Sobre Um Barril de Explosivos

 



BENTO DOMINGUES, O.P.
Público, Lisboa. Domingo, 08 de Fevereiro de 2004
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1. Não foi só na TSF e na SIC-Notícias que fui questionado acerca do tema da crónica de domingo passado. Está em causa o alcance do confuso debate francês sobre um projecto de lei cujo primeiro e principal artigo tem a seguinte redacção: "Nas escolas, nos colégios e nos liceus públicos são proibidos o porte de sinais ou modos de vestir pelos quais os alunos manifestam ostensivamente uma pertença religiosa."

Para Jacques Chirac, está em jogo o princípio da laicidade, um dos pilares da República. Não se trata de proibir sinais de pertença religiosa na vida de todos os dias, mas de proteger a escola pública dos perigos do comunitarismo. Segundo a retórica do Presidente francês, a escola deve continuar um santuário, um lugar privilegiado da transmissão dos princípios e dos valores da República. Estes implicam a igualdade de oportunidades, a estrita igualdade entre mulheres e homens, o respeito pelo princípio de mestiçagem, a luta contra as discriminações e um empenhamento resoluto na integração: todos com os mesmos direitos e os mesmos deveres. Inebriou-se com aquilo que devia ser uma augusta banalidade: "Todas as crianças de França, seja qual for a sua história, a sua origem, a sua religião e as suas crenças são filhos e filhas da nação."

2. Mas qual é o princípio da laicidade, de que fala J. Chirac? Este termo entrou no discurso político em 1871, mas não conseguiu fazer parte do vocabulário da célebre e controversa "Lei de separação da Igreja e do Estado" de 1905. Redigida num contexto de anticlericalismo violento, apresentou-se com um objectivo de pacificação. Já foi modificada nove vezes.

O próprio regime de separação é muito curioso: o que é uma separação na qual o Estado garante o exercício livre do culto, reserva para si a propriedade dos edifícios religiosos, mas coloca-os gratuitamente à disposição da Igreja? Não há separação nem de corpos nem de bens, como se o casal tivesse querido divorciar-se guardando o mesmo leito... "Estão condenados a entender-se", conclui o historiador e sociólogo Emile Poulat.

Sem nunca ter sido definido oficialmente o que se entende por laicidade, esta surge pela primeira vez em 1946, e só como adjectivo, na declaração: "A França é uma República laica."

Com o tempo, evoluiu de uma laicidade de combate para uma laicidade aberta, plural, sempre em renovação. O Estado é laico, mas a sociedade francesa é cada vez mais pluralista, multicultural e multirreligiosa.

3. O barulho, apesar de tudo, está centrado no "véu islâmico", que historicamente nada tinha de religioso. Era um uso das mulheres muito anterior a Maomé. No cristianismo já tinha acontecido algo parecido. As mulheres perceberam que a adesão a Cristo as tornava livres e as situava em igualdade com os homens. Era, aliás, a posição enfática de S. Paulo. Mas por causa dos distúrbios provocados pela ruptura com os costumes locais, ele mandou que as mulheres nas assembleias litúrgicas estivessem caladas e de cabeça coberta. São conhecidas as consequências perversas desta norma marcada por circunstâncias de tempo e lugar. Ainda nos anos 50 do séc. XX, o episcopado português andou preocupado com o vestuário das mulheres!

O debate sobre o "véu" - seja ele considerado um sinal religioso, um simples costume, uma marca identitária, uma forma de protesto ou ainda um índice de submissão da mulher, um meio de controlo sexual e matrimonial da rapariga - serve para ocultar o essencial.

4. O conhecimento historiador René Rémond, que fez parte da comissão oficial presidida por Bernard Stasi, manifestou-se indignado, no jornal "Le Monde", com a instrumentalização reducionista que o Governo fez do trabalho por ela realizado.

A resposta política actual tem um carácter absurdo e ridículo. Mantém os cidadãos na ilusão de que basta votar dois artigos da lei e fica resolvido o problema da integração. Ora, o alarido em torno do "véu" esconde a questão central: qual a capacidade da França para integrar as populações novas e fazer aceitar a lei comum por estes novos franceses? Conclusão de R. Rémond, seguido por A. Touraine: "Deixamo-nos crispar por um problema ultraminoritário, quando o verdadeiro desafio é o da integração social e profissional."

Esta é um questão de toda a Europa - e não só! - revestindo particularidades significativas segundo os países. Os governos, o patronato, as escolas, as polícias, os meios de comunicação e a população no seu conjunto deviam saber que não há nenhum interesse em viver sobre arsenais de explosivos, sobre questões de integração mal resolvidas.

É evidente que os trabalhos pela legalização dos emigrantes e de combate às redes do tráfico de seres humanos são essenciais para facilitar a sua desactivação. Mas a pergunta anterior a todas é outra: que esforços fazemos - a nível público e privado - para conhecer as configurações culturais dos povos das pessoas que procuram trabalho em Portugal? Que grau de conhecimento da língua portuguesa e da nossa cultura lhes proporcionamos e exigimos?

Um exemplo: quantas horas foram ocupadas pelas televisões e pelas rádios com a morte de Fehér? Que ficaram os portugueses a saber dos diversos aspectos da história e da vida do povo húngaro?