lhe chamaram "Messias de Deus" e exigiu aos discípulos que não tocassem mais no assunto? Que viragem tornou inseparáveis, desde há dois mil anos, o nome de Jesus e o título Cristo (ou Messias)? Na herança de Israel, além do messianismo religioso-político, havia várias outras tendências fortemente contrastadas e em contínua mudança sobre a forma como o Messias se devia manifestar e agir. Nenhum desses modelos se ajustava, porém, à significação que Jesus imprimiu ao seu modo de agir e de falar. Nenhum deles correspondia sobretudo àquilo de que o mundo mais precisava. A partir da sua experiência do Amor infinito e do seu contacto diário com os mal-amados deste mundo, viu que era preciso alterar até à raiz a relação do homem com Deus, a relação de cada um consigo mesmo e com os próprios inimigos. Esta é a essência da sua pregação sobre o Reino de Deus: uma semente, um fermento para mudar a direcção da vida e a própria vida. Jesus não morreu de velho, de doença ou de um acidente. Foi morto por tentar romper com os esquemas que atam os homens à lógica da dominação. Na sua morte, acompanhado pela compaixão e pelo perdão aos inimigos, abriu o caminho para a reunião de todos os filhos de Deus dispersos pela ambição, pela intolerância e pelo ódio. Introduziu na história humana o fermento de uma outra lógica: a da compaixão, do perdão e da solidariedade. Quem, como Jesus, perde a vida para não trair o sentido da vida como dom incondicional para a alegria de todos, ajuda a transformar radicalmente o fundamento da esperança e do messianismo. O futuro não pertence àqueles que matam, mas a quem dá a vida pelos outros: quem perde, ganha; quem teima em ganhar à custa dos outros já está perdido. A tentação do recurso à violência para responder à violência é de todos os tempos e não é exclusividade de ninguém. É a lição de Cristo vivo na Liturgia de hoje, a propósito dos "filhos do trovão". Como dizia Isaac, o Sírio, no séc. VII: "Sê um perseguido e não um que persegue. Sê um crucificado e não um que crucifica. Sê um ultrajado e não um que ultraja. Sê um caluniado e não um que calunia. (...) Purifica-te e verás o céu dentro de ti." Para Alexksandr Men, morto na Rússia em 1990, só homens muito limitados podem imaginar que o cristianismo já está concluído. Na realidade, só deu os primeiros passos, passos tímidos na história do género humano. A história do cristianismo está sempre a começar. Tudo o que foi conseguido no passado, tudo aquilo que agora chamamos história do cristianismo, não é mais do que um conjunto de tentativas - algumas em falso, outras mal conseguidas - para o realizar. A essência do cristianismo não é a conserva de uma herança, a salvaguarda de um passado: "Quem olha para trás depois de deitar a mão ao arado, não está apto para o Reino dos Céus", diz-nos Cristo na Missa de hoje. Os chamados"conservadores cristãos" são os guardas ruidosos de um túmulo vazio. |
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