CIÊNCIA, RELIGIÃO
E CONSCIÊNCIA

 
 
BENTO DOMINGUES, O.P. ..............................Público, Lisboa, 12.06.2005

1.Será verdade, como ouvi dizer há dias num colóquio, que desde o século XVII, o divórcio entre "a ciência e Deus" está consumado de forma irremediável? Consumado está. De forma irremediável, parece-me um exagero. O ser humano não pode renunciar nem à razão, nem ao sentido da vida. Há sinais que apontam para a revisão das raízes do conflito.

As Actas do Fórum Internacional, organizado pelo Centro Transdisciplinar de Estudos da Consciência da Universidade Fernando Pessoa, são uma excelente amostra da multiplicidade e variedade das investigações levadas a cabo em muitos centros de inovação por diferentes correntes do pensamento contemporâneo.(1) Pelos cinquenta anos da morte do jesuíta Teilhard de Chardin (10-04-1955) e do judeu Albert Einstein (18-04-1955), a Revista Portuguesa de Filosofia revisitou, alguns aspectos das relações entre ciência, filosofia e religião, nestas duas grandes figuras do séc. XX

(2). As aproximações entre medicina e espiritualidade gozam, por vezes, de uma publicidade inquietante. Mas segundo revelou um estudo da Universidade de Yale (EUA), em 1994 apenas 17 universidades norte-americanas ofereciam cursos sobre Medicina e Espiritualidade. Em 2004, o número já tinha subido para 84.

Será possível seguir com rigor os métodos das ciências e viver os caminhos da fé - na reinterpretação contínua das suas expressões - sem trair nem a Terra, nem o Céu? Teilhard de Chardin mostrou que, no seu caso, isso não só foi possível, como se tornou fecundo e exaltante.

2. Por que será que a hierarquia da Igreja não foi capaz de perceber o alcance evangelizador que a aventura de T. de Chardin e de outras similares representavam para um mundo que seria cada vez mais marcado pela cultura científica?

Parte da resposta é simples: tinha medo de abrir as portas da prisão em que se tinha fechado há três séculos.

Para Santo Agostinho, quando a ciência contradiz a fé torna-se necessário rever a interpretação das Escrituras. Para S. Tomás de Aquino, que não aceitava a teoria da "dupla verdade", não era possível a contradição entre a razão e a fé. Quando são detectados conflitos, importa examinar onde se estão a cometer abusos de competência.

Na época moderna, quando a ciência entrou em contradição com as Escrituras, os "guardiães da fé" deixaram cair a revisão das interpretações da Escritura e exigiram a mudança da ciência! Aí começou a tragédia. O processo movido contra Galileu - no qual foi condenado pelo Santo Ofício em 1633 - envenenou as relações entre a Igreja (Deus foi invocado em vão!) e as ciências. Este caso assumiu aos olhos dos modernos o valor de um símbolo que continua a ser invocado.

Por outro lado, a rejeição da crítica bíblica proposta pelo católico Richard Simon (1638-1712) veio agravar a situação e privou a Igreja de um instrumento indispensável para enfrentar uma série de conflitos e oposições cristalizados em temas muito debatidos: milagres e determinismo, criação e evolução, liberdade e inconsciente, inspiração bíblica e crítica histórica, etc.

No séc. XIX, Émile Zola ilustrou o prestígio crescente da ciência e a sua vontade de substituir a religião. Na sua trilogia As Três Cidades - Lourdes (1894), Roma (1896), Paris (1898) -, fez de cada uma delas uma etapa na via do progresso e da emancipação. Lourdes era o símbolo da superstição e da idolatria; Roma era a cidade do Papa, de quem se esperava uma religião nova, mas que se revelara incapaz de evoluir; Paris representava a cidade onde o espírito científico triunfara. A ciência era, doravante, a única religião capaz de preencher o coração do homem. "Uma religião da ciência" era, para Zola, o desenlace marcado, certo, inevitável, da longa marcha da humanidade na senda do conhecimento. Este "novo cristianismo" tem necessidade de uma nova versão dos quatro Evangelhos, que teriam por títulos: Fecundidade, Trabalho, Verdade, Justiça.

Tanto entusiasmo já não se usa, embora o prestígio da ciência continue a crescer e a impressionar. Mas um futuro radioso, no qual cada um se torna senhor do seu destino, por obra e graça da ciência, já não tem muitos discípulos. Depois das experiências do séc.XX, aqueles que são sensíveis aos usos devastadores que a ciência e a técnica possibilitam não acreditam que elas, só por si, nos possam fazer sábios, santos e felizes.

No entanto, como observa Marcel Neusch, "Deus continua fora de serviço" (3). Na cultura científica, segundo as boas regras, não há "profundezas". Tudo é superfície.

Só o conhecimento objectivo é fonte de verdade. Mas, por outro lado, a existência é muito contingente. A maioria dos seres humanos continua a não se resignar à sua condição trágica perante a vida e perante a morte.

Em todo o caso, a razão pertence ao mínimo irrenunciável do ser humano. Contudo, Deus não pode fazer parte de um sistema racional criado pelo homem. Não seria Deus. Mas sem a sua absoluta transcendência e intimíssima proximidade, ficamos mal.

Impedir o ser humano de se interrogar acerca do sentido da vida e de manifestar publicamente as expressões da sua religiosidade é uma violência. João Paulo II foi o primeiro Papa a pedir perdão pela tragédia da condenação de Galileu e a convocar os historiadores a reabrir esse dossier. Que fazer agora para que não se repita o conflito entre a moral católica e as "ciências da vida"?

 

(1) Actas do Fórum Internacional Ciência, Religião e Consciência, Ed. Universidade Fernando Pessoa, Porto, 2004.

(2) Revista Portuguesa de Filosofia, Janeiro-Março de 2005.

(3) Bruno Chenu/Marcel Neusch, Deus no Século XXI, Piaget, 2004,