Uma Boa Notícia do Brasil BENTO DOMINGUES, op

Público, Lisboa, Domingo, 18 de Janeiro de 2004

1. Já existia uma edição brasileira bilingue de "Suma Teológica" de Tomás de Aquino. Começou a ser publicada em 1944 e estava pronta em 1958. Somava 27 volumes. Foi reimpressa em 1980 e ficou em 11. Mas são volumes enormes em desajeitadas e irritantes dimensões. O incómodo maior resulta, todavia, da falta de qualidade da tradução, assinada por Alexandre Correia. Dava-me a impressão de que levaria menos tempo a aprender latim do que a entender as opções enganadoras daquela tradução.

A boa notícia é para todo o espaço da lusofonia. Jesuítas e dominicanos abriram o séc. XXI com uma nova e brilhante tradução brasileira, numa edição bilingue, da "Suma Teológica", de Tomás de Aquino, a investigação da verdade, de mão dada com a liberdade.

Esta obra admirável surge agora, em nove volumes de grafia primorosa, nas Edições Loyola de São Paulo. O primeiro saiu em 2001 e teve, em menos de um ano, uma segunda edição. Nos finais de 2003, esta difícil aventura já estava a meio da festa.

Reproduz o texto latino da "Editio Leonina". As introduções e notas, de reconhecido mérito, são traduzidas da versão francesa publicada pelas Editions du Cerf em 1984.

A nova tradução abre com um texto assinado pelos Superiores Gerais da Ordem dos Pregadores e da Companhia de Jesus. Esperam que esta realização de vulto seja um incentivo para uma colaboração lúcida, harmoniosa e criativa nos campos do apostolado, da comunicação, das actividades culturais, científicas, artísticas, filosóficas e teológicas, ao serviço de um constante compromisso social nos caminhos da justiça e da paz.

Não é a restauração do passado medieval ou da Contra-Reforma que move as assinaturas prestigiosas de Timoty Radcliffe, O.P. e de Peter-Hans Kolvenbach, S.J. São as urgências do presente e os desafios do futuro que os impelem a desenhar um grande programa de novas e ousadas colaborações.

2. Na apresentação, Fidel Garcia Rodrigues, das Ed. Loyola, inscreve a nova tradução no propósito de possibilitar o contacto com os grandes clássicos da teologia, da filosofia, das ciências e das artes.

Recorrer a Tomás de Aquino como ao criador de uma sistemática teológica intemporal, pronta a responder às questões do nosso tempo - como se repetiu ora por ingenuidade, ora por astúcia - é um engano e um insulto em forma de homenagem. Este arrojado teólogo é uma figura da Idade Média provocado pela redescoberta do pensamento grego, pela aproximação das teologias do Ocidente e do Oriente, pelo estudo dos grandes nomes das filosofias e teologias muçulmanas e judaicas do seu tempo.

Mas é igualmente miserável que muitas faculdades de teologia se abandonem à frivolidade de esquecer a investigação das obras mais marcantes dos grandes clássicos, entre os quais se conta a "Suma Teológica" de Tomás de Aquino.

Os novos recursos oferecidos pela informática, os estudos e investigações sobre o pensamento, a cultura e a história medievais tornam hoje possíveis um melhor conhecimento e uma melhor apresentação desta obra de referência imprescindível e que sempre o foi para dominicanos e jesuítas, embora através de polémicas interpretações, hoje pouco significativas.

Mas, segundo o editor, o que contribuiu de maneira mais decisiva para viabilizar este empreendimento, apesar do seu alto custo, foi a possibilidade de contar com a colaboração solícita e harmoniosa de uma equipa de valor, qualificada pelo seu conhecimento da doutrina e da linguagem de Tomás de Aquino.

E o editor explicitou outros cuidados ao tentar uma tradução moderna, que se empenha em aliar a fidelidade à clareza e, quanto possível, à elegância. Guardam-se as expressões técnicas do vocabulário do Doutor medieval, buscando traduzi-las de maneira uniforme, através de toda a sua vasta síntese. Tendo sempre em conta o teor e os matizes do original latino, procuraram tirar proveito dos trabalhos e estudos existentes nas diversas línguas.

3. Carlos Josaphat, O.P, responsável pela coordenação geral da obra, pergunta no seu magnífico prefácio: "Seria amarga ironia ou protestação profética aquela conhecida façanha de machado de Assis exibir o coitado do Brás Cubas, identificando-se em seu delírio terminal com o imenso e afivelado calhamaço da 'Suma Teológica?' Pois não é que, por uma espécie de sequestro precoce e duradouro, o mestre dominicano, enaltecido por seu primeiro biógrafo como o mais audaz dos inovadores, acabou sendo transformado, para muita gente, no símbolo mesmo da ortodoxia conservadora, senão intolerante?"

Os dominicanos e jesuítas brasileiros, diante dos intentos dos neoconservadores, aliaram-se na busca de novos paradigmas teológicos inspirados pela atenção aos grandes problemas humanos, ao diálogo ecuménico, inter-religioso e intercultural. Procuram uma nova ordem jurídica, económica e política para o mundo, no prolongamento dos projectos que a jovem América inspirou a Bartolomeu de Las Casas, a Francisco Vitória e a Francisco Suarez que, por sua vez, vinham de leituras novas de Tomás de Aquino.

A "Suma Teológica" segue um minucioso método argumentativo, tentando responder à pergunta: "Como é que é verdade aquilo que na fé confessamos ser verdade?" Mostra que a pior das idolatrias é a de tentar fechar Deus em conceitos humanos.